quinta-feira, dezembro 19, 2013

Natal: iniciativa gratuita de Deus


Um dos termos fundamentais de toda a teologia cristã é o de «graça». Graça poderia ser considerada como que a adjetivação de toda a ação divina; definida como gratuita, sem ser devida a qualquer mérito. Apesar desta centralidade da graça, tendemos a ver os núcleos da fé cristã num registo em que a ação divina parece ir a reboque de motivos que parecem colocar a iniciativa divina em segundo plano. Assim aconteceu, ao longo da história, com a interpretação da encarnação de Jesus Cristo. Uma linha teológica, que teve em S. Anselmo o seu máximo expoente, designada como «hamartiocentrismo», colocou no centro de toda a ação divina a reparação do mal feito pelo pecado. A ação de Deus, neste quadro, parecia dever-se, não a iniciativa sua, mas à necessidade de corrigir o que o pecado destruíra. A graça parecia ficar subjugada à força do pecado. O pecado tornava a ação de Deus um dever e não um desígnio de amor. Mais ainda; esta linha de interpretação, que ainda continua muito presente em alguma reflexão cristã, a ação criadora parecia um acontecimento diverso do processo salvífico, como se criar não fosse, já por si, manifestação amorosa de Deus e, por isso, salvação. Na conceção hamartiocêntrica, um era o processo criador, outro o processo salvífico, reduzido à dimensão de redenção. Bem certo que muitos e grandes nomes da teologia se situaram neste registo, porém, a dinâmica bíblica situa-nos noutro quadro. Na verdade, particularmente desde o momento do exílio babilónico, o povo bíblico toma consciência de que o Deus da salvação é, simultaneamente, o Deus criador.

Devemos ao beato e teólogo Duns Scoto, franciscano dos séculos XIII-XIV, reconhecido como «doutor subtil», a pertinência de situar o acento onde sempre deveria ter estado. Não é ao pecado que se deve a ação salvífica de Deus. A encarnação, como expressão máxima da bondade de Deus, não é devida ao pecado, mas ao enorme amor de Deus, que expressa, deste modo ímpar, a gratuitidade da sua ação. Duns Scoto chega a supor que, mesmo que o pecado não tivesse sido originado, desde que o homem é humano, a encarnação continuava a fazer sentido, pois a sua motivação não é, primeiramente, a redenção, mas a manifestação da salvação definitiva que é a participação do amor de Deus.

Esta reflexão pode afigurar-se, para muitos, como uma subtileza teológica, porém, as suas implicações são enormes, se tivermos em conta que a práxis, a ação da Igreja denuncia convicções teológicas. O centro da sua ação deve ser o anúncio do amor de Deus, antes de ser uma proposta moral, mesmo que tal se depreenda. É, aliás, este o registo da perspetiva da moral paulina, designada como moral do indicativo. A moral é um segundo momento, pois o primeiro é o anúncio. Uma tarefa que nem sempre esteve clara, na ação missionária da Igreja, como é bem visível nos relatos da dificuldade com que se depararam os missionários, no século XIX, quando se encontraram perante tribos onde não era clara a noção de «culpa». Porque o centro estava no pecado, o desafio parecia intransponível e o anúncio impossível. Mas, se o centro estivesse no anúncio do amor de Deus, tal dificuldade deixava de fazer sentido.

Este é o centro onde deve colocar-se, em cada Natal, a contemplação do presépio. Ali, não se expressa, primeiramente, um remendo de Deus, mas a iniciativa absoluta do amor que não é exigido por nada. Assim deverá entender-se o adágio paulino de que «onde abundou o pecado, superabundou a graça»., não como quem constata que foi ao pecado que se deveu a força da graça, mas, sim como quem verifica que, antes do pecado, a graça já o era como tal: gratuita. Dizem-no, de modo claro, os místicos: não é por nos sentirmos pecadores que nos aproximamos de Deus, mas antes, perante a grandeza e gratuitidade do amor de Deus que nos sentimos pequenos e frágeis, pecadores.

Se este for o centro, o Natal renovará, em cada um, no hoje da celebração, o reconhecimento de que, como criaturas de Deus-Amor, fomos feitos para o amor. E quando o amor não é o código genético da nossa natureza e ação, então, desumanizámo-nos.

Luís Manuel Silva

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