A
crise tem-nos feito despertar para matérias em que pouco tínhamos pensado. A
quem preocupara, verdadeiramente, antes desta crise, o problema do défice da
balança comercial, ou o défice do orçamento do Estado, ou o rating da República
ou as agências de notação ou tantas outras matérias que, hoje, passaram a fazer
parte do nosso quotidiano? Do mesmo modo, num passado recente, muitos alertaram
para as implicações de decisões que se estavam a tomar, no âmbito da política
demográfica, sem que se lhes desse suficiente atenção, no devido tempo,
estando-se, hoje, a assistir a um quadro que lhes atribui razão.
Na
verdade, os dados demográficos nacionais são, no mínimo, inquietantes. De tal
modo que pode considerar-se que «o» problema nacional, verdadeiramente
relevante é o que concerne à demografia e à distribuição demográfica. Este
segundo vetor não é, aliás, novo. Já no período pombalino se considerava que
Portugal era um país macrocéfalo. Tinha uma grande cabeça, Lisboa, e um
diminuto corpo. Hoje, essa macrocefalia só se diferencia por alguma bicefalia,
mas o cenário é pouco distinto e não tende a melhorar, dadas as políticas de
eliminação de serviços a que vimos assistindo, desde há dez anos.
Portugal
vive, com efeito, desde 2007, uma crise demográfica que importa interpretar.
Observemos,
em primeiro lugar, os números.
Em
2012, o saldo natural, isto é, a relação entre o número de nascimentos e os
números de óbitos apresentava-se negativo. Tinham morrido mais 17771 pessoas do
que as que tinham nascido. Um cenário que se vem verificando, desde 2007, com
exceção de 2008.
Tal
saldo natural encontra-se estreitamente vinculado ao facto de Portugal
apresentar uma taxa de fecundidade verdadeiramente preocupante: em 2012, essa
taxa já se cifrava em 1,28 filhos por mulher, uma das três mais baixas do mundo.
Portugal
vive, de forma aguda, um fenómeno que vem sendo designado, pela Europa fora,
como sendo o de um inverno demográfico. Fenómeno a que alguns já têm procurado
dar resposta, mas a que Portugal tarda em atender.
E
considero que uma das causas dessa tardia resposta está no erro de diagnóstico.
Na verdade, muitos atribuem a causa deste fenómeno à conjuntura de crise, o
que, a ser verdade, deixaria por explicar a antecipação do fenómeno à própria
realidade crítica. O fenómeno do decréscimo demográfico é anterior à emergência
da crise, pelo que terá de encontrar-se numa raiz mais profunda a sua
causalidade.
George
Weigel, no seu extraordinário ensaio «O cubo e catedral», vislumbra no apagamento
europeu da influência pública das religiões (e, em particular, do Cristianismo)
uma das mais substanciais causas da quebra demográfica, verificando que esse
apagamento não encontra paralelo na realidade americana, onde não se assiste a
uma crise do género da europeia. A perda desta influência repercute-se, segundo
o referido autor, no facto de se assistir a um crescimento do individualismo e
da perda do sentido da gratuidade e da perceção de que a vida nascente é dom,
que as religiões sempre preconizam.
Concordando
com o diagnóstico, acrescentamos-lhe uma especificidade, no que respeita à
realidade portuguesa.
Definamos,
para tal, um pressuposto de que partilhamos: as leis têm uma função pedagógica,
isto é, favorecem a criação de mentalidades, criam paradigmas conceptuais de
que as populações vêm a partilhar.
Com
este pressuposto, tenha-se em conta que Portugal assistiu, nos últimos dez
anos, à proliferação de legislação promotora de uma lógica pouco favorável à
constituição de família e à sua estabilidade, acrescentando contributos para
que se favoreça uma lógica individualizante (para não dizer «individualista»).
A título de exemplo, recordemos três momentos legislativos particularmente
significativos:
-
a Lei 61/2008 de 31 de Outubro que
vem facilitar o divórcio, lei que mereceu reparo do Presidente da República,
alertando para os riscos de injustiça que tal lei poderia favorecer. Para além
deste reparo, há que ter em conta que criou um quadro de facilitismo na
concretização da rutura familiar.
-
Lei Nº9/2010, de 31 de maio – que veio admitir o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, favorecendo a convicção de que o casamento era, fundamentalmente,
uma estrutura assente em dimensões sentimentais e afetivas, contribuindo para o
apagamento da sua dimensão de estrutura jurídica de forte relevância social e
coletiva. O casamento deixou de ser, a partir daqui, uma estrutura sobre a qual
a sociedade depositava a expectativa da descendência para se centrar na
dimensão da relação afetiva, individualizando a estrutura familiar.
-
Lei n.º 60/2009, de 6 de agosto, que regulamenta a educação sexual em contexto
escolar, preconizando uma abordagem fundamentalmente descritiva, neutra, isenta
de referências morais, contribuindo para a redução da sexualidade à sua
dimensão de prazer (hedonista), em relação à sua dimensão de abertura à vida,
que lhe é inerente, numa abordagem humanista e personalizante.
Tal
quadro legislativo é, só por si, suficientemente representativo de uma
mentalidade preconizadora da centralização no indivíduo, em relação à dimensão
comunitária. As suas repercussões não se fizeram esperar. A título ilustrativo
vale a pena constatar o crescimento exponencial dos divórcios e a concomitante
redução de casamentos assim como o crescimento preocupante do número de
famílias monoparentais. Em 2012, este facto cifrava-se nos 423.518, sendo que, nos últimos 5 anos, aumentaram mais de 100 mil, uma
evolução correspondente ao que se percorrer nos anteriores 15 anos. Em cinco
anos, este número aumentou três vezes mais.
No
nosso entendimento, as razões não são as conjunturais associadas à crise.
Valerá, aliás, a pena perguntar em que medida a crise poderia favorecer a
emergência de famílias monoparentais. Não será, antes, o contrário?
No
nosso entendimento, a emergência destes indicadores fica, sim, a dever-se a um
paradigma de interpretação da vida que tem vindo a mudar, no sentido da perda
da sensibilidade para o valor da vida e da prevalência do interesse individual
sobre o interesse comunitário. A estes dados acrescentou-se, ainda, o facto de
se ter realizado, em 11 de fevereiro de 2007, um referendo que veio legitimar o
aborto, a pedido da mulher, até às dez semanas. Tal referendo contribuiu para
que, desde 2007 até ao final de 2012, se tenham realizado 103582 dos quais 100583 são a pedido da mulher. Ao
abrigo da lei de 1984, que vigorou até ao referendo, e que permitia o aborto
por motivo de violação, malformação ou conflito entre vida da mãe e do filho, realizaram-se
2999. Os restantes são devidos à mudança ocorrida em 2007.
À luz de tudo isto, importa perguntar se
não terá sido, antes, todo um registo ideológico o que favoreceu que se tenha
chegado a esta crise demográfica. É, aliás, nesse sentido que se situa a carta pastoral
«a propósito da ideologia de género», publicada pela Conferência Episcopal
Portuguesa, em 14 de novembro de 2013. Ali, alerta-se para uma dinâmica que
alguns têm vindo a introduzir na sociedade portuguesa, no sentido de se fazer
passar uma nova mentalidade, que situa a sexualidade no registo da pura
influência cultural, como se esta não tivesse de atender à natureza que lhe é
anterior. Como se, de algum modo, o que se é fosse fruto puro e simples da
decisão de cada um, numa visão espantosamente individualista, amnésica perante
a constatação de que cada ser humano é a confluência do natural e do cultural e
não pura construção cultural.
Esta
crise demográfica é, mais do que tudo, uma crise de civilização, uma crise de
paradigma ético, entre uma abordagem em que a relação é parte intrínseca da
definição da identidade e uma outra em que o indivíduo é concebível sem a
existência dos demais. Será este segundo paradigma garante de certeza de
futuro? Poderá construir-se um país sobre a soma dos indivíduos ou deverá
pensar-se como a construção de uma comunidade?