O manto negro da morte abateu-se sobre a Europa
Em 1946, Churchill declarou, num célebre discurso
proferido no Missouri (EUA) do qual a história guardou uma marcante fórmula,
que «uma cortina de ferro se abateu sobre o continente». Hoje, derrubada a
cortina, uma nova e diáfana divisão se abate sobre a Europa, divisão que já não
se faz de geografia política, mas de paradigmas éticos.
Como então, também a nova cortina separa os que se
julgam detentores da vida dos outros dos que consideram a vida de outrem um bem
respeitável. A pergunta que valerá colocarmo-nos será, nesta hora, a que
pretende saber como se pôde chegar aqui. Em que tear se teceu a cortina?
«O tempo»! «O tempo» é a resposta. Tudo se conseguiu
com o tempo. Vale a pena constatar que, como outrora entre os gregos, os homens
revelam-se reféns do tempo, em vez de seus construtores.
Na verdade, bastou dar tempo e os belgas, que em
tempos foram os do grande rei Balduíno, aprovaram o impensável. Aqui se chegou
com o tempo. A Bélgica que, agora, aprova a licitude de eliminar o sofrimento
dos menores eliminando os menores chegou a este ponto, após legitimar, em 2002,
a eutanásia para adultos. Assistiu-se, neste país como em tantos outros, a um fenómeno
constatável quando se problematizam matérias de ética: o da vertigem do plano
inclinado. A aceitação do inaceitável não se processa abruptamente. É
progressiva, desenvolvendo a coletiva insensibilização. É conhecida a metáfora
do sapo na água quente. Se o sapo for lançado para um recipiente de água a
ferver, saltará para não ficar cozido. Porém, se a água for aquecida,
progressivamente, o sapo sucumbirá tranquilamente.
Bem certo que, com os humanos, a água é metáfora
pouco adequada, mas o lume brando pode permanecer válido.
A distância crítica facilmente permitirá constatar
a inaceitabilidade da decisão que foi aprovada na Câmara dos Representantes
Belga, quer no que respeita ao seu aspeto formal, quer material. Formalmente,
como pode legitimar-se que possa ver reconhecido o direito a decidir sobre a
vida ou a morte alguém a quem nem o direito de votar pode ser, ainda,
atribuível, por não possuir as condições para tal?
Materialmente, o problema não é de gravidade menor.
Como pode legitimar-se que se pretenda acabar com o sofrimento de alguém
optando, simplesmente, por eliminá-lo ou aceitar como legítima essa eliminação?
Seria torná-lo vítima duas vezes. O que urge ser resolvido é o sofrimento,
melhor, a dor, que deve ser abordada clinicamente. O sujeito da dor e do
sofrimento é alguém que transcende o facto de que é vítima. É, aliás, a
abordagem que cabe fazer sempre que se discute a legitimação da eutanásia, com
a agravante de, neste caso, se estar a falar de quem deveria merecer maior
proteção.
Estou convencido de que a surpresa que esta decisão
suscitará poderá fazer correr a cortina de que falávamos acima. Talvez muitos
despertem para o horizonte que esta vertigem atrativa pela morte está a abrir
diante de todos. Estamos, de facto, diante de uma cultura, de um cultivo
intencional da morte, por se pretender que a vida não seja, nunca, marcada por
qualquer tipo de fragilidade, como se fosse possível imaginar-se o ser humano
sem debilidade. Decisões como esta partilham de uma visão da vida humana, do ser
humano, que é urgente denunciar e repudiar. Não somos seres invulneráveis,
sempre fortes, sempre possantes. A vulnerabilidade faz parte do que somos. Ela
define-nos e só uma sociedade que aceita esta natureza é, verdadeiramente, uma
sociedade humana. De outro modo, é uma sociedade mítica e as sociedades míticas
constroem ídolos que se abatem sobre quem os cria.
De facto, só uma sociedade mítica pode admitir
considerar lícito que a morte de uma criança seja um bem, mesmo que a pretexto
do fim do seu sofrimento. Não só porque o sofrimento pode ser resolvido por
outra via, mas também porque tal pressupõe que aos adultos já não cabe proteger
a criança de todas as agressões, incluindo do medo que tem de sofrer.
Muitos querem fazer crer que as decisões de mudar
sejam sempre boas e que representem sinal de progresso. Uma das ideias míticas
da modernidade, bem certo! Mas nada mais do que isso, pois não estamos a
assistir a um avanço, mas a um regresso ao que faziam os gregos, os romanos, os
bárbaros e tantos povos, ao longo da história, a cujos comportamentos fomos
conquistando terreno, nos últimos dois mil anos, e estruturando uma civilização
que tinha/tem, na pessoa humana, o seu baluarte de defesa. Se perdermos este
registo, o que sobreviverá? Será tudo uma questão de tempo? Ou ainda iremos a
tempo de assegurar que a cultura da morte não vencerá? É que «poder fazer» não
é o mesmo que «poder ser feito», «poder» não é «dever». A democracia tem de ter
a noção de que esse é o seu limite. Nem tudo é democratizável. Antes da decisão
da maioria deve estar o bem da pessoa humana. A isso se propunham as
constituições dos países, mas a amnésia coletiva parece estar a contribuir para
o seu esquecimento. Os filósofos sabem a quem se deve esta convicção de que o
homem é só vontade de poder e que terríveis sociedades se organizaram sobre
esta convicção. Infelizmente, esse modelo de sociedade que não se implantou
pelo tonitruar das armas, está a chegar-nos pelo voto e pela decisão das
maiorias. Derrotado na guerra que moveu contra a democracia, o amante de Eva
Braun sai vencedor pelas próprias armas da democracia.
Está nas mãos de todos a possibilidade de que
muitos não façam com que o tempo devore os homens. É fundamental permanecer com
a sensibilidade ética bem desperta para que o sono das crianças possa continuar
tranquilo, mesmo quando se abeira o medo da noite!
Luís Silva