quinta-feira, janeiro 29, 2015

Caricaturas

Um inimigo nunca é bonito, nem bondoso e muito menos honesto. Sempre assim foi, ao longo da história, como retrata, de forma genial, Umberto Eco, no seu livro «construir o inimigo». Como se o inimigo fosse a personificação do demónio. Na verdade, a crónica dos conflitos da humanidade poderia ser definida como a história da construção de caricaturas mentais de cada um dos dois lados de cada barricada em relação ao adversário. E todas as guerras se encerraram quando a máscara do inimigo, entretanto criada na mente, caiu perante a constatação de que o outro, afinal, poderia ser belo, honesto e até bom e, por isso, bem diferente da demonização construída.
Já nos primeiros tempos do cristianismo, a religião emergente teve de se confrontar com caricaturas sobre si que serviram para justificar as reiteradas perseguições que lhe infligiram os vários imperadores, até que, em 313, Constantino, por édito de Milão, aceitou tolerar a nova religião. Tais caricaturas sempre a acompanharam, infelizmente, nestes dois mil anos de história. Dos primeiros séculos chegam-nos, por via indireta através de Orígenes, as palavras caricaturais proferidas por um romano, sobre quem pouco mais se sabe do que o nome, Celso, de quem sobrevivem, hoje, apenas sete décimos do seu «Contra os cristãos». Dizia ele sobre os cristãos que estes se comparam «a um bando de morcegos, a formigas saídas do seu buraco, a sapos reunidos em conselho em torno de um charco, a vermes em assembleia num canto do atoleiro, discutindo juntos quem dentre eles são os maiores pecadores.» Hoje, a linguagem poderá não ser tão plástica e depreciativa, mas as caricaturas do que seja o cristianismo não deixam de se espalhar com igual carga negativa. E os seus efeitos são enormes e difíceis de sanar. Na verdade, quem já não sentiu que uma determinada imagem de alguém, construída à força de tanto se dizer mal, impediu encontros possíveis e frutíferos, revelando-se, ao fim de tempo demorado, injusta e responsável por tantas perdas!? Se assim é no plano das relações quanto mais não o será no âmbito mais alargado das comunidades!
Ainda hoje, o retrato que fazem do cristianismo - e, de forma para nós mais sensível, do catolicismo – tantos que sobre ele falam nos meios de comunicação de maior impacto, muito contribui para a dificuldade da sua ação na humanização da sociedade, gerando dores difíceis de apagar.
Recordo, a título ilustrativo, duas situações constatadas recentemente.
Quem não recordou, na imagem repetida pelo Papa Francisco, no decurso da viagem apostólica à Ásia, segundo a qual «creem alguns que, para ser bons católicos, devem ser como coelhos» a caricatura tantas vezes ouvida a muitos que falam do que supostamente dirá o cristianismo sobre a sexualidade, quando, na verdade, mais não fazem do que enunciar os seus próprios preconceitos?
Esta é uma caricatura reiteradamente pintada na mente dos mais imprudentes, esvaziando a densidade da mensagem a uma feia imagem que tudo se fará para afastar. Li, por altura das afirmações do Papa Francisco, o que se dizia num blogue que mereceu destaque de alguma imprensa digital. Dizia-se, naquele blogue, intitulado «delito de opinião», que «não fosse o ditame "crescei e multiplicai-vos" e a sexualidade jamais seria tolerada pela moral cristã. Mas como para povoar a Terra é absolutamente necessário ceder aos prazeres da carne, não há outro remédio senão abençoar o ato, mediante certas condições, como se sabe. Uma é o casamento, outra é a cópula espiritualmente assistida, ou seja, estritamente orientada para a procriação. Tudo o mais é luxúria, egoísmo, concubinato.» Estas palavras que, pelo simplismo, mais não são do que uma efetiva caricatura do que seja a abordagem cristã sobre a sexualidade, eram encimadas por um título igualmente esclarecedor: «fazer filhos por dever é triste». Sê-lo-á, certamente, mas duvido que algum cristão esclarecido e que não viva uma caricatura do cristianismo «tenha» filhos por dever. Antes, acolhe-os como dom. E isso faz toda a diferença, capaz de devolver a condição humana a filhos que, de outro modo, correm o risco de se tornar um bem disponível.
Junto a esta caricatura sobre matéria tão sensível uma outra, relevante no contexto da discussão ecuménica (diálogo entre os cristãos de confissão protestante, católica e ortodoxa). Dei-me conta dela num documentário sobre o Papa Bento XVI, em que se entrevistava a diretora de uma faculdade luterana de teologia, durante a qual a mesma diretora afirmava que os protestantes se alegravam por verificar que o Papa decidira dedicar três volumes ao estudo da figura de Jesus de Nazaré, revelando que, afinal, os católicos também leem a Bíblia. A surpresa desta diretora de uma faculdade de teologia protestante não pode senão suscitar surpresa: surpresa que gera surpresa. Tal afirmação é reveladora de que temos de nos sentar à mesa do ecumenismo e dialogar, para, enfim, constatarmos, provavelmente, que estamos «zangados» porque pensamos que os outros estão «zangados» connosco. E a caricatura que construímos na nossa mente cairá porque não tem suporte na realidade. Este será, provavelmente, o grande desafio do ecumenismo, hoje. Dizermos o que pensamos sobre os outros cristãos e ouvirmos o que dizem de nós para cruzarmos as caricaturas mentais com o que, de facto, a realidade revela.

Confesso, aliás, um secreto desejo: o de assistir, em vida, à unidade dos cristãos, em particular, com os Ortodoxos, em relação a quem a proximidade teológica e eclesiológica é maior. Mas, para isso, será necessário insistir em olhar para além das caricaturas e ver a verdadeira realidade. Porque a verdade libertará.

terça-feira, janeiro 06, 2015

Quanto pode Deus perante o mal?

Li, há dias, num insuspeito jornal de economia, a afirmação de um destacado líder político nacional que dizia que acreditara em Deus até ao dia em que lhe morrera o irmão.
Não pude ficar indiferente a esta afirmação, como terá ocorrido com tantos outros que se depararam com esta surpreendente declaração.
O primeiro sentimento que tal declaração suscita não pode ser senão a da solidariedade na dor da perda de um irmão. Poucas expressões de sofrimento serão maiores do que essa. Talvez só a da perda de um filho.
Contudo, num segundo passo, não resisti ao esforço de interpretar o significado destas palavras, já distantes, no tempo, das razões existenciais que as motivam.
Na realidade, estas palavras, ditas na primeira pessoa, ecoam a densa discussão sobre o que pode Deus diante do mal. Pergunta que emerge quando o mal ocorre com aparência de quase absurdo, seja pelas vítimas que faz, seja pela dureza a que se associa. Assim aconteceu, quando em 2004, a onda gigante, cujo nome era até então apenas reconhecido por especialistas, fez identificar tsunami com morte e terror. Então, como já ocorrera em 1755, quando, em 1 de novembro, a periférica cidade de Lisboa fez ressoar pela Europa fora a interrogação sobre onde estava Deus e a que se devia o mal, a pergunta não deixa ninguém indiferente. Nomes como Rousseau, Voltaire, ou o grande Kant, participaram em acesas discussões que pareciam ter dificuldade em sair de um círculo vicioso que continua bem fresco: ou Deus pode e não quer acabar com o mal; ou quer e não pode.
Antes de procurarmos uma resposta, gostaria de adiantar, desde já, que valerá a pena constatar o seguinte: a afirmação segundo a qual se deixou de acreditar em Deus porque um nosso irmão nos morreu resulta de não nos darmos conta de que, nessa hora, abandonámos aquilo que, precisamente nesse momento, tinha a oportunidade de mostrar a sua valia. Como se alguém despejasse o copo de água na hora em que sentia sede, suspeitando de que era por ver a água que se lhe despertava a sede. Dito de outro modo: face à morte, não deveríamos perguntar-nos sobre onde está Deus, mas constatar, antes, que a Deus devemos a possibilidade de dar sentido à morte, ao mal, pois, de outro modo, já nada restará e o mal e a morte terão a última palavra.
Na verdade, muitas têm sido as tentativas de conciliar a existência de Deus e a existência do mal, mas dificilmente se consegue essa conciliação se situarmos Deus no mesmo nível das nossas possibilidades de conhecimento. O primeiro erro está, precisamente, em considerar Deus como uma causa entre outras, agindo à maneira das forças de que dispomos. Na realidade, podemos dispor das fontes de energia, das forças motrizes que fazem mover determinados objetos, etc., contudo, a causa das causas está além das nossas disponibilidades. Neste pressuposto, continuaremos, contudo, a sentir a crueza da presença do mal que nos aflige e nos leva a perguntar, sempre de modo renovado, sobre onde está Deus.
Uns quiseram reduzir o mal à simples ausência do bem e eliminá-lo como se de nada se tratasse; outros pretenderam atribuir o sofrimento do mal a pecados merecedores de pena adequada, à maneira de uma retribuição a que Deus condenaria a humanidade, tese rejeitada pelo próprio Jesus, quando lhe apresentam um cego de nascença (Cfr Jo 9, 1-41); outros, ainda, quiseram sossegar a interrogação bastando-se em considerar que este era, afinal, o melhor dos mundos e que saber isso seria suficiente; outros, por fim, quiseram colocar o mal ao serviço de um bem maior, não escapando à crítica de que se tal fosse verdade, muita seria a crueldade de Alguém que faria um mundo em que uns seriam cilindrados para benefício de outros.
Confesso-me muito próximo do que pensa, sobre esta matéria, um teólogo de Santiago de Compostela, Andrés Torres Queiruga, para quem Deus é a origem permanente do bem, mas que cria o mundo em liberdade, porque a liberdade é a condição do amor. Ao criar o mundo, Deus «depara-se» com uma de duas possibilidades: ou criar o mundo, sabendo que ele terá de ser imperfeito, pois não é possível fazê-lo perfeito, dado que assim, seria, não mundo, mas Deus; ou, então, simplesmente não criar, pois não haveria uma terceira possibilidade. A escolha de Deus é a de criar, sendo o próprio ato criador um ato de salvação do nada. Mas essa é a condição do mundo: sendo livre, ser também limitado e por isso marcado pela fragilidade e pelo mal. Assim, o mal não tem origem em Deus, mas na condição de fragilidade e limite que é inerente à criatura, à criação. Criado o mundo, Deus continua, em cada momento, a chamá-lo ao bem e à plena realização. Quando o chamamento de Deus é correspondido pela resposta livre da criatura, emerge o bem; quando o chamamento de Deus não é correspondido e a criatura se desvia dessa plenitude de perfeição, emerge o mal.
Ora, sendo esta uma resposta abstrata e aparentemente teórica, não é suficiente sem constatar que, na pessoa de Jesus Cristo, esse encontro de total coincidência entre o chamamento de Deus e a resposta humana é absoluta. E nesse encontro verifica-se que a resposta de Deus não é a da indiferença perante o mal, mas antes a da sua assunção total. Poderíamos dizer que, sendo Jesus o inocente por excelência, aceita a morte, ainda que não a deseje, como bem demonstram as afirmações repetidas, nos momentos que a antecedem. E aceita-a, não como demonstração de força, nem porque nele a morte seja uma aparência, como pretendiam algumas heresias dos primeiros séculos (o caso mais claro é o do docetismo), mas sim, primeiro, por fidelidade à verdade, não recuando perante as consequências de lhe permanecer vinculado, e, segundo, porque a certeza de que Deus vencerá a morte o faz olhá-la de frente. A resposta definitiva à morte e ao mal está nesta solidariedade de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, que evidencia, na ressurreição, que a morte não tem a última palavra e, nela, toda a expressão do mal.
Neste quadro, a encarnação de Deus, celebrada no Natal, é já a primeira expressão da tremenda solidariedade de Deus para com a criação. Na resposta coincidente entre o humano e o divino, na pessoa de Jesus, está expressa a certeza de que a fragilidade, o mal, a finitude, não são a condição final e definitiva, mas a primeira condição em que se antecipa a definitiva. Haverá que ver nos sinais de emergência do bem a marca forte de que o mal só emerge quando a resposta da criatura diverge do permanente chamamento à plena realização. Deus não só não abandona, como sempre pretende a resposta que eleve a criatura à perfeição. Mas o amor não se impõe, realiza-se em liberdade. E poder não se realizar é uma possibilidade que Deus não quer e tudo faz para impedir, na medida do amor que não obriga (antes respeita a resposta livre).

Num irmão que morre, Deus desce com ele à morte para o elevar à vida.

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

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