Li, há dias, num insuspeito jornal de economia, a
afirmação de um destacado líder político nacional que dizia que acreditara em
Deus até ao dia em que lhe morrera o irmão.
Não pude ficar indiferente a esta afirmação, como
terá ocorrido com tantos outros que se depararam com esta surpreendente declaração.
O primeiro sentimento que tal declaração suscita
não pode ser senão a da solidariedade na dor da perda de um irmão. Poucas
expressões de sofrimento serão maiores do que essa. Talvez só a da perda de um
filho.
Contudo, num segundo passo, não resisti ao esforço
de interpretar o significado destas palavras, já distantes, no tempo, das
razões existenciais que as motivam.
Na realidade, estas palavras, ditas na primeira
pessoa, ecoam a densa discussão sobre o que pode Deus diante do mal. Pergunta
que emerge quando o mal ocorre com aparência de quase absurdo, seja pelas
vítimas que faz, seja pela dureza a que se associa. Assim aconteceu, quando em
2004, a onda gigante, cujo nome era até então apenas reconhecido por
especialistas, fez identificar tsunami com morte e terror. Então, como já
ocorrera em 1755, quando, em 1 de novembro, a periférica cidade de Lisboa fez
ressoar pela Europa fora a interrogação sobre onde estava Deus e a que se devia
o mal, a pergunta não deixa ninguém indiferente. Nomes como Rousseau, Voltaire,
ou o grande Kant, participaram em acesas discussões que pareciam ter
dificuldade em sair de um círculo vicioso que continua bem fresco: ou Deus pode
e não quer acabar com o mal; ou quer e não pode.
Antes de procurarmos uma resposta, gostaria de
adiantar, desde já, que valerá a pena constatar o seguinte: a afirmação segundo
a qual se deixou de acreditar em Deus porque um nosso irmão nos morreu resulta
de não nos darmos conta de que, nessa hora, abandonámos aquilo que,
precisamente nesse momento, tinha a oportunidade de mostrar a sua valia. Como
se alguém despejasse o copo de água na hora em que sentia sede, suspeitando de
que era por ver a água que se lhe despertava a sede. Dito de outro modo: face à
morte, não deveríamos perguntar-nos sobre onde está Deus, mas constatar, antes,
que a Deus devemos a possibilidade de dar sentido à morte, ao mal, pois, de
outro modo, já nada restará e o mal e a morte terão a última palavra.
Na verdade, muitas têm sido as tentativas de
conciliar a existência de Deus e a existência do mal, mas dificilmente se
consegue essa conciliação se situarmos Deus no mesmo nível das nossas
possibilidades de conhecimento. O primeiro erro está, precisamente, em
considerar Deus como uma causa entre outras, agindo à maneira das forças de que
dispomos. Na realidade, podemos dispor das fontes de energia, das forças
motrizes que fazem mover determinados objetos, etc., contudo, a causa das
causas está além das nossas disponibilidades. Neste pressuposto, continuaremos,
contudo, a sentir a crueza da presença do mal que nos aflige e nos leva a
perguntar, sempre de modo renovado, sobre onde está Deus.
Uns quiseram reduzir o mal à simples ausência do
bem e eliminá-lo como se de nada se tratasse; outros pretenderam atribuir o
sofrimento do mal a pecados merecedores de pena adequada, à maneira de uma
retribuição a que Deus condenaria a humanidade, tese rejeitada pelo próprio
Jesus, quando lhe apresentam um cego de nascença (Cfr Jo 9, 1-41); outros,
ainda, quiseram sossegar a interrogação bastando-se em considerar que este era,
afinal, o melhor dos mundos e que saber isso seria suficiente; outros, por fim,
quiseram colocar o mal ao serviço de um bem maior, não escapando à crítica de
que se tal fosse verdade, muita seria a crueldade de Alguém que faria um mundo
em que uns seriam cilindrados para benefício de outros.
Confesso-me muito próximo do que pensa, sobre esta
matéria, um teólogo de Santiago de Compostela, Andrés Torres Queiruga, para
quem Deus é a origem permanente do bem, mas que cria o mundo em liberdade,
porque a liberdade é a condição do amor. Ao criar o mundo, Deus «depara-se» com
uma de duas possibilidades: ou criar o mundo, sabendo que ele terá de ser
imperfeito, pois não é possível fazê-lo perfeito, dado que assim, seria, não
mundo, mas Deus; ou, então, simplesmente não criar, pois não haveria uma
terceira possibilidade. A escolha de Deus é a de criar, sendo o próprio ato
criador um ato de salvação do nada. Mas essa é a condição do mundo: sendo
livre, ser também limitado e por isso marcado pela fragilidade e pelo mal.
Assim, o mal não tem origem em Deus, mas na condição de fragilidade e limite
que é inerente à criatura, à criação. Criado o mundo, Deus continua, em cada
momento, a chamá-lo ao bem e à plena realização. Quando o chamamento de Deus é
correspondido pela resposta livre da criatura, emerge o bem; quando o
chamamento de Deus não é correspondido e a criatura se desvia dessa plenitude
de perfeição, emerge o mal.
Ora, sendo esta uma resposta abstrata e
aparentemente teórica, não é suficiente sem constatar que, na pessoa de Jesus
Cristo, esse encontro de total coincidência entre o chamamento de Deus e a
resposta humana é absoluta. E nesse encontro verifica-se que a resposta de Deus
não é a da indiferença perante o mal, mas antes a da sua assunção total.
Poderíamos dizer que, sendo Jesus o inocente por excelência, aceita a morte,
ainda que não a deseje, como bem demonstram as afirmações repetidas, nos
momentos que a antecedem. E aceita-a, não como demonstração de força, nem
porque nele a morte seja uma aparência, como pretendiam algumas heresias dos
primeiros séculos (o caso mais claro é o do docetismo), mas sim, primeiro, por
fidelidade à verdade, não recuando perante as consequências de lhe permanecer
vinculado, e, segundo, porque a certeza de que Deus vencerá a morte o faz
olhá-la de frente. A resposta definitiva à morte e ao mal está nesta
solidariedade de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, que evidencia, na
ressurreição, que a morte não tem a última palavra e, nela, toda a expressão do
mal.
Neste quadro, a encarnação de Deus, celebrada no
Natal, é já a primeira expressão da tremenda solidariedade de Deus para com a
criação. Na resposta coincidente entre o humano e o divino, na pessoa de Jesus,
está expressa a certeza de que a fragilidade, o mal, a finitude, não são a
condição final e definitiva, mas a primeira condição em que se antecipa a
definitiva. Haverá que ver nos sinais de emergência do bem a marca forte de que
o mal só emerge quando a resposta da criatura diverge do permanente chamamento
à plena realização. Deus não só não abandona, como sempre pretende a resposta
que eleve a criatura à perfeição. Mas o amor não se impõe, realiza-se em
liberdade. E poder não se realizar é uma possibilidade que Deus não quer e tudo
faz para impedir, na medida do amor que não obriga (antes respeita a resposta livre).
Num irmão que morre, Deus desce com ele à morte
para o elevar à vida.