terça-feira, janeiro 06, 2015

Quanto pode Deus perante o mal?

Li, há dias, num insuspeito jornal de economia, a afirmação de um destacado líder político nacional que dizia que acreditara em Deus até ao dia em que lhe morrera o irmão.
Não pude ficar indiferente a esta afirmação, como terá ocorrido com tantos outros que se depararam com esta surpreendente declaração.
O primeiro sentimento que tal declaração suscita não pode ser senão a da solidariedade na dor da perda de um irmão. Poucas expressões de sofrimento serão maiores do que essa. Talvez só a da perda de um filho.
Contudo, num segundo passo, não resisti ao esforço de interpretar o significado destas palavras, já distantes, no tempo, das razões existenciais que as motivam.
Na realidade, estas palavras, ditas na primeira pessoa, ecoam a densa discussão sobre o que pode Deus diante do mal. Pergunta que emerge quando o mal ocorre com aparência de quase absurdo, seja pelas vítimas que faz, seja pela dureza a que se associa. Assim aconteceu, quando em 2004, a onda gigante, cujo nome era até então apenas reconhecido por especialistas, fez identificar tsunami com morte e terror. Então, como já ocorrera em 1755, quando, em 1 de novembro, a periférica cidade de Lisboa fez ressoar pela Europa fora a interrogação sobre onde estava Deus e a que se devia o mal, a pergunta não deixa ninguém indiferente. Nomes como Rousseau, Voltaire, ou o grande Kant, participaram em acesas discussões que pareciam ter dificuldade em sair de um círculo vicioso que continua bem fresco: ou Deus pode e não quer acabar com o mal; ou quer e não pode.
Antes de procurarmos uma resposta, gostaria de adiantar, desde já, que valerá a pena constatar o seguinte: a afirmação segundo a qual se deixou de acreditar em Deus porque um nosso irmão nos morreu resulta de não nos darmos conta de que, nessa hora, abandonámos aquilo que, precisamente nesse momento, tinha a oportunidade de mostrar a sua valia. Como se alguém despejasse o copo de água na hora em que sentia sede, suspeitando de que era por ver a água que se lhe despertava a sede. Dito de outro modo: face à morte, não deveríamos perguntar-nos sobre onde está Deus, mas constatar, antes, que a Deus devemos a possibilidade de dar sentido à morte, ao mal, pois, de outro modo, já nada restará e o mal e a morte terão a última palavra.
Na verdade, muitas têm sido as tentativas de conciliar a existência de Deus e a existência do mal, mas dificilmente se consegue essa conciliação se situarmos Deus no mesmo nível das nossas possibilidades de conhecimento. O primeiro erro está, precisamente, em considerar Deus como uma causa entre outras, agindo à maneira das forças de que dispomos. Na realidade, podemos dispor das fontes de energia, das forças motrizes que fazem mover determinados objetos, etc., contudo, a causa das causas está além das nossas disponibilidades. Neste pressuposto, continuaremos, contudo, a sentir a crueza da presença do mal que nos aflige e nos leva a perguntar, sempre de modo renovado, sobre onde está Deus.
Uns quiseram reduzir o mal à simples ausência do bem e eliminá-lo como se de nada se tratasse; outros pretenderam atribuir o sofrimento do mal a pecados merecedores de pena adequada, à maneira de uma retribuição a que Deus condenaria a humanidade, tese rejeitada pelo próprio Jesus, quando lhe apresentam um cego de nascença (Cfr Jo 9, 1-41); outros, ainda, quiseram sossegar a interrogação bastando-se em considerar que este era, afinal, o melhor dos mundos e que saber isso seria suficiente; outros, por fim, quiseram colocar o mal ao serviço de um bem maior, não escapando à crítica de que se tal fosse verdade, muita seria a crueldade de Alguém que faria um mundo em que uns seriam cilindrados para benefício de outros.
Confesso-me muito próximo do que pensa, sobre esta matéria, um teólogo de Santiago de Compostela, Andrés Torres Queiruga, para quem Deus é a origem permanente do bem, mas que cria o mundo em liberdade, porque a liberdade é a condição do amor. Ao criar o mundo, Deus «depara-se» com uma de duas possibilidades: ou criar o mundo, sabendo que ele terá de ser imperfeito, pois não é possível fazê-lo perfeito, dado que assim, seria, não mundo, mas Deus; ou, então, simplesmente não criar, pois não haveria uma terceira possibilidade. A escolha de Deus é a de criar, sendo o próprio ato criador um ato de salvação do nada. Mas essa é a condição do mundo: sendo livre, ser também limitado e por isso marcado pela fragilidade e pelo mal. Assim, o mal não tem origem em Deus, mas na condição de fragilidade e limite que é inerente à criatura, à criação. Criado o mundo, Deus continua, em cada momento, a chamá-lo ao bem e à plena realização. Quando o chamamento de Deus é correspondido pela resposta livre da criatura, emerge o bem; quando o chamamento de Deus não é correspondido e a criatura se desvia dessa plenitude de perfeição, emerge o mal.
Ora, sendo esta uma resposta abstrata e aparentemente teórica, não é suficiente sem constatar que, na pessoa de Jesus Cristo, esse encontro de total coincidência entre o chamamento de Deus e a resposta humana é absoluta. E nesse encontro verifica-se que a resposta de Deus não é a da indiferença perante o mal, mas antes a da sua assunção total. Poderíamos dizer que, sendo Jesus o inocente por excelência, aceita a morte, ainda que não a deseje, como bem demonstram as afirmações repetidas, nos momentos que a antecedem. E aceita-a, não como demonstração de força, nem porque nele a morte seja uma aparência, como pretendiam algumas heresias dos primeiros séculos (o caso mais claro é o do docetismo), mas sim, primeiro, por fidelidade à verdade, não recuando perante as consequências de lhe permanecer vinculado, e, segundo, porque a certeza de que Deus vencerá a morte o faz olhá-la de frente. A resposta definitiva à morte e ao mal está nesta solidariedade de Deus, na pessoa de Jesus Cristo, que evidencia, na ressurreição, que a morte não tem a última palavra e, nela, toda a expressão do mal.
Neste quadro, a encarnação de Deus, celebrada no Natal, é já a primeira expressão da tremenda solidariedade de Deus para com a criação. Na resposta coincidente entre o humano e o divino, na pessoa de Jesus, está expressa a certeza de que a fragilidade, o mal, a finitude, não são a condição final e definitiva, mas a primeira condição em que se antecipa a definitiva. Haverá que ver nos sinais de emergência do bem a marca forte de que o mal só emerge quando a resposta da criatura diverge do permanente chamamento à plena realização. Deus não só não abandona, como sempre pretende a resposta que eleve a criatura à perfeição. Mas o amor não se impõe, realiza-se em liberdade. E poder não se realizar é uma possibilidade que Deus não quer e tudo faz para impedir, na medida do amor que não obriga (antes respeita a resposta livre).

Num irmão que morre, Deus desce com ele à morte para o elevar à vida.

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