Um inimigo nunca é bonito, nem
bondoso e muito menos honesto. Sempre assim foi, ao longo da história, como
retrata, de forma genial, Umberto Eco, no seu livro «construir o inimigo». Como
se o inimigo fosse a personificação do demónio. Na verdade, a crónica dos
conflitos da humanidade poderia ser definida como a história da construção de
caricaturas mentais de cada um dos dois lados de cada barricada em relação ao
adversário. E todas as guerras se encerraram quando a máscara do inimigo, entretanto
criada na mente, caiu perante a constatação de que o outro, afinal, poderia ser
belo, honesto e até bom e, por isso, bem diferente da demonização construída.
Já nos primeiros tempos do
cristianismo, a religião emergente teve de se confrontar com caricaturas sobre
si que serviram para justificar as reiteradas perseguições que lhe infligiram
os vários imperadores, até que, em 313, Constantino, por édito de Milão,
aceitou tolerar a nova religião. Tais caricaturas sempre a acompanharam,
infelizmente, nestes dois mil anos de história. Dos primeiros séculos
chegam-nos, por via indireta através de Orígenes, as palavras caricaturais
proferidas por um romano, sobre quem pouco mais se sabe do que o nome, Celso, de
quem sobrevivem, hoje, apenas sete décimos do seu «Contra os cristãos». Dizia ele
sobre os cristãos que estes se comparam «a um bando de morcegos, a formigas
saídas do seu buraco, a sapos reunidos em conselho em torno de um charco, a
vermes em assembleia num canto do atoleiro, discutindo juntos quem dentre eles
são os maiores pecadores.» Hoje, a linguagem poderá não ser tão plástica e
depreciativa, mas as caricaturas do que seja o cristianismo não deixam de se
espalhar com igual carga negativa. E os seus efeitos são enormes e difíceis de
sanar. Na verdade, quem já não sentiu que uma determinada imagem de alguém,
construída à força de tanto se dizer mal, impediu encontros possíveis e
frutíferos, revelando-se, ao fim de tempo demorado, injusta e responsável por
tantas perdas!? Se assim é no plano das relações quanto mais não o será no
âmbito mais alargado das comunidades!
Ainda hoje, o retrato que fazem
do cristianismo - e, de forma para nós mais sensível, do catolicismo – tantos
que sobre ele falam nos meios de comunicação de maior impacto, muito contribui para
a dificuldade da sua ação na humanização da sociedade, gerando dores difíceis
de apagar.
Recordo,
a título ilustrativo, duas situações constatadas recentemente.
Quem
não recordou, na imagem repetida pelo Papa Francisco, no decurso da viagem
apostólica à Ásia, segundo a qual «creem alguns que, para ser bons católicos, devem ser como
coelhos»
a caricatura tantas vezes ouvida a muitos que falam do que supostamente dirá o
cristianismo sobre a sexualidade, quando, na verdade, mais não fazem do que
enunciar os seus próprios preconceitos?
Esta é uma caricatura
reiteradamente pintada na mente
dos mais imprudentes, esvaziando a densidade da mensagem a uma feia imagem que tudo
se fará para afastar. Li, por altura das afirmações do Papa Francisco, o que se
dizia num blogue que mereceu destaque de alguma imprensa digital. Dizia-se,
naquele blogue, intitulado «delito de opinião», que «não fosse o ditame
"crescei e multiplicai-vos" e a sexualidade jamais seria tolerada
pela moral cristã. Mas como para povoar a Terra é absolutamente necessário
ceder aos prazeres da carne, não há outro remédio senão abençoar o ato,
mediante certas condições, como se sabe. Uma é o casamento, outra é a cópula
espiritualmente assistida, ou seja, estritamente orientada para a procriação.
Tudo o mais é luxúria, egoísmo, concubinato.»
Estas palavras que, pelo simplismo, mais não são do que uma efetiva caricatura
do que seja a abordagem cristã sobre a sexualidade, eram encimadas por um
título igualmente esclarecedor: «fazer filhos por dever é triste». Sê-lo-á,
certamente, mas duvido que algum cristão esclarecido e que não viva uma
caricatura do cristianismo «tenha» filhos por dever. Antes, acolhe-os como dom.
E isso faz toda a diferença, capaz de devolver a condição humana a filhos que,
de outro modo, correm o risco de se tornar um bem disponível.
Junto
a esta caricatura sobre matéria tão sensível uma outra, relevante no contexto
da discussão ecuménica (diálogo entre os cristãos de confissão protestante,
católica e ortodoxa). Dei-me conta dela num documentário sobre o Papa Bento
XVI, em que se entrevistava a diretora de uma faculdade luterana de teologia,
durante a qual a mesma diretora afirmava que os protestantes se alegravam por
verificar que o Papa decidira dedicar três volumes ao estudo da figura de Jesus
de Nazaré, revelando que, afinal, os católicos também leem a Bíblia. A surpresa
desta diretora de uma faculdade de teologia protestante não pode senão suscitar
surpresa: surpresa que gera surpresa. Tal afirmação é reveladora de que temos
de nos sentar à mesa do ecumenismo e dialogar, para, enfim, constatarmos,
provavelmente, que estamos «zangados» porque pensamos que os outros estão
«zangados» connosco. E a caricatura que construímos na nossa mente cairá porque
não tem suporte na realidade. Este será, provavelmente, o grande desafio do
ecumenismo, hoje. Dizermos o que pensamos sobre os outros cristãos e ouvirmos o
que dizem de nós para cruzarmos as caricaturas mentais com o que, de facto, a
realidade revela.
Confesso,
aliás, um secreto desejo: o de assistir, em vida, à unidade dos cristãos, em
particular, com os Ortodoxos, em relação a quem a proximidade teológica e
eclesiológica é maior. Mas, para isso, será necessário insistir em olhar para
além das caricaturas e ver a verdadeira realidade. Porque a verdade libertará.