domingo, março 22, 2015

Do homem caído ao bom samaritano - Quem é, afinal, o próximo?

Se alguém perguntasse, num inquérito de rua, a quem é que Jesus reconhece a condição de próximo, seriam muito poucos os que não diriam que o próximo é o mais frágil, o homem caído, o homem que é vítima. Contudo, curiosamente, apesar da frequência com que lemos, distraidamente, a parábola onde Jesus reflete a sua visão sobre este problema - a parábola do bom samaritano (Lc 10,29-37) - raramente nos teremos apercebido de que a resposta que Jesus dá à pergunta não é aquela que costumamos concluir.
Na verdade, para nos situarmos, a pergunta que é feita a Jesus por um doutor da lei era armadilhada: se Jesus confirmasse o que já dizia a lei judaica, nada teria de novo, sendo que a lei judaica nada mais fazia do que reconhecer como próximo aquele que pertence à religião ou à comunidade judaica. Aos que não eram da condição judaica, era difícil reconhecer-se essa condição de proximidade. Na verdade, em Lv 19,18, que o doutor da Lei recorda, dizia-se, textualmente, que «não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo. Amarás o teu próximo como a ti mesmo.» Ficava, assim, sancionado, que o próximo era o que pertencia ao povo.
Já se Jesus ousasse afirmar algo que divergisse da lei judaica, incorreria em blasfémia, colocando-se em situação de ser perseguido. A pergunta não era, por isso, formulada sem escolhos.
A inteligência da resposta de Jesus está em encontrar a via que responde à pergunta sem incorrer em nenhum dos dois erros esperados: nem substitui a lei, nem se fica pela sua mera repetição formal. Antes, desloca a condição de próximo para um outro sujeito.
Na realidade, a história que Jesus conta, e que confere o protagonismo a uma inesperada personagem depreciada pelos judeus (o estatuto de um samaritano era, entre os judeus, não superior ao que, infelizmente, a sociedade portuguesa atribui, por exemplo, a um cigano. O samaritano da história poderia ser, hoje, um cigano. Mas, também hoje, um cigano poderia, certamente, ser um bom samaritano!) não nos diz que o próximo é «o homem que caiu no meio de salteadores, sendo despojado e espancado». Antes, Jesus inverte a condição de próximo, retirando-lhe este estatuto de quem beneficia da ajuda para a atribuir a quem ajuda. Na verdade, quando termina a parábola, a pergunta que Jesus faz não é «quem foi o próximo do bom samaritano, a quem ele ajudou», mas sim «quem foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos salteadores?». Esta deslocação não só escapa à crítica, mas introduz uma novidade que importa ter em conta. Ser próximo já não é uma condição passiva, de quem aguarda a comiseração dos outros. Antes, é a condição ativa dos que se deixam compadecer. Com efeito, a compaixão e a simpatia, no seu sentido etimológico original, são palavras sinónimas: a primeira, de origem latina; a segunda, de origem grega. As duas querem dizer o mesmo: «sofrer com o outro» («passio» e «pathos» deram origem, em português a «paixão» e «patológico», por exemplo). O próximo não é o que recebe a compaixão, mas o que se dispõe a compadecer-se. Por isso, nem o sacerdote nem o levita da parábola foram próximos daquele homem.
Esta inversão do sujeito da proximidade tem consequências enormes. Nela se funda a ética cristã. Ela não é, apenas, a constatação de que alguém necessita de ajuda, de que alguém está aí, diante de nós, a necessitar de auxílio. Antes, só quando aquele que necessita de auxílio vê a sua condição assumida por outro é que se gerou a proximidade. Ser próximo não é, assim, um estatuto passivo, mas uma condição ativa. E deixa de ter barreiras de qualquer tipo sejam religiosas, políticas, de nacionalidade ou outras.
A força desta parábola é tal que devemos reconhecer, como já fizera, em 2004, o então presidente da República Federal Alemã, Horst Köhler, que as próprias leis humanistas europeias nascem da cultura gerada por esta narrativa de Jesus. Este importante líder político dizia, em 1 de dezembro desse ano, na universidade de Tubinga, que «quando hoje consideramos a «recusa de ajuda» como um facto punível, isso é também uma longínqua consequência da parábola do bom samaritano. Esta prática do amor ao próximo, na qual não pergunto qual o grau de proximidade tem o outro para comigo, faz parte do firme património da Europa, apesar de todos os incumprimentos nos quais se incorre em relação a este mandamento.»
O desafio continua válido. Tantos, diante de nós, necessitados de ajuda, mas ainda não nos decidimos a ser próximos deles. Eles estão aí, mas a evidência da sua presença parece não gerar proximidade. Falta, na verdade, que se dê lugar à ética que suplante os simples factos sociológicos. Se não for assim, os necessitados podem nunca deixar de ser transparentes, invisíveis e nunca beneficiarão da condição de proximidade dos que se deveriam deixar inquietar. É que, como bem lembrava Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate, «A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos.» (CV 19) Só o olhar de bom samaritano gera proximidade.


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