A dívida do Ocidente ao Cristianismo ultrapassa,
largamente, o âmbito das enumerações de todos os nomes que contribuíram para a
cultura, para a ciência, para as artes, para os temas de literatura ou muitos outros
âmbitos que possam enumerar-se. Provavelmente, entre os maiores contributos que
se devem ao Cristianismo está, tão simplesmente, um conceito, uma ideia. A
ideia de Pessoa. Os gregos não a tinham. Os gregos fundiam os indivíduos ou na
ordem da natureza, da essência, ou no âmbito da sua atuação enquanto cidadãos.
Não tinham, nem por sombras, a ideia de pessoa que veio a forjar-se no contexto
polémico das discussões sobre a Trindade, que quase dividiram em duas a Igreja cristã,
em pleno século IV.
Na verdade, a ideia de «pessoa» só se concebe
quando, perante a constatação cristã de que Deus não podia senão ser um só, mas
que se revelara como Pai, Filho e Espírito Santo, se verifica que era preciso
encontrar uma noção capaz de dizer a diversidade em Deus, sem nessa afirmação
se perder a unidade.
Mais ainda, havia que superar um limite que a filosofia
(a metafísica, para ser mais preciso) de Aristóteles impunha: na tábua das
categorias aristotélicas, a «relação» era compreendida como um acidente, isto
é, como um acrescento que se adicionava à substância, àquilo que era subjacente
a determinado ente e que definia a sua natureza própria. O dilema estava em
encontrar o equilíbrio entre afirmar a unidade, sem esconder a diversidade num
qualquer modalismo (como fazia Sabélio e outros) ou afirmar a diversidade de
tal modo que, para não se cair no triteísmo (três deuses), se acabava por
diminuir a «divindade» do Filho e do Espírito Santo, caindo no adocionismo de
tipo arianista.
A resposta a este duro dilema deu-se porque os
cristãos dos primeiros séculos souberam perceber que os dogmas não são verdades
fechadas, mas desafios que interpelam a superar as barreiras dos limites
conceptuais. Sempre assim foi, ao longo da história, apesar da ideia errada de
que os dogmas da Igreja são manifestação de um pensamento «dogmático», no
sentido de a-crítico. Tal não é, de facto, verdade, e, pelo contrário,
constituiu-se como repto a descobrirem-se formas de dizer o que parecia
indizível.
Assim aconteceu com o problema da unidade e
diversidade de e em Deus. Tal só foi possível organizar-se em pensamento
compreensível através da criação do conceito de pessoa. Na verdade, só se
compreende a fecundidade deste conceito se nos dermos conta de que ele não se
confunde com o de indivíduo. Com efeito, se a ideia de pessoa coincidisse com a
de indivíduo, numa perspetiva de algo fechado em si mesmo e quantificável, o
risco de afirmação de três deuses seria enorme. Havia, por isso, que encontrar
outro conceito que, em si mesmo, integrasse, contrariamente aos limites
aristotélicos, a ideia de relação.
Talvez o maior contributo para esta superação nos
venha de Santo Agostinho, na sua obra De
Trinitate, escrita ao longo de vinte anos. Ao centrar a sua reflexão na
ideia do amor, tomando a definição da essência feita por S. João, o bispo de
Hipona retira a relacionalidade do âmbito dos acidentes conferindo-lhe o
caráter essencial que pode, então, ser reconhecido em Deus. Deus é, então, três
pessoas enquanto em si mesmo é relação ativa, é um uno que se faz da
diversidade que se interrelaciona. Ser pessoa é isto: mais do que o que
entendia Boécio, que dizia que pessoa é «substância individual de natureza
racional», ser pessoa é relação consciente e subsistente. É um não poder ser
sem ser em relação. E isto é uma grande dívida que temos para com o Cristianismo:
a afirmação de que, por sermos criados à imagem de Deus que é, em si mesmo,
relação, não podemos senão ser relacionais. A individualização que a
modernidade nos trouxe trai a nossa condição. Nós não somos, primeiramente,
indivíduos, como se pudéssemos entender-nos sem os outros ou, mesmo, apesar dos
outros. Não! Nós não nos podemos entender sem, primeiramente, nos reconhecermos
nascidos dos outros e para os outros. Nesta definição, é fácil verificar que
aqui radica o «pecado original» das sociedades modernas. Ao afirmarem,
primeiramente, que somos «indivíduos», antes de sermos «pessoas», consideram a
relação um acidente, um apêndice não necessário e não essencial. E isso
desumaniza-nos porque, enquanto humanos, enquanto criados como seres que
refletem, radicalmente, a natureza de Deus, somos seres para a relação, seres
de relação. Muitos dizem, aliás, que a «minha liberdade onde acaba a do outro».
Nada mais falso. Se assim fosse, os outros seriam um estorvo e o aumento da
nossa liberdade dependeria da sua eliminação. Ora, os outros são um estorvo numa
visão de sociedade assente na ideia de que somos indivíduos. Mas, para uma
sociedade de pessoas (sociedade diz «comunidade de amigos» [«socius», em latim,
quer dizer «amigo»]), a minha liberdade não pode senão aumentar, na medida em
que fizer aumentar a do outro, e diminuir, na medida em que diminuir a dos
outros.
A dívida, de facto, ao Cristianismo, não para de
aumentar quanto mais vemos o abismo para onde caminha uma sociedade de
indivíduos. Urge, por isso, recuperar a noção central de «pessoa» enquanto
intrinsecamente definidora de que somos, por natureza, seres de relação. A
relação com os outros não é um acidente, um apêndice, mas condição da nossa
definição como humanos.