sábado, março 28, 2015

De indivíduos a pessoas - A dívida que o Cristianismo nunca cobrou

A dívida do Ocidente ao Cristianismo ultrapassa, largamente, o âmbito das enumerações de todos os nomes que contribuíram para a cultura, para a ciência, para as artes, para os temas de literatura ou muitos outros âmbitos que possam enumerar-se. Provavelmente, entre os maiores contributos que se devem ao Cristianismo está, tão simplesmente, um conceito, uma ideia. A ideia de Pessoa. Os gregos não a tinham. Os gregos fundiam os indivíduos ou na ordem da natureza, da essência, ou no âmbito da sua atuação enquanto cidadãos. Não tinham, nem por sombras, a ideia de pessoa que veio a forjar-se no contexto polémico das discussões sobre a Trindade, que quase dividiram em duas a Igreja cristã, em pleno século IV.
Na verdade, a ideia de «pessoa» só se concebe quando, perante a constatação cristã de que Deus não podia senão ser um só, mas que se revelara como Pai, Filho e Espírito Santo, se verifica que era preciso encontrar uma noção capaz de dizer a diversidade em Deus, sem nessa afirmação se perder a unidade.
Mais ainda, havia que superar um limite que a filosofia (a metafísica, para ser mais preciso) de Aristóteles impunha: na tábua das categorias aristotélicas, a «relação» era compreendida como um acidente, isto é, como um acrescento que se adicionava à substância, àquilo que era subjacente a determinado ente e que definia a sua natureza própria. O dilema estava em encontrar o equilíbrio entre afirmar a unidade, sem esconder a diversidade num qualquer modalismo (como fazia Sabélio e outros) ou afirmar a diversidade de tal modo que, para não se cair no triteísmo (três deuses), se acabava por diminuir a «divindade» do Filho e do Espírito Santo, caindo no adocionismo de tipo arianista.
A resposta a este duro dilema deu-se porque os cristãos dos primeiros séculos souberam perceber que os dogmas não são verdades fechadas, mas desafios que interpelam a superar as barreiras dos limites conceptuais. Sempre assim foi, ao longo da história, apesar da ideia errada de que os dogmas da Igreja são manifestação de um pensamento «dogmático», no sentido de a-crítico. Tal não é, de facto, verdade, e, pelo contrário, constituiu-se como repto a descobrirem-se formas de dizer o que parecia indizível.
Assim aconteceu com o problema da unidade e diversidade de e em Deus. Tal só foi possível organizar-se em pensamento compreensível através da criação do conceito de pessoa. Na verdade, só se compreende a fecundidade deste conceito se nos dermos conta de que ele não se confunde com o de indivíduo. Com efeito, se a ideia de pessoa coincidisse com a de indivíduo, numa perspetiva de algo fechado em si mesmo e quantificável, o risco de afirmação de três deuses seria enorme. Havia, por isso, que encontrar outro conceito que, em si mesmo, integrasse, contrariamente aos limites aristotélicos, a ideia de relação.
Talvez o maior contributo para esta superação nos venha de Santo Agostinho, na sua obra De Trinitate, escrita ao longo de vinte anos. Ao centrar a sua reflexão na ideia do amor, tomando a definição da essência feita por S. João, o bispo de Hipona retira a relacionalidade do âmbito dos acidentes conferindo-lhe o caráter essencial que pode, então, ser reconhecido em Deus. Deus é, então, três pessoas enquanto em si mesmo é relação ativa, é um uno que se faz da diversidade que se interrelaciona. Ser pessoa é isto: mais do que o que entendia Boécio, que dizia que pessoa é «substância individual de natureza racional», ser pessoa é relação consciente e subsistente. É um não poder ser sem ser em relação. E isto é uma grande dívida que temos para com o Cristianismo: a afirmação de que, por sermos criados à imagem de Deus que é, em si mesmo, relação, não podemos senão ser relacionais. A individualização que a modernidade nos trouxe trai a nossa condição. Nós não somos, primeiramente, indivíduos, como se pudéssemos entender-nos sem os outros ou, mesmo, apesar dos outros. Não! Nós não nos podemos entender sem, primeiramente, nos reconhecermos nascidos dos outros e para os outros. Nesta definição, é fácil verificar que aqui radica o «pecado original» das sociedades modernas. Ao afirmarem, primeiramente, que somos «indivíduos», antes de sermos «pessoas», consideram a relação um acidente, um apêndice não necessário e não essencial. E isso desumaniza-nos porque, enquanto humanos, enquanto criados como seres que refletem, radicalmente, a natureza de Deus, somos seres para a relação, seres de relação. Muitos dizem, aliás, que a «minha liberdade onde acaba a do outro». Nada mais falso. Se assim fosse, os outros seriam um estorvo e o aumento da nossa liberdade dependeria da sua eliminação. Ora, os outros são um estorvo numa visão de sociedade assente na ideia de que somos indivíduos. Mas, para uma sociedade de pessoas (sociedade diz «comunidade de amigos» [«socius», em latim, quer dizer «amigo»]), a minha liberdade não pode senão aumentar, na medida em que fizer aumentar a do outro, e diminuir, na medida em que diminuir a dos outros.

A dívida, de facto, ao Cristianismo, não para de aumentar quanto mais vemos o abismo para onde caminha uma sociedade de indivíduos. Urge, por isso, recuperar a noção central de «pessoa» enquanto intrinsecamente definidora de que somos, por natureza, seres de relação. A relação com os outros não é um acidente, um apêndice, mas condição da nossa definição como humanos.

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