Casamento: a
que nos referimos?
Antes de exprimir qualquer outra ideia, e correndo
o risco de perder potenciais leitores antes mesmo de o serem, começo por
afirmar o ponto de partida da minha reflexão: falar de casamento, no quadro da
matriz civilizacional em que nos encontramos, é falar da união entre um homem e
uma mulher, estável e protegida pela lei e pela sociedade, porque sobre ela a
mesma sociedade deposita expectativas de futuro que carecem de proteção e
confiança.
Eis uma matéria em que perdemos a liberdade para
pensar, para refletir e para emitir a nossa opinião. Este é um novo tabu das
sociedades modernas. De tal modo que, para alguns que se ficaram por estas
primeiras linhas ou, simplesmente, pelo título, mesmo antes de eu exprimir as
razões que justificam a minha reflexão, este será um texto classificado como
homofóbico. Uma tal conclusão, por precipitada, evidencia a emotividade em que
se enreda esta discussão, má conselheira do bom discernimento.
Distinguir
não é o mesmo que discriminar
É bom, desde já, clarificar que falar de
discriminação refere-se ao impedimento do acesso a um legítimo direito, à
criação de dificuldades de usufruto de um bem que é devido. Tal obriga, assim,
a explicitar, neste passo, que considero, efetivamente, que há discriminação
quando se impede, por exemplo, o acesso a uma atividade, a um tipo de trabalho,
a uma função de liderança ou outra, justificando tal impedimento com motivações
que concernem, por exemplo, às vivências sexuais do indivíduo. Não se pergunta,
por exemplo, a um candidato a gestor se é adúltero ou algo semelhante. Seria
invocar um fator estranho à tarefa como critério para impedir o seu acesso.
Neste quadro, em que não se invocam razões de mérito ou de capacidade de
cumprimento da função para impedir a atribuição da função, estaremos,
claramente, perante um comportamento discriminatório.
Vale a pena, feito este esclarecimento, verificar
se tal se aplica à recusa de que a união entre pessoas do mesmo sexo seja um
casamento.
Invoquemos a
declaração universal dos direitos humanos...
Analisando, com atenção, o conteúdo do artigo 16º
deste documento fundante, que serve de ponto de referência para a elaboração
das constituições que se pretende que estruturem um Estado de direito e não um
Estado discricionário, verificamos, talvez com surpresa, a clareza na definição
do conceito de casamento que ali aparece. Diz-se, no ponto 1 do referido
artigo: «a partir da idade núbil, o homem e a mulher têm o direito de casar e
de constituir família, sem restrição alguma de raça, nacionalidade ou
religião.» Muitos poderão dizer que homem e mulher são aqui referidos em
abstrato, não se presumindo ser «um com o outro».
Tal interpretação não colhe, porém, pois o mesmo
número diz, de seguida: «durante o casamento e na altura da sua dissolução,
ambos têm direitos iguais». Este «ambos» não pode ser mais claro. O modelo de
casamento aqui apresentado não é outro senão o da união entre um homem e uma
mulher.
Acresce a este primeiro reconhecimento, que abala
muita da argumentação dos que pretendem estar do lado da defesa dos direitos
humanos, a constatação de que, se se tratasse de discriminação o não
reconhecimento do estatuto de casamento à união entre duas pessoas do mesmo
sexo, por se considerar que se deve respeitar a orientação sexual e legitimá-la,
então, valeria a pena perguntar por que razão não se legitimam outras
orientações. Por exemplo, porque se deverá discriminar quem é bissexual? Ou
quem é adúltero e vive uma situação de duplicidade? Não é difícil constatar que
a mudança introduzida com a admissão de que a união entre pessoas do mesmo sexo
seja um casamento criou um plano inclinado que desce sem que se saiba até onde.
Talvez seja, aliás, essa a intenção, tal a clareza com que se relativiza a
condição fundamental da família, esvaziando o seu conteúdo original. De que se
falará ao dizer «família» se não for claro o ponto de referência? Tudo parecerá
caber sob a capa de «família». «Família» correrá o risco de ser um termo sem
conceito correspondente, um «flatus vocis», como diziam os escolásticos, um
mero som a que não se sabe o que corresponde.
É fácil verificar que, se se «desblinda» o critério
definido na declaração universal dos direitos humanos, então, tudo se torna
arbitrário e dependente da vontade discricionária das maiorias. E é porque tal
não tem capacidade de sustentar um Estado de direito, se se tornar vulnerável,
nas suas bases, à vontade maioritária, que tantos continuam a dizer, e entre
eles me situo eu próprio, que a aceitação de que a união entre duas pessoas do
mesmo sexo seja um casamento é a modificação da matriz civilizacional em que nos
enquadramos. Por muito humor e sátira que possam fazer alguns sobre este
reconhecimento, tal não retira a validade ao que está a ser denunciado.
Distinguir
para não confundir
Como afirmava, repetidamente, um dos meus
professores de filosofia, quem não distingue confunde. E é de confusão que se
trata, quando falamos do assunto aqui em análise.
Confusão entre «não discriminar» e «não distinguir
o que é diferente». Confusão entre «desejar» e «ter direito a». Confusão entre
«compadecer-se» e «legitimar». Distinguir não é discriminar. E é preciso
reconhecer que o círculo não é um quadrado. Chamar casamento ao que não o é
redunda numa quadratura do círculo. O casamento não é uma mera relação de
afetos, é uma instituição, reconhecida juridicamente, porque nela se depositam
expectativas de futuro. A segurança dos dois, mas também a possibilidade dos
filhos, são bens indissociáveis. Os filhos são um horizonte legitimamente
esperado. O que se verifica ser manifestamente impossível na união homossexual.
A estabilidade da estrutura «casamento» é necessária em razão dos dois motivos,
indissociavelmente.
O fim da
ingenuidade: estas mudanças não são espontâneas; respondem a uma estratégia
A matéria aqui em análise está envolvida em
inúmeras sombras e faltas de esclarecimento. É intencional que não se conclua
se a orientação sexual é uma determinação genética ou se uma deliberação
pessoal. E é fácil perceber por que motivos não se pretende retirar conclusões
claras: se for uma determinação genética, então, rapidamente se concluiria pelo
caráter patológico; se for apenas uma deliberação pessoal, então, cairia por
terra o argumento de que se deveria respeitar o caráter «natural» da condição
homossexual. Por isso, é útil a ambiguidade.
Mas esclareço que, pessoalmente, não creio num
qualquer determinismo genético, pois todo o determinismo é o oposto da
afirmação da liberdade humana. Sempre restará a última palavra do ser humano
livre. Sendo assim, é ainda mais claro que esta discussão manifesta a cedência
para o individualismo que recusa que possa haver valores que transcendam a mera
determinação individual. De facto, contra esta visão, sublinho que, com efeito,
não é o sujeito que cria os valores. Eles são-lhe anteriores. E é isso que não
aceitam os defensores do casamento homossexual: que possa haver valores a que o
sujeito deva submeter-se. Pelo contrário, para eles, é o sujeito que os cria.
Mas, se isto for verdade, o que ficará da sociedade? A sociedade não passará de
soma de indivíduos, nunca se configurando como comunidade de pessoas.
É bom, aliás, que se tenha em conta que esta
matéria não aparece de forma espontânea, nas nossas sociedades ocidentais. Como
recorda Michael Medved (em artigo publicado no site www.aceprensa.com), um
analista e crítico de cinema norte-americano, estão definidas, desde 1984, as
linhas de atuação da causa gay no cinema. Desde então, ficou definido que
seriam adotadas três linhas de atuação: insensibilizar o público, gerando a
impressão de que a homossexualidade é uma normalidade muito difundida; vitimizar
os homossexuais, gerando a convicção de que são perseguidos; diabolizar os que
se opõem à causa, tendo para tal dado um especial contributo a designação de
que são homofóbicos. A descoberta da definição desta estratégia permite
ultrapassar a ingenuidade de que as mudanças em curso são espontâneas e
correspondem a uma transformação inelutável. É bom, na posse destes dados,
manter uma atitude de sã clarividência que permita distinguir entre a recusa
das mudanças que se propõem introduzir na matriz ocidental os defensores da
causa «gay» e o acolhimento da pessoa concreta que viva em si mesma a
dificuldade em gerir as manifestações da sua afetividade. São dois planos
distintos. E confundi-los é o que pretendem os que se afirmam defensores da
equiparação da união entre duas pessoas do mesmo sexo ao casamento.
Muito mais do que uma questão entre direita e
esquerda, entre conservadores e progressistas, entre crentes e não crentes,
esta é uma questão de lógica. É preciso distinguir para não confundir!