(Publico, como desafio à leitura integral do livro, o prefácio de a vida conta... branco no preto - dou notícia do livro no post anterior)
A vida é o protagonista deste livro.
A vida conta.
Conta, porque ela mesma se faz enquanto narrativa única e pessoal. Quando se
morre, é uma narrativa que se fecha, no livro da História.
A vida conta.
Conta, porque para ela se devem voltar os olhares quando ela mesma se
afigura mais frágil.
Na ambiguidade deste «a vida conta» quer-se fazer
eco do lugar ímpar que se deve reconhecer à vida humana, quando mais débil,
mais vulnerável, mais desprotegida.
Este é um livro redentor, a dar por certa a palavra
do Talmude oportunamente recordada pelo defensor dos judeus, Óscar Schindler,
no final da Segunda Grande Guerra: «Quem salva uma vida salva o mundo». Dessa
redenção se faz o motivo que justificou a escrita destes dez contos: comemorar
os 15 anos da ADAV-Aveiro, que nasceu para fazer nascer. Estes quinze anos
fizeram-se de muitas vidas nascidas porque a vontade de resistir à vertigem da
angústia foi maior do que a cedência à imediatez de uma resposta que não o era.
O mundo salvou-se de cada vez que a ADAV ajudou a salvar uma vida. E quantas já se
salvaram, nestes 15 anos!
A vida conta-se,
aqui, como a emergência da luz na escuridão. Branco no preto.
Ninguém se sente seguro na escuridão. A metáfora da
luz, do branco sobre o preto, é, por isso, aqui, de grande densidade e
oportunidade. À luz sempre se associou o saber, o conhecimento, a memória, a
verdade, a beleza, o bem... enfim, a vida. Não será casual que o primeiro ato
criador, feito narrativa nesse secular texto de Génesis, seja o da criação da
Luz. Não será por acaso que ao nascimento se dá a força impressiva do «dar à
luz». Nem o filho que se desenvolve no aconchego materno resiste ao fascínio da
luz. Mas a luz mais verdadeira não é a efémera e limitada na sua própria
aparência de ilimitada velocidade. A luz verdadeira de que aqui se fala é a que
é necessária ao reconhecimento do outro como um tu, que merece o meu
reconhecimento, seja qual for a sua idade, o seu aspeto, a sua origem, porque
ele é, tão simplesmente, um tu irredutível à minha
vontade e ao meu desejo, tantas vezes confundidos com liberdade.
A esta luz
se refere uma história judaica, de tradição hassídica, de que Tomás Halík faz
ressonância num dos seus mais recentes livros:
«Rabi Pinchas
perguntou aos seus discípulos como é que se reconhece o momento em que acaba a
noite e começa o dia. "É momento em que há luz suficiente para distinguir
um cão de um carneiro?", perguntou um dos discípulos. "Não",
respondeu o rabi. "É o momento em que conseguimos distinguir uma tamareira
de uma figueira?", perguntou o segundo. "Não, também não é esse
momento", replicou o rabi. "Então é quando chega a manhã?",
perguntaram os discípulos. "Também não. É no momento em que olhamos para o
rosto de qualquer pessoa e a reconhecemos como nosso irmão ou nossa irmã",
replicou o rabi Pinchas. E concluiu: "Enquanto não o conseguirmos,
continua a ser noite".»
Os quinze anos da ADAV fizeram-se do esforço de
assegurar a distinção entre o dia e a noite, quando muitos pretendem que
continue a ser noite.
Na noite da História, sempre que se pretendeu
justificar a injustificável eliminação de humanos, a vítima foi reduzida à
condição de inumano. A sua «inumanidade» sossegava as consciências. Hoje, o
inumano é o nascituro, que para muitos «ainda não é humano». Para estes muitos,
ainda é noite. Este livro pretende ser, por isso, uma candeia que faça incidir
o branco que é consciência sobre o preto da inconsciência e do obscurantismo.
«A vida conta... Branco no preto» faz-se de contos
que saíram da mão e da sabedoria de dez reconhecidos defensores da dignidade da
vida humana que se têm destacado nas suas áreas como insignes representantes de
uma cultura luminosa, feita da luz do dia. Cada um dos dez autores – Daniel
Serrão, Fernando de Castro Branco, Gaspar Albino, Inácio Semedo Júnior João
César das Neves, Jorge Paulo, Maria João Veiga, Maria Teresa González, Nuno
Higino, Walter Oswald – transcende, em humanidade, a grandeza dos seus
percursos de vida tão reconhecidos. Na sua vida e obra, a ADAV reconhece os
valores em que ela mesma se fundou e, por isso, convidá-los e ser honrada com o
seu assentimento é justo reconhecimento, cabendo, agora, ao leitor o poder de o
confirmar.
Luís Manuel Pereira da Silva (Presidente da direção da ADAV-Aveiro)