Um
povo, uma nação, uma geração, revelam a sua grandeza na forma como protegem os
seus mais frágeis. Ao longo da história, os mais frágeis foram alvo das maiores
atrocidades sob a capa de justificações que a mesma história veio a demonstrar
serem inadmissíveis, mas que a cegueira de cada tempo pretendeu legitimar. Em
comum, sempre houve uma estratégia igual: a vítima foi desconsiderada na sua
humanidade. Antes de se justificar a sua eliminação, foram encontrados
pretextos que pretendiam demonstrar que aquele não seria bem um humano. Assim aconteceu perante os índios da
América, perante os escravos vindos de África, perante os infiéis ou perante
todos os que os regimes ou as ideologias excluíram. Hoje, não é muito diferente
o que se passa com os nascituros, aqueles de nós que dependem, em exclusivo, da
proteção da sua mãe e do seu pai para um dia virem a nascer. Ouvi, de viva voz,
por alturas do referendo de 2007, a alguém que se afirmava defensor da causa
das mulheres, que o nascituro era «a coisa» que a mulher tem dentro de si. «A
coisa»... A redução à inumanidade para se ficar de mãos livres e de consciência
tranquila.
Enquanto
não serenarem os ânimos e não houver a coragem de olhar o assunto como
qualquer problema humanitário exige, tudo ficará envolvido por fumaça
ideológica e reduzido a um maniqueísta dilema sobre quem é contra ou a favor da
mulher. Esclareça-se, desde já, que esse não é, de todo, o problema. Ninguém
que é contra a legalização do aborto está contra quem quer que seja. Pelo
contrário, quem é contra a legalização do aborto está a favor de todos (mãe,
filho, pai...) e nunca a favor de um contra outro ou outros.
Estamos,
porém, numa época que muitos caracterizam como marcada pelo «pensamento débil».
Se se pensa - quando se é capaz de pensar! - não se quer, porém, assumir as consequências
do que se reconhece pela inteligência. Esta é a debilidade do pensamento.
Pensa-se, quando se pensa, mas não se retiram as consequências do pensamento. E
este assunto é bem exemplificativo disso. Que o demonstrem as reações recentes
às mudanças legislativas à lei do aborto, decorrentes da iniciativa legislativa
dos cidadãos, que recebeu a subscrição de mais de 48 mil cidadãos em pouco mais
de 3 meses e que, não fosse a honestidade e honradez da presidente da Assembleia
da República, teria sido relegada para esquecimento, como se não tivesse sido,
afinal, a iniciativa do género que mais apoio de cidadãos tinha recebido. O
assunto parecia queimar...
Contudo,
vale a pena perguntar...
Se
sabemos que, segundo decisão do tribunal europeu dos direitos humanos de
dezembro de 2010, não existe o direito a abortar;
Se
sabemos que o nosso tribunal constitucional se pronunciou sempre com enorme
dúvida sobre estas matérias - em 1984, 1985, 1998 e 2006, o tribunal votou
sempre com um equilíbrio de 7 a favor e 6 contra, demonstrando ser um assunto
envolvido em grande dúvida;
Se
sabemos que muitos dos que se diziam defensores da despenalização do aborto
vieram a reconhecer que a lei criada depois do referendo de 2007 foi muito além
do que se votou, instaurando um regime de liberalização desta
prática, com o suporte do próprio sistema nacional de saúde;
Se
sabemos que a percentagem de abortos que são feitos a pedido da mulher
representam mais de 96% do total de abortos praticados (mais de 16 mil abortos,
em 2014), evidenciando que as razões tantas vezes aduzidas pelos que se dizem a
favor da legalização desta prática (violação, malformação, etc.) significam
apenas menos de 4% do total;
Se
sabemos que é contraditório afirmar que todos somos iguais, mas que, se se
descobre ou pensa descobrir alguma malformação, então o prazo para a nossa
eliminação é discriminatoriamente ampliado: pode-se abortar um filho, por
suspeita de malformação, até às 24 semanas de gestação, o que denuncia que a
deficiência é fator de discriminação perante os demais. E mais... Se sabemos
que esta prerrogativa da lei coloca sobre os ombros dos pais um peso que nunca
deveriam sentir: o de terem de decidir sobre a vida ou morte de um filho a quem
se diagnosticou - Quando não é falso
positivo. Tantos são os casos de falsos diagnósticos de malformação geradores
de dolorosos dilemas! - um problema de saúde diante do qual o que o Estado
deveria fazer era dar respostas para que um filho assim pudesse viver do melhor
modo possível;
Se
sabemos que, perante o drama de uma qualquer debilidade ou fragilidade, o
Estado deve organizar-se para ajudar a viver do melhor modo possível e a
integrar as vulnerabilidades da vida;
Se
sabemos que, por motivo da lei que resultou do referendo de 2007, a mulher que
quer ser mãe ficou mais vulnerável à chantagem e pressão de companheiros e
patrões que alegam com a legalidade para pressionar à prática do aborto;
Se
sabemos que nenhuma liberdade se pode construir contra a liberdade de outro e
muito menos a coberto do Estado de direito;
Se
sabemos que, sob a capa de que o aborto é um drama (real, em algumas situações)
se escondem muitas razões inconfessáveis, como demonstram os 29% de repetições
de abortos, verificadas em 2014;
Se
sabemos que os abortos realizados ao abrigo da lei já provocaram a morte de uma
mulher, em 2010, e complicações muito graves, na ordem das dezenas, em cada
ano;
Se
sabemos que, desde o referendo de 2007, já se realizaram, até final de 2014,
mais de 135 mil abortos;
Se
sabemos que a taxa de fecundidade portuguesa está na ordem do 1.2 filhos por
mulher, sendo uma das cinco mais baixas do mundo;
Se
sabemos que os próprios autores das leis que permitiram a prática do aborto em
Portugal, reconhecem, hoje, que não há o direito ao aborto, como afirmou, corajosa e honestamente, Zita Seabra, autora da lei de 1984;
Se
sabemos que o aborto é uma prática a extinguir, por se reconhecer que é
ofensiva da dignidade humana;
Se
sabemos que o «dar jeito» não é critério ético nem jurídico: o que nos dá jeito
nem sempre é o que está certo e correto e o que deve ser feito;
Se
sabemos que, desde o referendo de 1998, a sociedade se organizou e criou
instituições (como, em Aveiro, a ADAV) que dão resposta organizada aos muitos
pedidos de ajuda em situação de dificuldade na gravidez, resposta que pode ir
do apoio jurídico, pediátrico, obstétrico, laboral à doação de bens de primeira
necessidade ou outros apoios;
Se
sabemos que uma lei protege bens importantes e que, para tal, exerce uma função
pedagógica que diz o que se deve ou não deve fazer; e se sabemos, ainda, que a
proteção desses bens implica antecipar consequências do seu incumprimento;
Se
sabemos que ninguém deve estar dependente da vontade exclusiva de um só, para
mais quando se é gerado pelo contributo de dois, reconhecendo-se, por isso, que
deverá caber ao pai um papel que a lei de 2007 silenciou pelo período de 10 semanas,
criando uma situação paradoxal de obrigar à assunção de responsabilidades quem
não pôde decidir;
Se
sabemos que alguém que é eliminado às duas, três, cinco ou dez semanas de vida
nunca poderá vir a ter vinte, trinta ou cem anos;
Se
sabemos que, em 2014, se realizaram 201 abortos por cada 1000 nascimentos e que
estes se ficaram pelos 82367 nascimentos e se sabemos que, desde 2007, o saldo
natural é negativo (são mais os que morrem do que os que nascem, no país);
Se
sabemos que tudo nos demonstra, de forma clara, que um filho é um filho, mesmo
que o não queiramos reconhecer;
Então,
se sabemos, como podemos dizer que ignoramos que este assunto nos diz
respeito?