No final da
década de 80, um dos mais influentes sociólogos franceses, Gilles Lipovetsky,
publicava uma das suas muitas obras marcantes: «o império do efémero». Ali, defendia que, desde o maio de 68, o que movia as vontades já
não eram motivos profundos ou, sequer, motivos, mas o simples desejo de mudar.
Chamava ele a essa categoria da «mudança pela mudança» simplesmente «moda».
O mesmo autor
foi prosseguindo a sua análise, ao longo dos tempos, e constata, hoje, que
vivemos na sociedade hipermoderna, isto é, a sociedade marcada pela deceção. Do
efémero, que parecia ser a definitiva libertação de todas as tradições,
chegámos aqui: à deceção.
Portugal
ainda irá, provavelmente, a meio do tabuleiro desta ponte. Muitos são os que
ainda vivem fascinados pela mudança enquanto mudança, mesmo que ela não leve
para lado nenhum.
Denuncia, na
minha perspetiva, tal visão, o que as estatísticas (segundo o Pordata) revelam sobre a capacidade
ou incapacidade que evidenciamos de nos comprometer com projetos de longa
duração. Permitem concluir isto, por exemplo, as taxas de nupcialidade
nacionais, isto é, o número de casamentos por 1000 residentes. Se olharmos para
o que as estatísticas revelam, verificamos que 2014 foi o ano em que Portugal
apresentou a mais baixa taxa de nupcialidade de sempre, com 3 em cada mil, o
que permite verificar que, em 14 anos, esta reduziu para metade (em 2000, era
de 6,2). Se juntarmos a isto que, de 2000 para cá, a taxa de divorcialidade (o
número de divórcios por 100 casamentos) aumentou mais de 100%, passando de 30%
em 2000 para 70,4% em 2013, os dados tornar-se-ão ainda mais preocupantes.
Desafio, aliás, o caríssimo/a leitor ou leitora a percorrer os olhos pelos últimos
números do Terras do Vouga e a verificar que, em cada mês, muito poucos são os
casamentos celebrados nas nossas comunidades paroquiais... Não merecerá isto
uma reflexão? Que futuro se poderá esperar de uma sociedade que não protege a
família, reconhecida, no artigo 16º da declaração universal dos direitos
humanos, como «elemento natural e fundamental da
sociedade tendo direito à proteção desta e do Estado»?
Não no
fixemos, porém, na estatística. Interessa, aqui, uma outra ordem de análise: olhar
para estes números num registo pastoral, num registo de leitura cristã. Que
inquietude cristã deverá colher-se da análise destes números?
Sem querer
dramatizar o que, já por si, deveria ser lido com olhos «esbugalhados», não
podemos deixar de verificar que, de algum modo, por uma via silenciosa e
subtil, estes números permitem constatar que alguma coisa está a falhar no
anúncio cristão e um progressivo diminuir da marca cristão na cultura do povo,
entendida aqui a cultura como a constelação dos valores decisivos na vida de
uma determinada comunidade.
Na verdade,
se formos ao âmago do que é o cristianismo, ele não é, primeiramente, uma
proposta moral ou ética, uma forma de pensar a política e o mundo, mas sim, a
afirmação da certeza de que o amor vence e é fiel. Perante uma sociedade
divorcista, não se pode senão constatar que a mensagem não está a ser
transmitida com eficácia e a sua capacidade de levedar a cultura está
diminuída.
Apetece
recordar a tristemente célebre afirmação de Afonso Costa, proferida em 23 de
março de 1911 e reproduzida por Amadeu Gomes de Araújo, em «um erro de Afonso Costa», editado,
recentemente, pela Alêtheia: «está admiravelmente preparado o povo para acolher
essa lei (da separação); e a ação da medida será tão salutar que em duas gerações
Portugal terá eliminado completamente o Catolicismo, que foi a maior causa da
desgraçada situação em que caiu.» Afonso Costa errou, em termos estatísticos,
pois continuamos a ser uma ernome maioria católica, porém, parece que se quer
que ele tenha razão no que é essencial. Hoje, a influência cristã nas decisões
pessoais e coletivas parece reduzir-se à celebração de grandes eventos
multitudinários, em que os compromissos e as implicações pessoais não são tidos
como determinantes mas meramente acessórios. Vale a pena recordar que os dados que
se reúnem nas estatítiscas coligem em bloco aquilo que, afinal, é somatório de
decisões individuais. Vale de pouco criticar a sociedade individualista quando,
ao chegar a nossa vez de tomar uma decisão que nos diz respeito, somos, afinal,
igualmente individualistas.
É bom
recordar que a matéria que diz respeito ao casamento e à relação com os filhos
não é acessória na vivência cristã. Desde cedo os cristãos se aperceberam de
que a sua coerência como fiéis se evidenciava neste tipo de opção. Recordemos
um excerto da célebre carta a Diogneto, que os mais recentes estudos (segundo
Roque Frangiotti) atribuem a Quadrato, por volta de 120 d.C. e eventualmente
dirigida ao imperador Adriano (que recebia o título de Diogneto): «Os cristãos, de
facto, não se distinguem dos outros homens, nem pela sua terra, nem pela sua
língua ou costumes. Com efeito, não moram em cidades próprias, nem falam uma
língua estranha, nem têm algum modo especial de viver. A sua doutrina não foi
inventada por eles, graças ao talento e à especulação de homens curiosos, nem
professam, como outros, algum ensinamento humano. Pelo contrário, vivendo em
casas gregas e bárbaras, conforme a sorte de cada um, e adaptando-se aos
costumes do lugar quanto à roupa, ao alimento e ao resto, testemunham um modo
de vida admirável e, sem dúvida, paradoxal. Vivem na sua pátria, mas como
forasteiros; participam de tudo como cristãos e suportam tudo como
estrangeiros.Toda a pátria estrangeira é pátria deles, e cada pátria é
estrangeira. Casam-se como todos e geram filhos, mas não abandonam os
recém-nascidos. Põem a mesa em comum, mas não o leito; estão na carne, mas não
vivem segundo a carne; moram na terra, mas têm a sua cidadania no céu; obedecem
às leis estabelecidas, mas com sua vida ultrapassam as leis; amam a todos e são
perseguidos por todos; são desconhecidos e, apesar disso, condenados; são
mortos e, deste modo, é-lhes dada a vida; são pobres e enriquecem a muitos;
carecem de tudo e têm abundância de tudo; são desprezados e, no desprezo,
tornam-se glorificados; são amaldiçoados e, depois, proclamados justos; são
injuriados, e bendizem; são maltratados, e honram; fazem o bem, e são punidos
como malfeitores; são condenados, e alegram-se como se recebessem a vida. Pelos
judeus são combatidos como estrangeiros, pelos gregos são perseguidos, àqueles
que os odeiam não saberiam dizer o motivo do ódio.»
O que
Portugal tem vivido, nas últimas décadas, não difere muito daquilo com que já
se debatiam os primeiros cristãos. Ontem, como hoje, eles sabiam que a sua fé
se repercutia nas suas escolhas individuais e isso construiu uma civilização
diferente, em que a pessoa é pessoa e não mero indivíduo. E essa civilização
está em risco se cada um se reduzir à sua individualidade e se se esquecer de
que é um com os outros e, com eles, um diante do Outro, totalmente Outro.
Se, hoje, o
autor da carta a Diogneto voltasse a escrever aos imperadores de agora, seria
ainda capaz de recordar em que se distinguem os cristãos dos demais? Ou até os
cristãos já cederam à civilização do efémero?