A afirmação que chamámos a título parece uma
provocação ou, então, pura demagogia. Tentaremos demonstrar que nem uma nem
outra opção corresponde ao sentido exato da afirmação e que, pelo contrário, na
verdade desta afirmação reside, de facto, a resposta antecipada para o tímido
progresso da humanidade em termos de humanidade.
É muito frequente, em contexto de campanhas
eleitorais, ouvir falar dos movimentos progressistas, por oposição a outros, considerados
conservadores e reacionários. E a frequência da repetição da afirmação gera
insensibilidade e dificuldade em atravessar a neblina e descobrir a realidade
escondida. Não nos interessa, aqui, discutir os modelos de organização do Estado
ou as conceções económicas a que se pretende associar cada designação, mas
discutir um certo uso do termo 'progresso', que se vem consolidando, e que faz
crer que será progresso a dissolução da influência da moral na ação pública.
Este fenómeno de tentar neutralizar a influência da moral nas decisões
políticas não é novo. Corresponde, aliás, a um mais profundo movimento de
laicização da sociedade, que se propõe silenciar ou enclausurar no reduto
íntimo a influência das convicções religiosas e morais. No caso português, o
fenómeno tem os seus primeiros sinais ainda em fins do século XIX, mas encontra
o seu maior esplendor no contexto da primeira República. Mas os tiques ficaram.
Por muito originais que sejamos, porém, esta lógica
não é um exclusivo nosso. Já na longínqua revolução francesa, o laicismo era
marca distintiva e ficou como modelo inspirador.
Então, como hoje, o erro era o mesmo. Confundir o
dever de respeito pelos demais e da promoção do diálogo com quem possa pensar
de modo diverso com a presunção de que, para evitar o debate ou a discussão, o
melhor é fazer de conta que não existe. O erro é tanto maior quanto maior é a
sua ineficácia. É, aliás, fácil de perceber que o silenciamento de algo tão
definidor da condição humana como as convicções religiosas é praticamente
impossível, dado que só poderia fazer-se contra o próprio homem, enquanto ser
que procura e busca sentido para a sua existência.
Este tique laicista tem-se apresentado, quase
sempre, associado a um pretenso amoralismo, isto é, à convicção de que seja
possível agir sem atender a valores morais. Ora, não é preciso pensar muito
para verificar que a ação humana é, sempre, por definição, ação moral. O agir
humano move-se por valores. Procura atingir fins. E isso torna toda a ação
humana moralmente condicionada, isto é, intrinsecamente moral. Resta saber que
valores se considera serem mais «valiosos» (permita-se esta redundância). E o
problema está aqui, na hierarquia dos valores. Quando se defende o amoralismo,
o que está a sustentar-se não é a ausência de moral, mas sim a defesa de que a
ação humana, neste caso, a ação política, deva fazer sempre o que pode fazer. «Poder fazer» e «dever
fazer» tornam-se coincidentes. E isso não pode senão ser altamente ruinoso para
qualquer sociedade. A história demonstra-o.
Assim aconteceu quando, por exemplo, em inícios do
século XX, nos Estados Unidos, se criaram movimentos eugénicos, que defendiam
que, se se podia proibir que setores ditos inferiores da sociedade se
reproduzissem, então, era legítimo impor essa proibição. Ou, então, quando, em
plena II Guerra Mundial, se testaram, sem consentimento, sobre humanos
substâncias cujos efeitos eram desconhecidos, prática que, infelizmente, se vem
repetindo, mesmo após, em 1947, se ter formulado em 10 pontos o código de
Nuremberga. Do mesmo modo se passou, no âmbito financeiro, quando os
especuladores se foram convencendo de que, se se podia especular, mesmo que
isso custasse vidas, então, porque não o fazer? Assim aconteceu, ainda mais
recentemente, num escândalo cujos efeitos ainda não se sabe em definitivo quais
serão, quando empresas do ramo automóvel descobriram que, se podiam criar um
mecanismo que permitisse ludibriar os sistemas de deteção da emissão de gases
poluentes, então, por que razão não o poderiam utilizar? Sempre o mesmo
raciocínio: se posso fazer e «poder é dever», então, porque não fazer? E é aí
que se revela que a moral é aquilo que de mais progressista dispomos. A Moral é
uma antecipação do futuro. Em virtude dos valores morais, perante um determinado
desafio, e perante possíveis soluções, a moral obriga-nos a pensar sobre o
futuro que resulta de cada opção. Em virtude da reflexão moral, determinadas
opções afiguram-se como inadmissíveis porque, sendo eventualmente possíveis de
executar ('podemos' fazê-las), contudo, comportam custos na vida daqueles sobre
quem recaem, obrigando, por isso, a progredir no sentido de encontrar melhor
solução. Quem não respeita os princípios morais, esse sim torna-se altamente
conservador, pois segue a primeira possibilidade que tecnicamente tem ao seu
dispor. É, pelo contrário, a moral que obriga a procurar outras soluções, a
progredir, a evoluir, pois aquelas que a moral considera inadmissíveis não são
válidas. Sem a moral, tudo o que pudesse ser feito seria feito. E isso custaria
o amanhã e não asseguraria grande presente. É à moral que devemos a certeza de
que há um amanhã. A título ilustrativo veja-se como seria diferente a realidade
se se tivesse respeitado a moral no caso dos embriões excedentários (Sempre a
moral disse que haveria que ponderar muito bem e com prudência o recurso a
métodos de procriação medicamente assistida, pois a fecundação descontrolada de
óvulos iria gerar graves problemas. Hoje, há milhões de embriões a que ninguém
sabe que projeto de vida dar.) E tantas outras situações demonstram que, nem
sempre o que se pode fazer é o que se deve fazer. É, seguramente, mais fácil
fazer sempre o que se pode fazer, mas
o amanhã exige que o que se pode fazer
se submeta ao que se deve fazer.
Porque o amanhã só se garante se cada um tiver clara a hierarquia dos valores:
que o desejo e a vontade de cada um não são a fonte da moral nem do direito,
mas antes deverão ser os seus agentes.