Sempre que «regresso» de uma «batalha» pela defesa
da vida mais frágil, deparo-me com uma genuína interrogação: como pôde a
sociedade chegar a admitir o que de modo óbvio se devia reconhecer como
inadmissível?
Como pôde, por exemplo, chegar-se à convicção de
que abortar pudesse ser legítimo ao ponto de se pretender considerar como um
direito? Ou que matar um idoso ou um doente em fase terminal pudesse ser
tratado como se de um ato de generosidade se falasse? E chegar mesmo a
considerar estas e outras decisões de tal modo que os que nelas não se
reconhecem são tratados como retrógrados e facilmente ultrapassáveis pelo
avançar dos tempos? Tudo reduzido, assim, a uma questão de posição mais ou
menos progressista, mais ou menos vanguardista.
Será de reduzir tudo a um binómio tão simples?
Julgo que não. Estou convencido de que muitos dos que se dispõem a admitir o
inadmissível fazem-no convictos de que estarão do lado correto, contudo, é essa
convicção que merece análise, por nascer de uma falsa certeza.
É recorrente, entre os que defendem o aborto ou a
eutanásia, a afirmação de que a sua posição é a dos que se compadecem. Do seu
lado - dizem - está a compaixão. Do lado dos outros, estaria, apenas, a frieza
e a falta de compaixão.
Contudo, é curioso constatar que a realidade de que
aqui falamos mostra um quadro bem distinto.
Aquele que, em nome da compaixão, elimina
aqueloutro de quem diz «compadecer-se», apaga o sofredor, no mesmo momento e
ato em que pretende apagar a dor que ele padece. Quando, afinal, pretendia
eliminar a sua dor, eliminou-o a ele mesmo. Esse é o erro dos que, em nome
deste tipo de compaixão, que não o é afinal, se propõem aceitar o inadmissível.
O seu ato elimina alguém, mas afigura-se-lhes lícito porque aparenta ser um ato
compassivo. Na verdade, o mal nunca se apresenta como tal. Que o digam as
primeiras narrativas bíblicas ou algumas das histórias recolhidas das mais
importantes obras da literatura mundial. O que dizer de Ulisses para quem a
melodiosa voz das sereias mais não era do que sinónima do fim trágico da sua
viagem de regresso a Ítaca? Ou de Dorian Gray para quem a beleza e juventude da
vida custou a venda da alma ao demónio? O mal não se afigurava como tal: o mal
sempre se afigurava sob a capa de um bem.
Já outra é a posição de quem se afirma defensor da
vida de todos, mesmo quando a vida se apresenta marcada pelo sofrimento. Para
estes, há que procurar eliminar ou diminuir a dor e o sofrimento, mas sabendo
que uma é a causa do sofrimento outra é a vítima do sofrimento. Esta distinção
gera a verdadeira compaixão. Compaixão que é, aqui, - fazendo justiça à sua
própria etimologia - «sofrimento com o outro». Por oposição a uma compaixão que
mais não é do que busca de eliminação da dor a todo o custo, mesmo com o custo
da própria vida humana. Esta última ideia de compaixão mais não será do que uma
espécie de «indolência», «não sofrimento», «não dor». Ela poderá, mesmo,
configurar-se como uma negação da condição finita e frágil da humanidade,
marcada, intrinsecamente, pela vulnerabilidade, pois o ser humano é um ser
«ferido» (vulnus, em latim), sinal da pretensão de que possamos, como
sibilinamente afirmava a serpente, no livro de génesis, ser como deuses e
exercer todo o poder, mesmo o de matar, em nome da recusa da dor e do
sofrimento.
Bem observava o Papa Bento XVI, na sua
extraordinária encíclica «Caritas in Veritate», que o «amor supera a justiça,
porque amar é dar, oferecer ao outro do que é meu; mas nunca existe sem a
justiça» (CV 6), ideia que se compreende melhor se a cruzarmos com a afirmação
de que «um Cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido
com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social, mas
marginais» (CV4).
Conjugando as duas afirmações que aqui recuperamos,
retém-se uma verdade fundamental: a compaixão não pode realizar-se contra o
outro, contra um outro, quem-quer que ele seja. Veja-se, para melhor
compreensão desta ideia, a atitude de Jesus para com a mulher adúltera. Jesus
acolhe-a, como ninguém mais a acolheu, mas não deixou de afirmar, no final: vai
e não voltes a pecar. Esta cena bíblica, que muitos têm utilizado para
legitimar o inadmissível (muitos dizem-se defensores do aborto em nome da
insuficiente interpretação desta cena evangélica!), evidencia-nos que a atitude
compassiva de Jesus é para com a pessoa e não para com os seus atos. Os atos
continuam a ser considerados errados. 'Vai e não voltes a pecar'. O que Jesus
fez foi sofrer com (com+paixão) a
mulher, mas não branquear ou legitimar a sua ação. E este é o desafio implícito
nas afirmações de Bento XVI. A compaixão não legitima o que é injusto, mas sim,
perante o cenário de máxima bondade, desafia à reposição da justiça e à criação
de relações que superam a própria justiça. Mas esta não é eliminada pela
compaixão. É-lhe pressuposta. Também o Papa Francisco recorda esta condição, na
bula «o rosto da misericórdia» (MV): «a misericórdia não é contrária à justiça,
mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova
possibilidade de se arrepender, converter e acreditar.» (MV 21).
Um tal enquadramento da compaixão deve suscitar um
duplo movimento:
- o de acolhimento da verdade do que somos, que
devemos respeitar e pressupor, sabendo que todo o ato que nos diga respeito
deve assegurar e potenciar o que de humano há em nós, nunca aceitando que se
desrespeite a dignidade de que somos portadores;
- o de reconhecimento de que, enquanto seres
frágeis, vulneráveis, todos estamos irmanados nessa condição, o que deverá
gerar em nós a atitude de sofrer com o outro, de assumir, com ele, a dor que
ele padece porque a sua dor é a nossa dor, pois nela reconhecemo-nos igualmente
frágeis. A compaixão é o outro nome da misericórdia, a atitude de quem possui
um coração pobre e humilde. Contra toda a ilusão de que «seremos como deuses»!