sábado, janeiro 02, 2016

Compaixão não é indolência nem se opõe à justiça: supera-a!



Sempre que «regresso» de uma «batalha» pela defesa da vida mais frágil, deparo-me com uma genuína interrogação: como pôde a sociedade chegar a admitir o que de modo óbvio se devia reconhecer como inadmissível?
Como pôde, por exemplo, chegar-se à convicção de que abortar pudesse ser legítimo ao ponto de se pretender considerar como um direito? Ou que matar um idoso ou um doente em fase terminal pudesse ser tratado como se de um ato de generosidade se falasse? E chegar mesmo a considerar estas e outras decisões de tal modo que os que nelas não se reconhecem são tratados como retrógrados e facilmente ultrapassáveis pelo avançar dos tempos? Tudo reduzido, assim, a uma questão de posição mais ou menos progressista, mais ou menos vanguardista.
Será de reduzir tudo a um binómio tão simples? Julgo que não. Estou convencido de que muitos dos que se dispõem a admitir o inadmissível fazem-no convictos de que estarão do lado correto, contudo, é essa convicção que merece análise, por nascer de uma falsa certeza.
É recorrente, entre os que defendem o aborto ou a eutanásia, a afirmação de que a sua posição é a dos que se compadecem. Do seu lado - dizem - está a compaixão. Do lado dos outros, estaria, apenas, a frieza e a falta de compaixão.
Contudo, é curioso constatar que a realidade de que aqui falamos mostra um quadro bem distinto.
Aquele que, em nome da compaixão, elimina aqueloutro de quem diz «compadecer-se», apaga o sofredor, no mesmo momento e ato em que pretende apagar a dor que ele padece. Quando, afinal, pretendia eliminar a sua dor, eliminou-o a ele mesmo. Esse é o erro dos que, em nome deste tipo de compaixão, que não o é afinal, se propõem aceitar o inadmissível. O seu ato elimina alguém, mas afigura-se-lhes lícito porque aparenta ser um ato compassivo. Na verdade, o mal nunca se apresenta como tal. Que o digam as primeiras narrativas bíblicas ou algumas das histórias recolhidas das mais importantes obras da literatura mundial. O que dizer de Ulisses para quem a melodiosa voz das sereias mais não era do que sinónima do fim trágico da sua viagem de regresso a Ítaca? Ou de Dorian Gray para quem a beleza e juventude da vida custou a venda da alma ao demónio? O mal não se afigurava como tal: o mal sempre se afigurava sob a capa de um bem.
Já outra é a posição de quem se afirma defensor da vida de todos, mesmo quando a vida se apresenta marcada pelo sofrimento. Para estes, há que procurar eliminar ou diminuir a dor e o sofrimento, mas sabendo que uma é a causa do sofrimento outra é a vítima do sofrimento. Esta distinção gera a verdadeira compaixão. Compaixão que é, aqui, - fazendo justiça à sua própria etimologia - «sofrimento com o outro». Por oposição a uma compaixão que mais não é do que busca de eliminação da dor a todo o custo, mesmo com o custo da própria vida humana. Esta última ideia de compaixão mais não será do que uma espécie de «indolência», «não sofrimento», «não dor». Ela poderá, mesmo, configurar-se como uma negação da condição finita e frágil da humanidade, marcada, intrinsecamente, pela vulnerabilidade, pois o ser humano é um ser «ferido» (vulnus, em latim), sinal da pretensão de que possamos, como sibilinamente afirmava a serpente, no livro de génesis, ser como deuses e exercer todo o poder, mesmo o de matar, em nome da recusa da dor e do sofrimento.
Bem observava o Papa Bento XVI, na sua extraordinária encíclica «Caritas in Veritate», que o «amor supera a justiça, porque amar é dar, oferecer ao outro do que é meu; mas nunca existe sem a justiça» (CV 6), ideia que se compreende melhor se a cruzarmos com a afirmação de que «um Cristianismo de caridade sem verdade pode ser facilmente confundido com uma reserva de bons sentimentos, úteis para a convivência social, mas marginais» (CV4).
Conjugando as duas afirmações que aqui recuperamos, retém-se uma verdade fundamental: a compaixão não pode realizar-se contra o outro, contra um outro, quem-quer que ele seja. Veja-se, para melhor compreensão desta ideia, a atitude de Jesus para com a mulher adúltera. Jesus acolhe-a, como ninguém mais a acolheu, mas não deixou de afirmar, no final: vai e não voltes a pecar. Esta cena bíblica, que muitos têm utilizado para legitimar o inadmissível (muitos dizem-se defensores do aborto em nome da insuficiente interpretação desta cena evangélica!), evidencia-nos que a atitude compassiva de Jesus é para com a pessoa e não para com os seus atos. Os atos continuam a ser considerados errados. 'Vai e não voltes a pecar'. O que Jesus fez foi sofrer com (com+paixão) a mulher, mas não branquear ou legitimar a sua ação. E este é o desafio implícito nas afirmações de Bento XVI. A compaixão não legitima o que é injusto, mas sim, perante o cenário de máxima bondade, desafia à reposição da justiça e à criação de relações que superam a própria justiça. Mas esta não é eliminada pela compaixão. É-lhe pressuposta. Também o Papa Francisco recorda esta condição, na bula «o rosto da misericórdia» (MV): «a misericórdia não é contrária à justiça, mas exprime o comportamento de Deus para com o pecador, oferecendo-lhe uma nova possibilidade de se arrepender, converter e acreditar.» (MV 21).
Um tal enquadramento da compaixão deve suscitar um duplo movimento:
- o de acolhimento da verdade do que somos, que devemos respeitar e pressupor, sabendo que todo o ato que nos diga respeito deve assegurar e potenciar o que de humano há em nós, nunca aceitando que se desrespeite a dignidade de que somos portadores;
- o de reconhecimento de que, enquanto seres frágeis, vulneráveis, todos estamos irmanados nessa condição, o que deverá gerar em nós a atitude de sofrer com o outro, de assumir, com ele, a dor que ele padece porque a sua dor é a nossa dor, pois nela reconhecemo-nos igualmente frágeis. A compaixão é o outro nome da misericórdia, a atitude de quem possui um coração pobre e humilde. Contra toda a ilusão de que «seremos como deuses»!

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