A história tende a repetir-se e, com ela, os erros
já outrora cometidos e as lições entretanto esquecidas. Constatar isto não
deveria sossegar-nos nem aquietar-nos ao reconhecimento de que é assim e não
poderia ser de outra maneira. E ficarmo-nos por um encolher de ombros e um
menear de cabeça, seguidos de um descontraído traulitar indiferente.
Quem tem memória (seja do passado, seja de futuro)
não pode deixar de olhar com uma incrível sensação de «déjà-vu» para o percurso
que estamos a fazer em direção à legalização da eutanásia. O mesmo caminho que
nos levou à legalização do aborto, e, mais para trás, à aceitação argumentada
da eliminação dos «débeis mentais». A legalização do aborto é mais recente; a
dos «débeis mentais» é mais longínqua e, por isso, menos presente na memória
coletiva. Dela já só nos resta a imagem das atrocidades cometidas em plena Segunda
Guerra Mundial, às mãos dos que se consideravam herdeiros da grande cultura
alemã. E olhamos com repulsa para o que ali foi cometido. Esquecemos, porém,
porque convém esquecê-lo, como se pôde chegar ali.
É pouco sabido quão entranhado estava o eugenismo
na sociedade europeia, antes da Segunda Guerra Mundial. O seu estudo ajudaria,
seguramente, a ter muito mais prudência na aceitação, sob que argumento for, de
todo e qualquer atentado contra a dignidade da vida humana.
Entenda-se por eugenismo, para facilitar e não nos
alongarmos em definições, a defesa de que seja legítimo, em nome da melhoria da
genética humana, criar incentivo à procriação dos que têm «bons genes» e
entraves à disseminação dos «maus genes». Esta formulação parece inócua e sem
perigos. Se pensarmos, porém, que tal exercício terá de implicar considerar uns
como dignos de procriar e outros como indignos de tal, talvez a situação já se
nos afigure menos legítima e logo nos ressuscite os fantasmas do nazismo. E é
bom que o faça, mas sem esquecermos que o nazismo levou a uma dimensão
exponencial aquilo que fora ganhando lastro em parte significativa da sociedade
europeia.
Teremos de recuar a 1885, como recorda Matt Ridley,
no seu livro «Genoma: autobiografia de uma espécie em 23 capítulos» (Gradiva,
2001), onde se narra, com detalhe, a história negra desta fase da cultura
ocidental, para encontrar o autor do termo «eugenia». Deve-se a Francis Galton,
um primo de C. Darwin (o autor de «a origem das espécies», preconizadora do
evolucionismo), a criação deste termo com que ele pretendia defender uma ideia
que Ridley enuncia de forma muito lapidar: «deixem-nos melhorar a linhagem da
nossa espécie, tal como melhoramos a linhagem das outras. Deixem-nos reproduzir
os melhores, e não os piores, espécimes da humanidade» (Ridley, p. 298) Esta
começou por ser uma ideia meramente científica, mas que, rapidamente, começou a
ganhar foros de ideia política e social. Em nome de uma intenção que parecia
justificar-se a si mesma (reduzir a existência de genes perturbadores do
desenvolvimento humano) e de uma possibilidade que a ciência parecia assegurar,
a ideia foi ganhando adeptos, muito antes de Hitler operacionalizar em larga
escala uma intenção que parecia ingénua. No período que vai de final do século
XIX até à Segunda Guerra Mundial, poucos países conseguiram resistir à vertigem
eugenística, introduzindo, nos seus quadros legais, medidas que previam o
impedimento de casamento a pessoas que eram consideradas suscetíveis de
transmitir genes indesejados ou medidas ainda mais agressivas. Em 1911, seis Estados
norte-americanos previam a esterilização forçada dos que eram considerados
mentalmente incapazes. Em 1917, já eram 15 os Estados norte-americanos com leis
deste teor e, em 1931, chegavam a 30. Em 1924, os Estados Unidos aprovaram uma
lei da imigração (Immigration Restriction Act) que limitava a entrada de
imigrantes provindos do sul ou leste da Europa, sob pretexto de serem
«biologicamente inferiores». Com base em leis aprovadas no período entre 1910 e
1935, mais de 100000 pessoas foram esterilizadas sem a sua autorização (Ridley,
300). E não se pense que a matéria se confinou ao contexto americano. Países
tantas vezes apontados como modelo de modernidade e progresso como o Canadá,
Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia, incluíram leis eugénicas nos seus quadros
jurídicos. Só a Suécia, com lei de 1934, esterilizou mais de 60000 pessoas sem
a sua autorização (Ridley 300). Como bem recorda o mesmo autor a quem devemos estas
informações, o auge desta vertigem demolidora encontramo-lo no regime nazi que
«esterilizou 400000 pessoas e, depois, assassinou muitas delas. Na Segunda
Guerra Mundial, em apenas 18 meses, 70000 doentes psiquiátricos alemães já
esterilizados foram gaseados apenas para libertar camas de hospital para os
soldados feridos». (Ridley 300-301).
E a surpresa de quem acompanha este avolumar de
informação não termina se nos decidirmos a enunciar alguns dos nomes dos
preconizadores destas medidas. Encontraremos entre eles figuras destacadas que,
seguramente, após a guerra, teriam de rever a sua posição. Destaco os nomes de
Keynes, economista de renome, George Shaw, escritor de origem irlandesa, e W. Churchill,
que, em 1910, escreveu uma carta ao então primeiro-ministro britânico,
defendendo legislação eugénica para que «a maldição dos doentes mentais
morresse com eles» (Ridley 304). A Segunda Guerra Mundial e as atrocidades
cometidas a pretexto de princípios eugénicos mostraram quão errado era o
raciocínio. Mas com que custos e tão tardiamente!
O assombro que estas informações nos devem provocar
não pode senão acordar-nos. Como recorda o mesmo Ridley, muito poucos países
resistiram a esta vertigem sedutora, no período que antecedeu a Segunda Guerra.
Entre eles, a resistência mais acentuada encontrou-se nos países de matriz
católica. O reconhecimento da dignidade inviolável da vida humana tinha raízes
e revelava que este «canto da sereia» não podia estar certo.
Invocar para aqui o «canto da sereia» obriga-nos a
recordar a cena da Odisseia, de Homero, que nos conta, no canto XII, a saga de
Ulisses que, regressando da batalha de Tróia para a sua cidade de Ítaca, tem de
passar pela ilha das sereias, as mulheres-pássaro cujo canto melodioso, se
ouvido, seduz até à morte. Ulisses, para poder prosseguir viagem, sela os
ouvidos dos companheiros, com cera, para que não possam ouvir o canto melodioso
que seduz e, querendo ser o único a ouvir tal canto, pede aos companheiros que
o prendam, com firmeza, ao mastro da nau. Mesmo quando, ao ser seduzido, pede
aos companheiros, com um franzir de sobrolho, que o libertem, o que consegue é
que os companheiros ainda apertem mais o laço que o prende ao mastro.
É preciso que alguém nos prenda ao mastro. As
sereias têm seduzido e levam-nos à morte. Ítaca não é, porém, aqui.
Quem tem ouvidos para ouvir ouça…