domingo, agosto 07, 2016

Recensão

 António MARUJO - A lista do Padre Carreira. Amadora: Vogais, 2016, 205 pp.
O livro que é um filme!


1994 é um marco na minha vida e tê-lo-á sido, certamente, na vida de muitos amantes do cinema, mas, também, da História. Recordo-me de, nesse ano, ter visto, na tela do cineteatro ‘avenida’, em Coimbra, o filme «a lista de Schindler», de Steven Spielberg. Guardo na memória o silêncio com que o público ouviu, até ao último acorde, a envolvente melodia, genialmente tocada ao violino por Itzhak Perlman, que acompanha o fim deste filme que passa de preto e branco a cores, quando os sobreviventes salvos por Schindler depositam uma pedra sobre o seu túmulo.
Até então, desconhecia quem era Oskar Schindler e, sequer, Aristides de Sousa Mendes, Sampaio Garrido, Brito Mendes ou Padre Carreira. Foi pela mão do cinema que o mundo conheceu o nome daquele empresário checo que salvou mais de mil judeus das garras do nazismo.
O tempo veio a resgatar do esquecimento outros nomes e Portugal reconciliou-se com alguns dos seus concidadãos que ocupam, hoje, um lugar singular entre aqueles que o Yad Vashem (Autoridade para a Memória e Heróis do Holocausto, em Jerusalém) reconhece como ‘justos entre as nações’. Recordo-me de, com o tempo, me ocorrer que nos faltava um Steven Spielberg que levasse à tela do cinema a nobreza e ousadia de Sousa Mendes, a quem devem a vida mais de 10 mil judeus, ou a ação de Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho, que salvaram cerca de 1000 pessoas, ou a discreta mas corajosa decisão da família Brito Mendes, a quem se deve a vida de uma menina judia (destas comoventes histórias nos fala, com detalhe, o livro que aqui apresentamos).
A leitura do livro de António Marujo, ‘A lista do Padre Carreira’, que a editora Vogais faz chegar às mãos dos leitores portugueses, fez-me regressar a 1994. António Marujo, qual Spielberg no cinema, conta, com detalhe e fundamentação, a ousadia e coragem de um padre português, no tempo da Roma tomada pelos nazis, entre 1943 e 1944, e a quem o Yad Vashem reconheceu, em 2014, a condição de ‘justo entre as nações’. Como em 1994, a emoção da leitura fez-me silenciar perante a memória de um homem que ousou arriscar a vida, concedendo ‘asilo e hospitalidade no Colégio [Pontifício Português] a várias pessoas que eram perseguidas na base de leis injustas e desumanas’. Mas António Marujo não nos oferece, apenas (e já não seria pouco!), uma narrativa vívida e intensa das condicionantes da decisão do Padre Carreira, permitindo-nos regressar àquela época e compreender os meandros que adensam a carga de coragem que envolvem a escolha do padre português. Também outros problemas que dizem respeito à ação da Igreja no contexto da II Guerra Mundial são aqui retratados, com verdade e honestidade, numa descrição que vai à raiz de cada matéria. A discussão sobre a atuação do Papa Pio XII encontra aqui novos elementos que tornam incontornável a visita a este livro para uma qualquer análise que se pretenda honesta e documentada.
Se é certo que a biografia de alguém é sempre um campo aberto, não é infundada a afirmação de que «este livro é a biografia definitiva» do Padre Carreira. António Marujo, que faz jus aos seus méritos de jornalista premiado internacionalmente (recebeu, por duas vezes, o Prémio Europeu de Jornalismo religioso na imprensa não-confessional, atribuído pela Fundação Templeton e Conferência das Igrejas Europeias, em 1995 e 2006), descreve, aqui, com uma fluidez de escrita que prende quem a lê, os momentos mais marcantes de uma vida, que, afirmando-se como singular pela decisão de acolher os refugiados que se salvaram no Colégio Pontifício Português, não se esgota nesse tempo e escolha. A coerência da vida que se configura nessa escolha transparece nos muitos documentos, nos diversos acontecimentos e múltiplos testemunhos com que se constrói a narrativa. António Marujo não deixa pontas soltas. O que diz tem motivos: justifica-o e fundamenta-o. É por isso que este é um livro ímpar. Lê-lo é participar de um ato de justiça porque resgata do esquecimento a memória de um justo esquecido.

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