sábado, outubro 29, 2016

Muito mais do que um rumor de anjos - A modernidade significa o fim da religião?

Ouço, em fundo, Arvo Pärt. Não é por acaso. A vida e obra deste compositor estoniano ilustram, na perfeição, o que me proponho analisar, ao longo deste artigo: a morte da ideia de que a modernidade conduziria ao fim da religião. Ouvir Arvo Pärt, ouvi-lo em «Orient-Occident», em «Arbos», «Passio», «Fratres», confirma a omnipresença do religioso na vida de alguém que assistiu à ocupação soviética do seu país por um longo inverno de 50 anos, ocupação que fez da tentativa de silenciar a «obscurantista» religião um dos seus grandes fins.
Assistimos, durante décadas, à defesa da ideia de que a religião perderia a sua relevância social com o avançar da modernidade. Esta tese, designada como teoria da secularização, encontra a sua paternidade em M. Weber, mas encontra em Peter Berger um dos seus maiores mentores dos finais do século XX. De tal modo que as suas obras são traduzidas para chinês, nas décadas de 90, e é mesmo convidado pelo governo da China para ali apresentar as suas ideias, já depois de 2000.
A tese era simples e podemos encontrar a sua formulação, recorrendo, por exemplo, à definição que nos apresenta a wikipedia:
«A secularização é um processo através do qual a religião perde a sua influência sobre as variadas esferas da vida social. Essa perda de influência repercute-se na diminuição do número de membros das religiões e de suas práticas, na perda do prestígio das igrejas e organizações religiosas, na influência na sociedade, na cultura, na diminuição das riquezas das instituições religiosas, e, por fim, na desvalorização das crenças e dos valores a elas associados. A partir do século XIX, houve um progressivo declínio da influência das instituições religiosas tradicionais. Este declínio verificou-se tanto na prática dos fiéis, como na dificuldade crescente em recrutar clero para o desenvolvimento e manutenção da instituição. A maior parte dos estudos versou a tentativa de compreensão deste fenómeno.»
Enunciada deste modo, a secularização, entendida num registo de secularismo, parece ser uma certa insofismável do fim da relevância da religião, a que não resta senão dar o crédito de quem aguarda pela sentença de morte.
Nada mais errado.
Quem o reconhece é o próprio guru da teoria da secularização, Peter Berger.
Num livro recentemente publicado, em cuja primeira edição espanhola de agosto de 2016 me baseio, Berger afirma: «levei 25 anos a chegar à conclusão de que a teoria da secularização se tornou empiricamente insustentável. Anunciei a minha mudança de parecer com muito estrondo na introdução a um livro que editei em 1999, a «des-secularização do mundo». Acreditei ser importante sublinhar que esta transformação na minha forma de pensar não respondia a uma conversão filosófica ou teológica. […] O que sucedeu foi muito menos drástico: tornou-se cada vez mais evidente que os dados empíricos contradiziam a teoria. Com algumas exceções – sobretudo na Europa e na intelectualidade internacional – o nosso mundo é tudo menos secular; é tão religioso como sempre, e em alguns lugares, ainda mais». Peter Berger dixit!
Este reconhecimento é duplamente relevante. Em primeiro lugar por provir de quem o assume. Peter Berger é, provavelmente, o mais influente sociólogo da religião do último meio século. Em segundo lugar, porque, como ele mesmo reconhece neste livro, uma teoria sociológica não tem, apenas, uma dimensão abstrata e descritiva. Uma teoria sociológica tem, também, uma dimensão normativa e constitui-se como um paradigma. Dito de outro modo: a teoria serve a prática e condiciona-a, tremendamente. Não é difícil perceber que a ação política, a forma de legislar, tem sido altamente condicionada por esta teoria. Quantos conflitos se têm gerado em nome do silenciamento do religioso, em nome da certeza de que o que se está a fazer é, afinal, acelerar algo inevitável? Ora, o que Peter Berger vem afirmar, nesta obra, é que a teoria da secularização deve ser substituída pela do pluralismo. (Melhor seria, como afirma Fenggang Yang, chamar-lhe «pluralidade»). O que temos, hoje, é a pluralidade: seja de experiências religiosas, seja de discursos: temos o discurso secular a conviver com o discurso religioso.
Tal constatação bergeriana constitui um enorme desafio, seja para as relações entre as Igrejas/religiões e os Estados, seja no âmbito mais restrito da ação evangelizadora da Igreja, no contexto eclesial cristão. O centro não deveria, já, estar na preocupação com a eficácia do discurso secularizante, mas antes na realidade da pluralidade, o que recentra na busca da especificidade da cosmovisão cristã diante de outros discursos religiosos e já não tanto na dúvida sobre a relevância do discurso religioso.
A verificação de que esta mudança de visão, da parte de Peter Berger, já começa a gerar frutos é visível no próprio mundo chinês, ainda devedor da visão marxista/maoísta de que a religião é ópio. Também ali começam a notar-se a brechas na barragem do discurso secularista: em maio de 2014, na universidade de Purdue (EUA), realizou-se um simpósio com juristas, ministros e estudantes chineses, subordinado ao tema «liberdade religiosa e sociedade chinesa», tendo-se celebrado o «consenso de Purdue sobre liberdade religiosa», assinado por 52 pessoas e publicado em 14 de maio de 2014. Disto nos dá conta Fenggang Yang, um dos autores convidados para participar no livro de Peter Berger, «os numerosos altares da modernidade», agosto de 2016 (Ediciones Sígueme), que serve de base à reflexão que aqui apresento.
A conclusão a tirar do que aqui apresentamos é clara e podemos enunciá-la com palavras de Detlef Pollack, um outro autor convidado a participar nesta obra: «no que respeita à teoria da secularização, era correta a intuição de que se desenvolveu um discurso secular influente, que se uniu ao discurso religioso e inclusive gozou de uma posição de privilégio tanto na sociedade como na mente do indivíduo. Mas estava equivocada ao assumir que o discurso secular expulsara a cosmovisão religiosa e que, agora, poderia dominar por completo as definições da realidade e das escalas de valores. Diante dos pressupostos da teoria da secularização, a modernização não conduziu inevitavelmente à total secularização da sociedade. Antes, a consequência ineludível da modernidade foi a diversificação das cosmovisões e dos sistemas de valores.»
E regresso a Arvo Pärt… E ouço, em contemplação religiosa a música que, feita de notas que são sinais que permitem a manipulação das vibrações sonoras, me elevam para além do lugar físico em que me encontro. O discurso que explica a música não esgota a densidade da música que ouço.
O âmbito religioso é muito mais do que um verniz que banha a madeira. É a seiva que irriga o interior da árvore. Pretender secá-la e substituí-la não altera, apenas, uma certa forma de a madeira de apresentar: modifica a sua natureza. O homem é intrinsecamente religioso, mesmo quando age «como se Deus não existisse». Porque ser humano é transcender-se e corresponder ao desejo de transcendência. Em boa-hora veio o reconhecimento da sociologia. Assim a saibam ouvir os que têm nas mãos os destinos do mundo! Porque este é muito mais do que um rumor de anjos (título de uma das obras de Berger): é o fragor da água que brota da nascente definitiva!

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