Ouço, em fundo, Arvo Pärt. Não é
por acaso. A vida e obra deste compositor estoniano ilustram, na perfeição, o
que me proponho analisar, ao longo deste artigo: a morte da ideia de que a
modernidade conduziria ao fim da religião. Ouvir Arvo Pärt, ouvi-lo em
«Orient-Occident», em «Arbos», «Passio», «Fratres», confirma a omnipresença do
religioso na vida de alguém que assistiu à ocupação soviética do seu país por
um longo inverno de 50 anos, ocupação que fez da tentativa de silenciar a
«obscurantista» religião um dos seus grandes fins.
Assistimos, durante décadas, à
defesa da ideia de que a religião perderia a sua relevância social com o
avançar da modernidade. Esta tese, designada como teoria da secularização,
encontra a sua paternidade em M. Weber, mas encontra em Peter Berger um dos
seus maiores mentores dos finais do século XX. De tal modo que as suas obras
são traduzidas para chinês, nas décadas de 90, e é mesmo convidado pelo governo
da China para ali apresentar as suas ideias, já depois de 2000.
A tese era simples e podemos encontrar a sua
formulação, recorrendo, por exemplo, à definição que nos apresenta a wikipedia:
«A secularização é um processo através do qual a religião perde
a sua influência sobre as variadas esferas da vida social. Essa perda de
influência repercute-se na diminuição do número de membros das religiões e de
suas práticas, na perda do prestígio das igrejas e organizações religiosas, na
influência na sociedade, na cultura, na diminuição das riquezas das
instituições religiosas, e, por fim, na desvalorização das crenças e dos
valores a elas associados. A partir do século
XIX, houve um progressivo declínio da influência das instituições religiosas
tradicionais. Este declínio verificou-se tanto na prática dos fiéis, como na
dificuldade crescente em recrutar clero para o desenvolvimento e manutenção da
instituição. A maior parte dos estudos versou a tentativa de compreensão deste
fenómeno.»
Enunciada deste modo, a
secularização, entendida num registo de secularismo, parece ser uma certa
insofismável do fim da relevância da religião, a que não resta senão dar o
crédito de quem aguarda pela sentença de morte.
Nada mais errado.
Quem o reconhece é o próprio guru
da teoria da secularização, Peter Berger.
Num livro recentemente publicado,
em cuja primeira edição espanhola de agosto de 2016 me baseio, Berger afirma:
«levei 25 anos a chegar à conclusão de que a teoria da secularização se tornou
empiricamente insustentável.
Anunciei a minha mudança de parecer com muito estrondo na introdução a um livro
que editei em 1999, a «des-secularização do mundo». Acreditei ser importante
sublinhar que esta transformação na minha forma de pensar não respondia a uma
conversão filosófica ou teológica. […] O que sucedeu foi muito menos drástico:
tornou-se cada vez mais evidente que os dados empíricos contradiziam a teoria.
Com algumas exceções – sobretudo na Europa e na intelectualidade internacional
– o nosso mundo é tudo menos secular; é tão religioso como sempre, e em alguns
lugares, ainda mais». Peter Berger dixit!
Este
reconhecimento é duplamente relevante. Em primeiro lugar por provir de quem o
assume. Peter Berger é, provavelmente, o mais influente sociólogo da religião
do último meio século. Em segundo lugar, porque, como ele mesmo reconhece neste
livro, uma teoria sociológica não tem, apenas, uma dimensão abstrata e
descritiva. Uma teoria sociológica tem, também, uma dimensão normativa e
constitui-se como um paradigma. Dito de outro modo: a teoria serve a prática e
condiciona-a, tremendamente. Não é difícil perceber que a ação política, a
forma de legislar, tem sido altamente condicionada por esta teoria. Quantos
conflitos se têm gerado em nome do silenciamento do religioso, em nome da
certeza de que o que se está a fazer é, afinal, acelerar algo inevitável? Ora,
o que Peter Berger vem afirmar, nesta obra, é que a teoria da secularização
deve ser substituída pela do pluralismo. (Melhor seria, como afirma Fenggang
Yang, chamar-lhe «pluralidade»). O que temos, hoje, é a pluralidade: seja de
experiências religiosas, seja de discursos: temos o discurso secular a conviver
com o discurso religioso.
Tal
constatação bergeriana constitui um enorme desafio, seja para as relações entre
as Igrejas/religiões e os Estados, seja no âmbito mais restrito da ação
evangelizadora da Igreja, no contexto eclesial cristão. O centro não deveria,
já, estar na preocupação com a eficácia do discurso secularizante, mas antes na
realidade da pluralidade, o que recentra na busca da especificidade da
cosmovisão cristã diante de outros discursos religiosos e já não tanto na
dúvida sobre a relevância do discurso religioso.
A
verificação de que esta mudança de visão, da parte de Peter Berger, já começa a
gerar frutos é visível no próprio mundo chinês, ainda devedor da visão marxista/maoísta
de que a religião é ópio. Também ali começam a notar-se a brechas na barragem
do discurso secularista: em maio de 2014, na universidade de Purdue (EUA),
realizou-se um simpósio com juristas, ministros e estudantes chineses,
subordinado ao tema «liberdade religiosa e sociedade chinesa», tendo-se
celebrado o «consenso de Purdue sobre liberdade religiosa», assinado por 52
pessoas e publicado em 14 de maio de 2014. Disto nos dá conta Fenggang Yang, um
dos autores convidados para participar no livro de Peter Berger, «os numerosos
altares da modernidade», agosto de 2016 (Ediciones Sígueme), que serve de base à reflexão que aqui
apresento.
A
conclusão a tirar do que aqui apresentamos é clara e podemos enunciá-la com
palavras de Detlef Pollack, um outro autor convidado a participar nesta obra:
«no que respeita à teoria da secularização, era correta a intuição de que se
desenvolveu um discurso secular influente, que se uniu ao discurso religioso e
inclusive gozou de uma posição de privilégio tanto na sociedade como na mente do
indivíduo. Mas estava equivocada ao assumir que o discurso secular expulsara a
cosmovisão religiosa e que, agora, poderia dominar por completo as definições
da realidade e das escalas de valores. Diante dos pressupostos da teoria da
secularização, a modernização não conduziu inevitavelmente à total
secularização da sociedade. Antes, a consequência ineludível da modernidade foi
a diversificação das cosmovisões e dos sistemas de valores.»
E
regresso a Arvo Pärt… E ouço, em contemplação religiosa a música que, feita de
notas que são sinais que permitem a manipulação das vibrações sonoras, me
elevam para além do lugar físico em que me encontro. O discurso que explica a
música não esgota a densidade da música que ouço.
O
âmbito religioso é muito mais do que um verniz que banha a madeira. É a seiva
que irriga o interior da árvore. Pretender secá-la e substituí-la não altera,
apenas, uma certa forma de a madeira de apresentar: modifica a sua natureza. O
homem é intrinsecamente religioso, mesmo quando age «como se Deus não
existisse». Porque ser humano é transcender-se e corresponder ao desejo de
transcendência. Em boa-hora veio o reconhecimento da sociologia. Assim a saibam
ouvir os que têm nas mãos os destinos do mundo! Porque este é muito mais do que
um rumor de anjos (título de uma das obras de Berger): é o fragor da água que
brota da nascente definitiva!