O título é dramático, mas a situação não é para
menos. Temos vindo a assistir ao emergir de um tsunami ideológico que tem feito
subir o mar da indiferença, sem que nos apercebamos de ele nos estar a
submergir.
Na verdade, se é certo que não há dores não
tratáveis, que a resposta para as fases terminais de doenças graves passa pela
melhoria dos cuidados paliativos, que a alternativa à eutanásia não é ter de
suportar dores incomportáveis, que a eutanásia não é um ato médico, mas um ato
de matar, que o prolongamento indevido da vida à maneira de um «encarniçamento
terapêutico» é um erro ético, então, a que se deve esta obsessão de legalizar a
morte a pedido, realizada com o contributo dos técnicos de saúde, pondo em causa
que se é médico ou enfermeiro para curar e cuidar?
E a resposta vai sempre bater ao mesmo sítio.
Argumenta-se que legalizar a eutanásia só afeta os que a pedem. E isso, mais
uma vez, não é verdade.
Ninguém nasce sozinho como ninguém morre sozinho;
ninguém enriquece sozinho como ninguém empobrece sozinho; ninguém se educa
sozinho como ninguém se torna rebelde sozinho; ninguém se cria sozinho como
ninguém se destrói sozinho; ninguém se torna humano sozinho como também ninguém
se desumaniza sozinho. Somos seres em e de relação. O que fazemos aos outros
afeta-nos a nós; o que nos fazem a nós afeta os outros; o que, também, fazemos
a nós próprios repercute-se nos outros.
É o mesmo Estado que pretende legalizar a
eutanásia, a pretexto de ser uma decisão individual, aquele que se sente
legitimado para nos punir se não utilizamos cinto de segurança, quando, na
verdade, supostamente, só a nós mesmos nos penalizamos se não o usarmos. Mas,
aqui, o Estado – e bem! – quer dar o sinal de que temos a obrigação de não nos
fazermos mal ou de não descuidarmos a nossa própria proteção. Porquê, então,
abandonar-nos à dramaticidade de decidirmos sobre a antecipação da morte, num
momento tão dramático como o da maior fragilidade em face da doença?
É este mesmo Estado que, agora, se propõe legitimar
a morte efetiva, com o pretexto de ser matéria meramente individual.
Mas não é verdade que seja matéria meramente
individual.
A legalização da eutanásia faz recair sobre todos
os que se sentem em situação de maior fragilidade a suspeita de que a sociedade
os quer ver mortos.
Se a eutanásia for legalizada, todo o doente em
fase terminal, que morrer de modo natural, terá sido, durante os seus anos de
vida, um sobrevivente à lei. E isso não poderá senão significar que a lei é
inumana.
Só se compreende esta vertigem individualista à luz
do emergir do tal «tsunami ideológico» que se vai apoderando das nossas
sociedades ocidentais: um tsunami que dá pelo nome de «libertarismo». O
movimento libertário é transversal à direita e à esquerda e define-se como a
sustentação da convicção de que, em primeiro lugar, está o indivíduo, que se
define como autossuficiente e insuscetível de qualquer limitação por parte dos
demais. É bom que se tenha a consciência de que o movimento libertário não se
limita a sustentar a legalização do aborto, da eutanásia, da prostituição, etc.
A sua intenção vai bem mais longe e, por isso, como muito bem observa Michael
Sandel, no seu livro «Justiça: fazemos o que devemos?» (editado pela Presença),
é uma visão que perpassa todos os quadrantes políticos: no limite, o
libertarismo defende a ideia de «autopropriedade» e que o que for consentido é
legítimo, sendo que o que não for explicitamente consentido não é legítimo: a
própria venda de órgãos próprios, se consentida, pode ser legítima; já a
aplicação de qualquer imposto, se não for consentida, é inaceitável para o
libertário: propõe, por isso, o fim todos os impostos e que, quem é rico, fique
com tudo o que recebe, pois, se o conquistou pela sua liberdade, com que
legitimidade vêm outros (o Estado) retirar-lhe o que é seu?
Este mesmo libertarismo legitima, no limite,
comportamentos como o do canibal de Rotemburgo (2001) em que dois adultos
acordaram que um mataria e devoraria o outro, sob pretexto de que era uma
decisão entre duas pessoas livres.
É esta a visão de sociedade que pretendemos
defender?
Mas é esta a visão que se propõem defender os
libertários que reivindicam que a morte de um humano é assunto só seu. Se a
morte de um humano for assunto que só a si diz respeito, também a vida deixará
de merecer a preocupação e cuidado de todos. Não é esta a presunção que
assistiu à proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e não é,
também, a que sustenta a visão de Estado Social que, paradoxalmente, dizem
defender muitos dos que se associam à tentativa de legalização da eutanásia. Se
esta for legalizada, como acontece nos países que já o fizeram, todos os que
regressarmos a casa depois de uma fase grave de doença, seremos sobreviventes
de uma guerra silenciosa que se travará nos hospitais nacionais.
Só a dramatização das decisões poderá despertar as
consciências para o que está em causa. Os que querem que se morra não podem
matar com eles os que querem que se viva.