A pergunta que serve de título alude a uma
afirmação proferida por Norberto Bobbio, por ocasião das disputas que
conduziram à legalização do aborto, em Itália. Norberto Bobbio, reconhecido
deputado socialista italiano, que se definia como um laico, assumira, em maio
de 1981, no Corriere della Sera, que lhe causava estupefação que os «laicos
entregassem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar».
Um duplo pretexto justifica a recuperação das
palavras de Bobbio: a discussão em curso sobre a eutanásia e um artigo recente
de Fernanda Câncio, sobre a presença do Catolicismo na sociedade portuguesa.
Os dois pretextos cruzam-se no artigo de Fernanda
Câncio, que se organiza em tornos de inverdades e suposições não verificadas.
Em primeiro lugar, importa começar por dizer que, a
não ser que se sustente uma laicidade negativa, vulgarmente designada como
laicismo, ninguém de bom senso poderá sustentar o silenciamento da religião, no
espaço público. Já não estamos no período do terror, que sucedeu à revolução
francesa, e que fez perseguições que redundaram em algumas centenas de milhares
de mortos, a pretexto de serem religiosos, em geral, e católicos, em particular.
Quem achar exagerados estes números, basta que leia alguma coisa sobre o
massacre da Vendeia… Mas os tiques jacobinistas que germinaram, nessa época,
continuam a aparecer.
Pouco sábios, porém. A História da República
Portuguesa demonstra que há lições a retirar do modo como, ao longo dos três
republicanos, se articulou a relação entre Estado e Igreja. Como bem recordou
Mário Soares, no prefácio do livro de Amadeu Gomes de Araújo, «Um erro de
Afonso Costa», «a I República, em parte caiu, pelo conflito entre a República e
a Igreja Católica. Depois do 25 de Abril quando regressei do meu exílio em
França, trazia uma ideia na cabeça: não repetir a luta entre o Estado Laico e a
Igreja Católica. E assim actuei sempre como a Igreja Católica sabe bem – e o
Vaticano – desde que tive responsabilidades no Portugal de Abril, apesar de não
ser religioso, como se sabe.» (Araújo, 2015, p. 8). Mas alguns teimam em
esquecer esta lição.
Em segundo lugar, importa recordar que, apesar de
todos dizerem, sem confirmar, que a Constituição define o Estado português como
sendo laico, é necessário recordar que, em nenhum momento, a Constituição
utiliza as palavras «laico» ou «laica» ou «laicidade». Essas palavras não
aparecem na nossa Constituição. Aparecem, sim, na da República Francesa, mas
Portugal não é a França. A leitura sobre a laicidade do Estado é de ordem
interpretativa, decorrente do princípio da separação, enunciado no artigo 41º
da Constituição.
Em terceiro lugar, é de recordar que a Educação
Moral e Religiosa Católica, mencionada no artigo da referida jornalista, tem o
caráter de disciplina de frequência facultativa, pelo que é falso que, através
desta disciplina, o Estado esteja a fazer proselitismo. Aliás, é recomendável a
leitura do acórdão do tribunal Constitucional que, em 1993, se pronunciou,
precisamente, sobre esta matéria. A título ilustrativo, vale a pena recordar o
que, então, afirmou o referido tribunal, em dois passos. Por um lado, definindo
o seu entendimento sobre o que seja «liberdade religiosa»: «X - A liberdade
religiosa, enquanto dimensão da liberdade de consciência (artigo 41, n. 1, da
Constituição), assume, também, um valor positivo, requerendo do Estado não uma
pura atitude omissiva, uma abstenção, um "non facere", mas um
"facere", traduzido num dever de assegurar ou propiciar o exercício
da religião.» O Estado assume-se, aqui, como um servidor dos cidadãos e não um
seu opositor ou como entidade indiferente à sua identidade. Esta é, aliás, uma
perceção que muitas vezes recordou o Cardeal D. José Policarpo que recordava
que, sendo o Estado separado das Igrejas e, assim, laico na sua identidade, não
o era, porém, a sociedade, definida como marcadamente influenciada pelo
Cristianismo.
Por outro lado, explicitando o que decorre da ideia
de separação: «XIII - Os princípios constitucionais da separação entre as
Igrejas e o Estado e da não confessionalidade do ensino público não podem ser
entendidos de forma tão rígida que obstaculizem a colaboração do Estado com as
igrejas e outras comunidades religiosas. A colaboração do Estado com as Igrejas
constitui mesmo uma obrigação do Estado, a qual tem o seu fundamento na
liberdade religiosa, na sua dimensão positiva, e no dever do Estado de
cooperação com os pais na educação dos filhos e o seu limite nos princípios da laicidade
do Estado e da confessionalidade do ensino público.» É difícil ser mais claro.
O Tribunal Constitucional revela, neste acórdão de 1 de junho de 1993, uma
sabedoria que Fernanda Câncio não evidencia, no seu artigo.
Juntemos a estes dados, um facto que poderemos
situar a montante de toda esta abordagem. O teor do referido artigo demonstra
uma agressividade e uma feroz violência nas palavras que denuncia estar num
combate contra um inimigo que ela pretende abater. Esta circunstância
recorda-me o conteúdo de um livro de Umberto Eco, intitulado «construir o
inimigo», onde o escritor italiano revela como, ao longo da história, foram
caracterizados os «inimigos». Os inimigos nunca foram bonitos, sábios,
inteligentes, pessoas reais. Sempre foram uma caricatura. E o que Fernanda
Câncio tem na cabeça é uma caricatura da Igreja. Como tantos, hoje em dia, que,
vítimas de uma «Cristofobia», se dispõem a fazer uma perseguição mais ou menos
velada ao cristianismo, em geral, e ao Catolicismo, em particular. Isto não
invalida que nós, católicos, não nos devamos preocupar com os motivos que
contribuem para que tal caricatura se esteja a gerar. Mas ela não é justa. E
isso deve ser dito, não só a Fernanda Câncio, mas também a tantos que, na dita
grande imprensa, olham com desdém para a presença católica, na sociedade
portuguesa, esquecendo que cerca de 80% dos portugueses se dizem católicos.
Algo está mal no mundo de um certo jornalismo inconcreto (esquecido da realidade efetiva dos portugueses).
Não é esse, porém, o sentimento de muitos que,
honestos como Norberto Bobbio, referido no início deste artigo, reconhecem o
papel singular e ímpar da religião como despertador de consciências, como
promotor da melhor arte, como garante das condições para que possa fazer-se a
ciência, como mecenas e defensor dos mais frágeis. Basta recordar a leitura
honesta feita por Alain de Botton, no seu livro «religião para ateus» que,
apesar de descrente, reconhece que nenhum outro âmbito humano foi e é tão
eficaz, na arte, na literatura, na solidariedade, na defesa dos mais frágeis,
na fundamentação da ética, etc., como a religião. A todas as Fernandas Câncio deste país é necessário
recordar que estão a travar uma batalha com uma ilusão. O seu opositor é uma
máscara e uma caricatura: as verdadeiras religiões, em geral, e o catolicismo,
em particular, estão noutro lugar - do lado da procura do bem, da liberdade, da
verdade. Os atentados contra estes foram e são, eles próprios, caricaturas de
que as religiões se envergonham. E, por isso, eles não são as próprias
religiões.
É, por isso, legítimo, óbvio e apenas de justiça
que os crentes portugueses possam e devam envolver-se no que a todos diz
respeito. Se não fosse assim, pelo menos 80% de entre os cidadãos nacionais
ficariam privados de se pronunciar sobre o que a todos respeita. E isso não só
desrespeitaria a liberdade religiosa como o próprio princípio da democracia
participativa. Sendo que, no que respeita a matérias sobre a vida e a morte,
dizer-nos que matar é errado não é, seguramente, um exclusivo dos crentes. Pelo
menos para Bobbio! Sê-lo-á para Câncio?