domingo, fevereiro 26, 2017

Poderá reconhecer-se aos crentes o monopólio da defesa da vida humana?

A pergunta que serve de título alude a uma afirmação proferida por Norberto Bobbio, por ocasião das disputas que conduziram à legalização do aborto, em Itália. Norberto Bobbio, reconhecido deputado socialista italiano, que se definia como um laico, assumira, em maio de 1981, no Corriere della Sera, que lhe causava estupefação que os «laicos entregassem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar».
Um duplo pretexto justifica a recuperação das palavras de Bobbio: a discussão em curso sobre a eutanásia e um artigo recente de Fernanda Câncio, sobre a presença do Catolicismo na sociedade portuguesa.
Os dois pretextos cruzam-se no artigo de Fernanda Câncio, que se organiza em tornos de inverdades e suposições não verificadas.
Em primeiro lugar, importa começar por dizer que, a não ser que se sustente uma laicidade negativa, vulgarmente designada como laicismo, ninguém de bom senso poderá sustentar o silenciamento da religião, no espaço público. Já não estamos no período do terror, que sucedeu à revolução francesa, e que fez perseguições que redundaram em algumas centenas de milhares de mortos, a pretexto de serem religiosos, em geral, e católicos, em particular. Quem achar exagerados estes números, basta que leia alguma coisa sobre o massacre da Vendeia… Mas os tiques jacobinistas que germinaram, nessa época, continuam a aparecer.
Pouco sábios, porém. A História da República Portuguesa demonstra que há lições a retirar do modo como, ao longo dos três republicanos, se articulou a relação entre Estado e Igreja. Como bem recordou Mário Soares, no prefácio do livro de Amadeu Gomes de Araújo, «Um erro de Afonso Costa», «a I República, em parte caiu, pelo conflito entre a República e a Igreja Católica. Depois do 25 de Abril quando regressei do meu exílio em França, trazia uma ideia na cabeça: não repetir a luta entre o Estado Laico e a Igreja Católica. E assim actuei sempre como a Igreja Católica sabe bem – e o Vaticano – desde que tive responsabilidades no Portugal de Abril, apesar de não ser religioso, como se sabe.» (Araújo, 2015, p. 8). Mas alguns teimam em esquecer esta lição.
Em segundo lugar, importa recordar que, apesar de todos dizerem, sem confirmar, que a Constituição define o Estado português como sendo laico, é necessário recordar que, em nenhum momento, a Constituição utiliza as palavras «laico» ou «laica» ou «laicidade». Essas palavras não aparecem na nossa Constituição. Aparecem, sim, na da República Francesa, mas Portugal não é a França. A leitura sobre a laicidade do Estado é de ordem interpretativa, decorrente do princípio da separação, enunciado no artigo 41º da Constituição.
Em terceiro lugar, é de recordar que a Educação Moral e Religiosa Católica, mencionada no artigo da referida jornalista, tem o caráter de disciplina de frequência facultativa, pelo que é falso que, através desta disciplina, o Estado esteja a fazer proselitismo. Aliás, é recomendável a leitura do acórdão do tribunal Constitucional que, em 1993, se pronunciou, precisamente, sobre esta matéria. A título ilustrativo, vale a pena recordar o que, então, afirmou o referido tribunal, em dois passos. Por um lado, definindo o seu entendimento sobre o que seja «liberdade religiosa»: «X - A liberdade religiosa, enquanto dimensão da liberdade de consciência (artigo 41, n. 1, da Constituição), assume, também, um valor positivo, requerendo do Estado não uma pura atitude omissiva, uma abstenção, um "non facere", mas um "facere", traduzido num dever de assegurar ou propiciar o exercício da religião.» O Estado assume-se, aqui, como um servidor dos cidadãos e não um seu opositor ou como entidade indiferente à sua identidade. Esta é, aliás, uma perceção que muitas vezes recordou o Cardeal D. José Policarpo que recordava que, sendo o Estado separado das Igrejas e, assim, laico na sua identidade, não o era, porém, a sociedade, definida como marcadamente influenciada pelo Cristianismo.
Por outro lado, explicitando o que decorre da ideia de separação: «XIII - Os princípios constitucionais da separação entre as Igrejas e o Estado e da não confessionalidade do ensino público não podem ser entendidos de forma tão rígida que obstaculizem a colaboração do Estado com as igrejas e outras comunidades religiosas. A colaboração do Estado com as Igrejas constitui mesmo uma obrigação do Estado, a qual tem o seu fundamento na liberdade religiosa, na sua dimensão positiva, e no dever do Estado de cooperação com os pais na educação dos filhos e o seu limite nos princípios da laicidade do Estado e da confessionalidade do ensino público.» É difícil ser mais claro. O Tribunal Constitucional revela, neste acórdão de 1 de junho de 1993, uma sabedoria que Fernanda Câncio não evidencia, no seu artigo.
Juntemos a estes dados, um facto que poderemos situar a montante de toda esta abordagem. O teor do referido artigo demonstra uma agressividade e uma feroz violência nas palavras que denuncia estar num combate contra um inimigo que ela pretende abater. Esta circunstância recorda-me o conteúdo de um livro de Umberto Eco, intitulado «construir o inimigo», onde o escritor italiano revela como, ao longo da história, foram caracterizados os «inimigos». Os inimigos nunca foram bonitos, sábios, inteligentes, pessoas reais. Sempre foram uma caricatura. E o que Fernanda Câncio tem na cabeça é uma caricatura da Igreja. Como tantos, hoje em dia, que, vítimas de uma «Cristofobia», se dispõem a fazer uma perseguição mais ou menos velada ao cristianismo, em geral, e ao Catolicismo, em particular. Isto não invalida que nós, católicos, não nos devamos preocupar com os motivos que contribuem para que tal caricatura se esteja a gerar. Mas ela não é justa. E isso deve ser dito, não só a Fernanda Câncio, mas também a tantos que, na dita grande imprensa, olham com desdém para a presença católica, na sociedade portuguesa, esquecendo que cerca de 80% dos portugueses se dizem católicos. Algo está mal no mundo de um certo jornalismo inconcreto (esquecido da realidade efetiva dos portugueses).
Não é esse, porém, o sentimento de muitos que, honestos como Norberto Bobbio, referido no início deste artigo, reconhecem o papel singular e ímpar da religião como despertador de consciências, como promotor da melhor arte, como garante das condições para que possa fazer-se a ciência, como mecenas e defensor dos mais frágeis. Basta recordar a leitura honesta feita por Alain de Botton, no seu livro «religião para ateus» que, apesar de descrente, reconhece que nenhum outro âmbito humano foi e é tão eficaz, na arte, na literatura, na solidariedade, na defesa dos mais frágeis, na fundamentação da ética, etc., como a religião. A todas as Fernandas Câncio deste país é necessário recordar que estão a travar uma batalha com uma ilusão. O seu opositor é uma máscara e uma caricatura: as verdadeiras religiões, em geral, e o catolicismo, em particular, estão noutro lugar - do lado da procura do bem, da liberdade, da verdade. Os atentados contra estes foram e são, eles próprios, caricaturas de que as religiões se envergonham. E, por isso, eles não são as próprias religiões.

É, por isso, legítimo, óbvio e apenas de justiça que os crentes portugueses possam e devam envolver-se no que a todos diz respeito. Se não fosse assim, pelo menos 80% de entre os cidadãos nacionais ficariam privados de se pronunciar sobre o que a todos respeita. E isso não só desrespeitaria a liberdade religiosa como o próprio princípio da democracia participativa. Sendo que, no que respeita a matérias sobre a vida e a morte, dizer-nos que matar é errado não é, seguramente, um exclusivo dos crentes. Pelo menos para Bobbio! Sê-lo-á para Câncio?

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