Construir é sempre
uma tarefa lenta, morosa, paciente. Contrasta com a facilidade com que se pode
destruir. É, aliás, para alguns, este um dos grandes argumentos de que o mundo
tem de supor a existência de Deus, pois só uma vontade férrea, capaz de
conferir dinamismo de autossuperação da destruição, é que poderia garantir o
sucesso da vida diante da violência da morte e do inesperado da destruição.
Mas regressemos ao
ponto de partida.
Sabemos quão difícil
é construir os liames com que se une uma sociedade. E sabemos, também, como tão
facilmente é possível gerar ondas de destruição que degradam o ‘cimento’ que
gerava a força que unia.
Assiste-se a um
poderoso movimento de desconstrução intencional dos liames que cimentam os
laços que nos ligam, enquanto seres sociais.
Não se pense que
este processo é ingénuo, gratuito e sem intenção. Ele corresponde a um
desiderato bem definido. Basta que se leiam com atenção livros como «O livro
negro da Revolução francesa» ou «dez livros que estragaram o mundo e mais cinco
que também não ajudaram nada» ou, mais recentemente, «contributos para história
do feminismo», todos editados pela Alêtheia, uma editora que vai arriscando
trazer à mão dos leitores preciosidades que fazem repensar o modo como se vai
fazendo a política, no ocidente.
Une todos estes
livros o reconhecimento de que se está a assistir, de há dois séculos e meio
para cá, a um processo de desconstrução intencional.
Como já
descrevíamos, em artigo anterior, a intenção é deixar o indivíduo sozinho
perante o Estado. Isso mesmo sustentava Robespierre, um dos arautos da
revolução francesa, que acabou vítima da vertigem homicida que ele próprio
protagonizou. Na sua perspetiva, - defendida por muitos, hoje, com outras justificações
-, «a pátria tem o direito de educar os seus filhos; ela não pode confiar este
depósito ao orgulho das famílias, nem aos preconceitos dos particulares,
alimentos permanentes da aristocracia e de um federalismo doméstico que retrai
as almas ao isolá-las.» (Escande, O livro negro da revolução francesa, p.724).
Este é horizonte que legitima que tudo se faça para relativizar o papel da
família, dos laços familiares e que se organize a ‘sociedade’ como mera soma de
indivíduos ou, como diz, acertadamente, Braga da Cruz, reduzir a sociedade a
«uma população sobre um território». Repare-se como é fácil desconstruir e
gerar a dúvida que origina o caos. Imagine-se que o código da estrada,
temporariamente, invertia o significado dos sinais. Aplique-se, por exemplo, à
cor dos semáforos. Imagine que o verde passava a significar que se tinha de
parar e que o vermelho era para avançar.
Quando alguém
tentasse repor a verdade, a confusão já estava gerada, de modo que só após
muito caos e destruição e, eventualmente, após decisão autoritária é que se
conseguiria repor os índices de confiança na sinalética que existia, antes
deste processo de desconstrução.
Algo semelhante
parece pretender-se para a sociedade: desconstruir para que mais facilmente se
assegure lugar para os que pretendem o poder.
Aliás, há algo de
preocupante no modo como se legisla, de há algumas décadas para cá. Não se
legisla com a preocupação de subordinar a lei a valores comuns, marca do
‘cimento’ de que acima falávamos, mas legisla-se porque se tem poder. Pode
configurar-se tal como uma nova ditadura, já não de um só titular, mas de um
Parlamento que se sente sempre legitimado para decidir, desde que corresponda à
sua ideologia.
Quem legitimou, por
exemplo, este parlamento para discutir e, eventualmente, aprovar legislação
sobre a eutanásia? Ou teremos de concluir que o Parlamento, porque pode, está
legitimado para legislar. Pode, de facto, tem poder, mas está legitimado?
Gustavo Zagrebeslky,
que foi presidente do Tribunal Constitucional de Itália, alerta para os perigos
das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até
sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias
céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os
indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade
absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte
dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky
propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como
‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não
legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a
vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.
E este é o problema
de uma certa visão da política e da democracia: aquela que entende que tudo é
cultural, é feito pela vontade humana, sem dever de respeitar algo que lhe seja
anterior, a própria natureza humana.
Veja-se como esta
síntese nos ajuda a perceber quão pantanosas e desconstrucionistas (criamos o
neologismo porque nos referimos a um processo de desconstrução programada…) são
as medidas que vão sendo adotadas: aborto (e a legitimação da violência da mãe
sobre o filho), barrigas de aluguer (e o afastamento entre a geração e o
afeto), mudança de sexo aos 16 anos (e a dissociação entre a natureza e a
identidade, com a implicação acrescida de dissociar o indivíduo dos seus laços
familiares, na medida em que se preconiza que os pais nada tenham a ver com
esta decisão), a eutanásia (e a quebra da solidariedade na morte, que se reduz
a uma mera experiência solitária)…
Quem pode, só porque
pode, está legitimado para legislar? Assim o entenderam todos os ditadores, ao
longo dos tempos! E sempre sob a capa de o fazerem em nome do povo e do poder
que este lhes conferia.
Se ‘poder’
significar que é ‘lícito fazer’, vale a pena perguntar se seria legítimo a
alguém com o poder de ler o pensamento dos outros vir a fazê-lo. Invoco esta
hipótese que é imagem de uma fronteira que ainda não foi possível transpor, mas
que, seguramente, muitos gostariam de superar. Ora, imagine-se que alguém, um
dia, tivesse esse poder. Porque o ‘pode’ fazer, tem legitimidade para o fazer?
Quais os limites que devemos aceitar impor-nos? Ou, em definitivo, o limite
será o do poder? Só não devemos fazer o que não podemos fazer? Ou ainda há
lugar para a ética personalista e humanizadora?
Não será destes
messianismos que falava o Presidente da República, no discurso do dia da
liberdade? Que liberdade pretendemos? A de uma vontade arbitrária,
discricionária, entendida como puro voluntarismo do indivíduo, ou a de uma
vontade que segue a inteligência e respeita a luz da verdade?
É preciso olhar para
diante para saber sobre que chão pousamos os pés. Mas muitos deixaram de erguer
o olhar tão sumidos estão na vertigem do presente.
Se queremos
continuar a viver em sociedade, não podemos deixar que a desconstrução vença.
Porque sairemos derrotados, como os filhos de todas as revoluções.