E, para quem queira dispor-se a vislumbrar os
sinais dos tempos, pode ali descortinar linhas merecedoras de detida reflexão.
Sem grandes delongas, reteremos quatro vetores.
Muitos outros poderiam ser tomados, mas afiguram-se-nos estes como os mais
relevantes.
1. Em
primeiro lugar, importa guardar ideia clara de que o assédio é inaceitável,
enquanto exercício despótico de alguém com poder sobre outrem que se encontra
em situação de fragilidade e dependência. É uma prática atentatória da
dignidade da pessoa humana, enquanto reduz a vítima à condição de objeto,
quando, pela sua natureza, deveria ser sempre considerado como fim em si mesmo.
Disso nos dá certeza segura a afirmação da dignidade da pessoa humana. O
assédio é, sempre, atentado contra essa mesma dignidade, e debilita as demais
relações interpessoais, entre as quais, as laborais, em que, no caso em
análise, tais ocorreram. O trabalho, o emprego, que deveria ser fator de
realização humana, afigura-se, neste contexto, fator de degradação e de
infelicidade.
2. Em
segundo lugar, não podemos deixar de notar, na discussão sobre esta matéria,
alguma hipocrisia e sinais de «estrutura de pecado» (categoria analisada com
detenção por João Paulo II, em 1987, na Encíclica Sollicitudo Rei Socialis). Na verdade, a multiplicação da situações
e o carácter entranhado desta prática entre os poderosos de Hollywood levam a
crer tratar-se de uma espécie de cultura em que a liberdade individual já
parecia sumida, gerando uma acomodação escravizadora. Neste quadro, esta
denúncia com fóruns mundiais revelar-se-á positiva se houver a coragem para
inverter o processo e para corrigir as lógicas. A incapacidade, porém, nesta
era mediática, para fazer as perguntas que importam, em vez de se bastar em
fazer uma caça a alguns indivíduos, faz temer que não se saiba fazer a leitura
devida.
3. Em
terceiro lugar, e seguindo a linha de raciocínio de José Maria Duque, no seu artigo
Legalizar o Harvey Weinstein nacional
(Observador, 02/02/17), importa associar à denúncia do assédio sexual uma outra
denúncia: a de que alguns se sentem muito ofendidos (e bem!) quando a grande
imprensa cria uma onda de repúdio do assédio que transforma as mulheres em
objeto sexual de quem tem poder, mas são, depois, e de forma incoerente,
favoráveis à legalização de práticas, como a da prostituição, em que também
aqui a mulher é transformada em objeto, com a agravante de o ser a coberto da
lei… Uma tal falta de lógica tem, infelizmente, sido frequente na hora de
legislar, em Portugal. Esperemos que a denúncia oportuna desperte as
consciências.
4. Em
quarto lugar, importa sublinhar o significativo sinal que esta onda de repúdio
dá a todo o mundo, ao dizer-nos que nem tudo, nas vivências da sexualidade,
pode aceitar-se ou consentir-se. Na verdade, vivemos num tempo que pareceu
encaminhar-nos para a convicção de que tudo, todas as atividades humanas, eram
suscetíveis de leitura ética e moral, mas parecia gerar-se a ideia de que o
âmbito da sexualidade estava excluído dessas leituras. Defendia-se, inclusive,
que, dado que era matéria da intimidade de cada um, o que fosse feito nesse
âmbito era sempre aceitável moralmente. O cristianismo sempre se insurgiu
contra essa visão. E, curiosamente, a filosofia dos meados do século XX, em
particular a corrente do existencialismo de Gabriel Marcel ou da fenomenologia
de Merleau-Ponty, veio dar razão à abordagem cristã. Mas a sociedade não
parecia ir nesse sentido.
Sejamos
ainda mais claros. Esta onda, que deveria dar razão à visão cristã sobre a
sexualidade, não o vai fazer, seguramente, e, porque estamos tomados por uma
vertigem sem tempo e sem o cuidado de ler o que, de facto, se diz, ficará
sempre e só pelos sons imediatos, como ocorreu com a polémica que envolveu o
Patriarca de Lisboa. Ninguém lê o que se escreve; todos se ficam pelo
seguidismo do que disseram as primeiras páginas de uns quantos jornais ou as
notícias de abertura de noticiários.
Mas, regressemos ao ponto onde nos encontrávamos. O que diz a visão cristã sobre a sexualidade e o que veio a ser confirmado pela filosofia?Em primeiro lugar, a visão cristã sobre a sexualidade sempre sublinhou a convicção de que a realização humana se opera em cada gesto, em cada ato, em cada experiência vivida. Assim também no que concerne às vivências de sexualidade. Nenhuma vivência é indiferente ou inócua. Toda a vivência sexual, afetiva, emocional afeta aquele que a vivencia. A filosofia de Merleau-Ponty chama a isto «o corpo vivido». O que vivo, corporeamente, fica ‘incorporado’ no que sou. Não me é alheio nem indiferente. É por isso que as vivências de sexualidade devem, na perspetiva cristã, ocorrer no contexto de um projeto de vida. De outro modo, pretendem-se vazias e sem sentido, o que é contraditório.Mais, ainda. A esta luz, o que determina a moralidade de um determinado ato não é a vontade e a liberdade individual, mas antes a correspondência à realização da pessoa humana que se envolve nesse mesmo ato. Isto é, mesmo que um ato seja consentido, não deixa de ser imoral se não realizar a pessoa humana e se a objetualizar. É fácil depreender daqui as consequências. Mesmo se o assédio veio a ser consentido (porque se pressentiu que era o que restava; porque se fez de conta que a situação haveria de passar ou por qualquer outro motivo…), mesmo se a prática da prostituição é suportada por quem a pratica, tal não se torna ética e moralmente bom porque foi aceite. Continua a ser inaceitável, eticamente.
A esta luz, o que pode esperar-se e desejar-se é que o mundo que despertou para a sujidade que se escondia em Hollywood admita, por fim, que (como dizia Terêncio, autor latino do século II a.C.) «nada do que é humano nos é estranho». Como pode pensar-se a sexualidade como se ela não fosse humana? Ou querer-se-á que a consideremos como subumana?
Talvez a isto se deva tanta resistência à visão cristã sobre a vida e sobre a sexualidade, tão genialmente descrita na encíclica «Deus Caritas Est», de Bento XVI: à intenção de a reduzir a pura mercadoria, tornando o homem um produto ao dispor de quem tem poder. Uma tal visão encontrará, porém, no cristianismo, um manso mas resistente adversário. Porque cada homem e cada mulher é sinal e imagem de uma Realidade bem maior, de que cada prática e cada gesto é expressão e genuína manifestação.
Mas, regressemos ao ponto onde nos encontrávamos. O que diz a visão cristã sobre a sexualidade e o que veio a ser confirmado pela filosofia?Em primeiro lugar, a visão cristã sobre a sexualidade sempre sublinhou a convicção de que a realização humana se opera em cada gesto, em cada ato, em cada experiência vivida. Assim também no que concerne às vivências de sexualidade. Nenhuma vivência é indiferente ou inócua. Toda a vivência sexual, afetiva, emocional afeta aquele que a vivencia. A filosofia de Merleau-Ponty chama a isto «o corpo vivido». O que vivo, corporeamente, fica ‘incorporado’ no que sou. Não me é alheio nem indiferente. É por isso que as vivências de sexualidade devem, na perspetiva cristã, ocorrer no contexto de um projeto de vida. De outro modo, pretendem-se vazias e sem sentido, o que é contraditório.Mais, ainda. A esta luz, o que determina a moralidade de um determinado ato não é a vontade e a liberdade individual, mas antes a correspondência à realização da pessoa humana que se envolve nesse mesmo ato. Isto é, mesmo que um ato seja consentido, não deixa de ser imoral se não realizar a pessoa humana e se a objetualizar. É fácil depreender daqui as consequências. Mesmo se o assédio veio a ser consentido (porque se pressentiu que era o que restava; porque se fez de conta que a situação haveria de passar ou por qualquer outro motivo…), mesmo se a prática da prostituição é suportada por quem a pratica, tal não se torna ética e moralmente bom porque foi aceite. Continua a ser inaceitável, eticamente.
A esta luz, o que pode esperar-se e desejar-se é que o mundo que despertou para a sujidade que se escondia em Hollywood admita, por fim, que (como dizia Terêncio, autor latino do século II a.C.) «nada do que é humano nos é estranho». Como pode pensar-se a sexualidade como se ela não fosse humana? Ou querer-se-á que a consideremos como subumana?
Talvez a isto se deva tanta resistência à visão cristã sobre a vida e sobre a sexualidade, tão genialmente descrita na encíclica «Deus Caritas Est», de Bento XVI: à intenção de a reduzir a pura mercadoria, tornando o homem um produto ao dispor de quem tem poder. Uma tal visão encontrará, porém, no cristianismo, um manso mas resistente adversário. Porque cada homem e cada mulher é sinal e imagem de uma Realidade bem maior, de que cada prática e cada gesto é expressão e genuína manifestação.