terça-feira, abril 17, 2018

Hollywood e a denúncia de assédio sexual



 Não foi sem alguma surpresa que se assistiu ao surgimento desta onda mundial de denúncia do assédio sexual exercido sobre quem pretendia fazer uma carreira no mundo do cinema, em geral, e em Hollywood, ‘Meca’ da sétima arte, em particular. A surpresa não se deverá ao conteúdo (muitos, em surdina, ou de forma mais ou menos clara já o vinham dizendo), mas sim à origem. Hollywood sempre foi nome associado ao culto do corpo, parecendo promover uma cultura da eterna juventude, dificilmente podendo-se imaginar que dali viria a crítica a uma tal visão da vida. Mas veio e em boa hora.
E, para quem queira dispor-se a vislumbrar os sinais dos tempos, pode ali descortinar linhas merecedoras de detida reflexão.
Sem grandes delongas, reteremos quatro vetores. Muitos outros poderiam ser tomados, mas afiguram-se-nos estes como os mais relevantes.
1.      Em primeiro lugar, importa guardar ideia clara de que o assédio é inaceitável, enquanto exercício despótico de alguém com poder sobre outrem que se encontra em situação de fragilidade e dependência. É uma prática atentatória da dignidade da pessoa humana, enquanto reduz a vítima à condição de objeto, quando, pela sua natureza, deveria ser sempre considerado como fim em si mesmo. Disso nos dá certeza segura a afirmação da dignidade da pessoa humana. O assédio é, sempre, atentado contra essa mesma dignidade, e debilita as demais relações interpessoais, entre as quais, as laborais, em que, no caso em análise, tais ocorreram. O trabalho, o emprego, que deveria ser fator de realização humana, afigura-se, neste contexto, fator de degradação e de infelicidade.
2.      Em segundo lugar, não podemos deixar de notar, na discussão sobre esta matéria, alguma hipocrisia e sinais de «estrutura de pecado» (categoria analisada com detenção por João Paulo II, em 1987, na Encíclica Sollicitudo Rei Socialis). Na verdade, a multiplicação da situações e o carácter entranhado desta prática entre os poderosos de Hollywood levam a crer tratar-se de uma espécie de cultura em que a liberdade individual já parecia sumida, gerando uma acomodação escravizadora. Neste quadro, esta denúncia com fóruns mundiais revelar-se-á positiva se houver a coragem para inverter o processo e para corrigir as lógicas. A incapacidade, porém, nesta era mediática, para fazer as perguntas que importam, em vez de se bastar em fazer uma caça a alguns indivíduos, faz temer que não se saiba fazer a leitura devida.
3.      Em terceiro lugar, e seguindo a linha de raciocínio de José Maria Duque, no seu artigo Legalizar o Harvey Weinstein nacional (Observador, 02/02/17), importa associar à denúncia do assédio sexual uma outra denúncia: a de que alguns se sentem muito ofendidos (e bem!) quando a grande imprensa cria uma onda de repúdio do assédio que transforma as mulheres em objeto sexual de quem tem poder, mas são, depois, e de forma incoerente, favoráveis à legalização de práticas, como a da prostituição, em que também aqui a mulher é transformada em objeto, com a agravante de o ser a coberto da lei… Uma tal falta de lógica tem, infelizmente, sido frequente na hora de legislar, em Portugal. Esperemos que a denúncia oportuna desperte as consciências.
4.      Em quarto lugar, importa sublinhar o significativo sinal que esta onda de repúdio dá a todo o mundo, ao dizer-nos que nem tudo, nas vivências da sexualidade, pode aceitar-se ou consentir-se. Na verdade, vivemos num tempo que pareceu encaminhar-nos para a convicção de que tudo, todas as atividades humanas, eram suscetíveis de leitura ética e moral, mas parecia gerar-se a ideia de que o âmbito da sexualidade estava excluído dessas leituras. Defendia-se, inclusive, que, dado que era matéria da intimidade de cada um, o que fosse feito nesse âmbito era sempre aceitável moralmente. O cristianismo sempre se insurgiu contra essa visão. E, curiosamente, a filosofia dos meados do século XX, em particular a corrente do existencialismo de Gabriel Marcel ou da fenomenologia de Merleau-Ponty, veio dar razão à abordagem cristã. Mas a sociedade não parecia ir nesse sentido.
Sejamos ainda mais claros. Esta onda, que deveria dar razão à visão cristã sobre a sexualidade, não o vai fazer, seguramente, e, porque estamos tomados por uma vertigem sem tempo e sem o cuidado de ler o que, de facto, se diz, ficará sempre e só pelos sons imediatos, como ocorreu com a polémica que envolveu o Patriarca de Lisboa. Ninguém lê o que se escreve; todos se ficam pelo seguidismo do que disseram as primeiras páginas de uns quantos jornais ou as notícias de abertura de noticiários.
Mas, regressemos ao ponto onde nos encontrávamos. O que diz a visão cristã sobre a sexualidade e o que veio a ser confirmado pela filosofia?Em primeiro lugar, a visão cristã sobre a sexualidade sempre sublinhou a convicção de que a realização humana se opera em cada gesto, em cada ato, em cada experiência vivida. Assim também no que concerne às vivências de sexualidade. Nenhuma vivência é indiferente ou inócua. Toda a vivência sexual, afetiva, emocional afeta aquele que a vivencia. A filosofia de Merleau-Ponty chama a isto «o corpo vivido». O que vivo, corporeamente, fica ‘incorporado’ no que sou. Não me é alheio nem indiferente. É por isso que as vivências de sexualidade devem, na perspetiva cristã, ocorrer no contexto de um projeto de vida. De outro modo, pretendem-se vazias e sem sentido, o que é contraditório.Mais, ainda. A esta luz, o que determina a moralidade de um determinado ato não é a vontade e a liberdade individual, mas antes a correspondência à realização da pessoa humana que se envolve nesse mesmo ato. Isto é, mesmo que um ato seja consentido, não deixa de ser imoral se não realizar a pessoa humana e se a objetualizar. É fácil depreender daqui as consequências. Mesmo se o assédio veio a ser consentido (porque se pressentiu que era o que restava; porque se fez de conta que a situação haveria de passar ou por qualquer outro motivo…), mesmo se a prática da prostituição é suportada por quem a pratica, tal não se torna ética e moralmente bom porque foi aceite. Continua a ser inaceitável, eticamente.
A esta luz, o que pode esperar-se e desejar-se é que o mundo que despertou para a sujidade que se escondia em Hollywood admita, por fim, que (como dizia Terêncio, autor latino do século II a.C.) «nada do que é humano nos é estranho». Como pode pensar-se a sexualidade como se ela não fosse humana? Ou querer-se-á que a consideremos como subumana?
Talvez a isto se deva tanta resistência à visão cristã sobre a vida e sobre a sexualidade, tão genialmente descrita na encíclica «Deus Caritas Est», de Bento XVI: à intenção de a reduzir a pura mercadoria, tornando o homem um produto ao dispor de quem tem poder. Uma tal visão encontrará, porém, no cristianismo, um manso mas resistente adversário. Porque cada homem e cada mulher é sinal e imagem de uma Realidade bem maior, de que cada prática e cada gesto é expressão e genuína manifestação.


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