terça-feira, abril 17, 2018

Eutanásia: poderei continuar a dizer que não sei?


A eutanásia está em discussão. Não que o pareça querer a Assembleia da República que dá ideia de pretender mudar a legislação, sem qualquer discussão, como se fosse uma inevitabilidade. À sociedade civil, aos cidadãos mobilizados, às instituições que trabalham com as famílias e a tantos outros se deve que este continue a ser um tema e uma preocupação.
Mas não deixa de inquietar que se esteja a fazer tudo para que pareça que este é um não-assunto.
Aliás, bem sabem os que defendem a sua legalização que importa mudar a lei (e o mais rápido e sem alvoroço possível) porque, depois de tal mudança, a censura e recusa coletiva que recai sobre tal prática deixará de se exercer, reduzindo-se à frieza de números e estatísticas a crueza de tal ato. Por muito que o pretendam negar, a eutanásia é um ato de violência; a pedido daquele sobre quem recai, mas não deixa de ser uma violência. E toda a violência, mesmo quando consentida ou até pedida, alerta e inquieta a nossa humanidade. E é essa inquietação que alguns querem sossegar.
Os factos deverão, porém, dizer mais do que a ideologia que, sob a aparência de compaixão, quer substituir a nossa coletiva solidariedade com quem sofre.
Invoco, para este reflexão, dados coligidos pela Federação Portuguesa pela Vida, junto de fontes oficiais dos poucos países onde esta prática está legalizada.
O primeiro dado a reter é, precisamente, o da escassez de países que, em todo o mundo, legalizaram tal prática. Apenas a Holanda, o Luxemburgo, a Bélgica (também a eutanásia praticada sobre crianças), a Colômbia e o Canadá. Outros países, como a Suíça, a Alemanha e cinco Estados americanos legalizaram o suicídio assistido. Curioso é verificar que muitos cidadãos destes países procuram, hoje em dia, quando atingem determinada idade ou condição de saúde, refúgio nos países vizinhos onde esta prática não está legalizada, pois temem ser vítimas desta, sob a capa de um qualquer procedimento formal. Queremos nós que Portugal integre a lista destes países que a história virá a colocar sob o olhar denunciador e crítico de que cederam à desumanização?
Os números demonstram que a prática deste ato tende a aumentar com a legalização, confirmando o que muitos designam como o efeito de «rampa deslizante» que começa com a afirmação de que só se exercerá em casos excecionais, acabando, com o tempo, por se alargar a muitos motivos não previstos e até recusados, inicialmente.
Na Holanda, entre 2002 (quando foi legalizada) e 2016, o número de casos triplicou, assim como a percentagem de mortes por eutanásia no total de mortes. Em 2016, 3,9% das mortes foram, na Holanda, por motivo de prática de eutanásia: mais de 6000! Na Bélgica, entre 2002 e 2015, a prática da eutanásia aumentou 5 vezes, sendo que a percentagem de mortes por eutanásia no total de mortes aumentou, percentualmente, nove vezes.
Em 2015, 165 pessoas foram, na Holanda, eutanasiadas por motivo de demência ou doença psiquiátrica, havendo registo de casos em que esta prática foi aplicada de modo forçado. Na Bélgica, há registos de mortes por eutanásia em que os familiares não foram sequer informados da sua prática.
No caso da Suíça, em que a eutanásia não está legalizada, mas sim o suicídio assistido, verifica-se que mais de 95% dos casos em que se recorre a esta prática se referem a estrangeiros, levantando-se a questão do dito «turismo de morte». A quem serve tal lei?
Juntem-se a estes dados estatísticos outras informações não menos relevantes.
Numa entrevista concedida à TSF, em 2016, uma enfermeira, de nome Verónica, que se encontrava então a trabalhar na Bélgica, testemunhava que participara, em Bruxelas, num ato de eutanásia exercido sobre uma mulher de cerca de 70 anos que não tinha qualquer doença. A somar a este facto que denuncia como a compaixão é, afinal, pretexto para uma mudança de lei que transfigura a nossa conceção de vida em sociedade, acrescente-se um outro dado não menos relevante: a enfermeira reconhecia que não tivera tempo para decidir sobre se participar ou não em tal ato. Fora chamada e participara, sem saber com clareza aquilo em que ia ver-se envolvida. A insensibilidade coletiva perante uma prática legitimada pela lei conduz à perversão do que deva ser um ato médico e um ato de enfermagem.
Reconhecia a mesma enfermeira que não voltaria a participar, concluindo que a eutanásia «é um método fácil de desistência».
Acresce a estes dados e testemunhos a constatação de que Portugal foi dos primeiros países a opor-se à pena de morte, a defender uma justiça penal capaz de respeitar a dignidade humana que subsiste em cada um, mesmo quando as circunstâncias fazem diminuir a sua visibilidade e perceção, o que está em contracorrente com a visão legitimadora da eutanásia. Esta só poderia admitir-se se entendêssemos que a dignidade humana se perde em determinadas circunstâncias. A visão que sempre tem vencido, em Portugal, não é essa. Legalizar a eutanásia põe em questão tais pressupostos e afigura-se contraditório com a defesa, no artigo 24 da Constituição da República Portuguesa, de que «a vida humana é inviolável».
Fazemos de conta que não sabemos?
Não é descabido recordar, como bem recordava Martin Niemöller que, se deixarmos que levem os outros porque eles nada têm a ver connosco, lá chegará o dia em que nos levarão a nós sem haver quem nos venha defender, porque já todos foram levados, antes.
Poderemos continuar a dizer que não sabemos? Poderemos! Mas, então, acusar-nos-á a consciência por não termos tentado saber. Talvez já demasiado tarde, porém. Estou certo de que ainda estamos a tempo de evitar que a doce sedução da morte se abata sobre todos. Porque não é de romantismos que estamos a falar, mas de como nos vemos e queremos continuar a pensar-nos. Que humanidade queremos continuar a ser?
Já dizia John Donne: «se ouvires ao longe os sinos, não te perguntes por quem os sinos dobram; os sinos dobram por ti». Na morte de alguém morremos também nós. Na morte, por desistência, de um de nós repercute-se a desistência de todos. Porque vivemos, solidariamente e morremos solidariamente. Quando alguém morre, morre mais do que apenas ele. Morrem todos os nós e laços que com ele se enlearam. É esta visão que querem derrotar os que defendem a legalização da eutanásia. Com a legalização da eutanásia, morrer deixa de ser um ato pessoal, solidário; passa a mero ato individual e solitário.
Podemos imaginar que nada temos a ver com a morte de alguém, mas há algo de frio em tal imagem. A frieza de quem nos sussurra ao ouvido que, quando morrermos, ninguém quererá saber de nós, como se a morte só a nós dissesse respeito.
A obra de misericórdia que estabelecia que deveríamos «enterrar os mortos» era mais do que a defesa da salubridade da comunidade: era a recordação da nossa solidária condição na morte. Solidariedade que a legalização da eutanásia se propõe dissolver.
Com o nosso consentimento?...

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