A eutanásia está em discussão. Não que o pareça
querer a Assembleia da República que dá ideia de pretender mudar a legislação,
sem qualquer discussão, como se fosse uma inevitabilidade. À sociedade civil,
aos cidadãos mobilizados, às instituições que trabalham com as famílias e a
tantos outros se deve que este continue a ser um tema e uma preocupação.
Mas não deixa de inquietar que se esteja a fazer
tudo para que pareça que este é um não-assunto.
Aliás, bem sabem os que defendem a sua legalização
que importa mudar a lei (e o mais rápido e sem alvoroço possível) porque,
depois de tal mudança, a censura e recusa coletiva que recai sobre tal prática
deixará de se exercer, reduzindo-se à frieza de números e estatísticas a crueza
de tal ato. Por muito que o pretendam negar, a eutanásia é um ato de violência;
a pedido daquele sobre quem recai, mas não deixa de ser uma violência. E toda a
violência, mesmo quando consentida ou até pedida, alerta e inquieta a nossa
humanidade. E é essa inquietação que alguns querem sossegar.
Os factos deverão, porém, dizer mais do que a
ideologia que, sob a aparência de compaixão, quer substituir a nossa coletiva
solidariedade com quem sofre.
Invoco, para este reflexão, dados coligidos pela
Federação Portuguesa pela Vida, junto de fontes oficiais dos poucos países onde
esta prática está legalizada.
O primeiro dado a reter é, precisamente, o da
escassez de países que, em todo o mundo, legalizaram tal prática. Apenas a
Holanda, o Luxemburgo, a Bélgica (também a eutanásia praticada sobre crianças),
a Colômbia e o Canadá. Outros países, como a Suíça, a Alemanha e cinco Estados
americanos legalizaram o suicídio assistido. Curioso é verificar que muitos
cidadãos destes países procuram, hoje em dia, quando atingem determinada idade
ou condição de saúde, refúgio nos países vizinhos onde esta prática não está
legalizada, pois temem ser vítimas desta, sob a capa de um qualquer
procedimento formal. Queremos nós que Portugal integre a lista destes países
que a história virá a colocar sob o olhar denunciador e crítico de que cederam
à desumanização?
Os números demonstram que a prática deste ato tende
a aumentar com a legalização, confirmando o que muitos designam como o efeito
de «rampa deslizante» que começa com a afirmação de que só se exercerá em casos
excecionais, acabando, com o tempo, por se alargar a muitos motivos não
previstos e até recusados, inicialmente.
Na Holanda, entre 2002 (quando foi legalizada) e
2016, o número de casos triplicou, assim como a percentagem de mortes por
eutanásia no total de mortes. Em 2016, 3,9% das mortes foram, na Holanda, por
motivo de prática de eutanásia: mais de 6000! Na Bélgica, entre 2002 e 2015, a
prática da eutanásia aumentou 5 vezes, sendo que a percentagem de mortes por
eutanásia no total de mortes aumentou, percentualmente, nove vezes.
Em 2015, 165 pessoas foram, na Holanda,
eutanasiadas por motivo de demência ou doença psiquiátrica, havendo registo de
casos em que esta prática foi aplicada de modo forçado. Na Bélgica, há registos
de mortes por eutanásia em que os familiares não foram sequer informados da sua
prática.
No caso da Suíça, em que a eutanásia não está
legalizada, mas sim o suicídio assistido, verifica-se que mais de 95% dos casos
em que se recorre a esta prática se referem a estrangeiros, levantando-se a
questão do dito «turismo de morte». A quem serve tal lei?
Juntem-se a estes dados estatísticos outras
informações não menos relevantes.
Numa entrevista concedida à TSF, em 2016, uma
enfermeira, de nome Verónica, que se encontrava então a trabalhar na Bélgica,
testemunhava que participara, em Bruxelas, num ato de eutanásia exercido sobre
uma mulher de cerca de 70 anos que não tinha qualquer doença. A somar a este
facto que denuncia como a compaixão é, afinal, pretexto para uma mudança de lei
que transfigura a nossa conceção de vida em sociedade, acrescente-se um outro
dado não menos relevante: a enfermeira reconhecia que não tivera tempo para
decidir sobre se participar ou não em tal ato. Fora chamada e participara, sem
saber com clareza aquilo em que ia ver-se envolvida. A insensibilidade coletiva
perante uma prática legitimada pela lei conduz à perversão do que deva ser um
ato médico e um ato de enfermagem.
Reconhecia a mesma enfermeira que não voltaria a
participar, concluindo que a eutanásia «é um método fácil de desistência».
Acresce a estes dados e testemunhos a constatação
de que Portugal foi dos primeiros países a opor-se à pena de morte, a defender
uma justiça penal capaz de respeitar a dignidade humana que subsiste em cada
um, mesmo quando as circunstâncias fazem diminuir a sua visibilidade e
perceção, o que está em contracorrente com a visão legitimadora da eutanásia.
Esta só poderia admitir-se se entendêssemos que a dignidade humana se perde em
determinadas circunstâncias. A visão que sempre tem vencido, em Portugal, não é
essa. Legalizar a eutanásia põe em questão tais pressupostos e afigura-se
contraditório com a defesa, no artigo 24 da Constituição da República
Portuguesa, de que «a vida humana é inviolável».
Fazemos de conta que não sabemos?
Não é descabido recordar, como bem recordava Martin
Niemöller que, se deixarmos que levem os outros porque eles nada têm a ver
connosco, lá chegará o dia em que nos levarão a nós sem haver quem nos venha
defender, porque já todos foram levados, antes.
Poderemos continuar a dizer que não sabemos?
Poderemos! Mas, então, acusar-nos-á a consciência por não termos tentado saber.
Talvez já demasiado tarde, porém. Estou certo de que ainda estamos a tempo de
evitar que a doce sedução da morte se abata sobre todos. Porque não é de
romantismos que estamos a falar, mas de como nos vemos e queremos continuar a
pensar-nos. Que humanidade queremos continuar a ser?
Já dizia John Donne: «se ouvires ao longe os sinos,
não te perguntes por quem os sinos dobram; os sinos dobram por ti». Na morte de
alguém morremos também nós. Na morte, por desistência, de um de nós
repercute-se a desistência de todos. Porque vivemos, solidariamente e morremos
solidariamente. Quando alguém morre, morre mais do que apenas ele. Morrem todos
os nós e laços que com ele se enlearam. É esta visão que querem derrotar os que
defendem a legalização da eutanásia. Com a legalização da eutanásia, morrer
deixa de ser um ato pessoal, solidário; passa a mero ato individual e
solitário.
Podemos imaginar que nada temos a ver com a morte
de alguém, mas há algo de frio em tal imagem. A frieza de quem nos sussurra ao
ouvido que, quando morrermos, ninguém quererá saber de nós, como se a morte só
a nós dissesse respeito.
A obra de misericórdia que estabelecia que
deveríamos «enterrar os mortos» era mais do que a defesa da salubridade da
comunidade: era a recordação da nossa solidária condição na morte.
Solidariedade que a legalização da eutanásia se propõe dissolver.
Com o nosso consentimento?...