O Parlamento recusou, por curta margem, a
legalização da eutanásia. Como muitos já deram a entender, trata-se, apenas, de
um «até já». Não, seguramente, um «até já, camaradas» porque o PCP, numa
demonstração surpreendente de sensatez, afirmou, de uma forma clara, perentória
e sem motivações meramente conjunturais, que «a oposição do PCP à eutanásia
radica na ideia de que o dever indeclinável do Estado é mobilizar os avanços
técnicos e científicos para assegurar o aumento da esperança de vida e não para
a encurtar».
Tal decisão do Parlamento não nos deve, por isso,
sossegar e aquietar. «Nos» refere-se, aqui, a todos os que se reconhecem na
afirmação lapidar da Constituição da República Portuguesa de que «a vida humana
é inviolável».
E não nos deve aquietar por duas ordens de razão:
por razões de fundo e por razões que se prendem com o desrespeito dos que,
agora, viram goradas as suas expectativas de fazer passar uma lei que não
estava sufragada pelo povo.
As razões de fundo prendem-se com uma certa visão
da liberdade, associada a um mítico complexo de inferioridade que vem tomando
conta da nossa classe cultural e política. Tal visão de liberdade é de matriz
individualista, encontrando como um dos seus mais frequentes aforismos aquele
que se reproduz até à saciedade, mas em que raramente se pensa: «que a minha
liberdade acabe onde começa a do outro». Esta ideia, nascida do pensamento de
Herbert Spencer (1820-1903), sustentava que a sociedade existe para os
indivíduos e não o contrário. A ideia central de tal conceção é a de que somos,
primeiramente, seres individuais e só secundariamente seres relacionais. Uma
ideia que consuma a convicção cartesiana de que a primeira coisa de que temos
consciência e certeza é de nós próprios. O que a própria psicologia, hoje,
demonstra ser errado. Aquilo de que, primeiro, temos noção e consciência é dos
outros. Só numa fase posterior é que, da visão e consciência dos outros,
chegamos à consciência de nós. Por isso, não é verdade que as nossas liberdades
se limitem; antes, as liberdades projetam e potenciam outras liberdades. Na
visão de Spencer, se a nossa liberdade acaba onde começa a do outro, então, só
seríamos verdadeiramente livres quando os outros deixassem de existir. E isso,
como facilmente concluiremos, é o fim da vida em sociedade. Como aliás,
preconizava, implicitamente, o autor da frase que tantos insistem em repetir.
Mas é, de facto, a ideia errada de liberdade que
está na causa de decisões como a que se esteve a um passo de dar no nosso Parlamento.
A liberdade entendida como mero exercício e ação da vontade sem limites. Dois
erros se vislumbram nesta ideia de liberdade como ação da vontade sem limites:
o primeiro é o que reduz a liberdade a ato voluntário. E onde estaria a
inteligência num ato livre? Silenciada? Pois bem, a liberdade é, muito mais um
ato da inteligência do que um ato da vontade. Por exemplo, um toxicodependente
procura, voluntariamente, a droga, mas, poderá alguém, sensatamente, considerar
esse um ato livre? É um ato voluntário, mas não livre. Para ser livre tem de contribuir
para a realização do humano que há em nós e não para a sua opressão e
destruição. A esta luz, o suicídio é um ato voluntário, mas não um ato livre. É
decidido com base num desejo ou na ação voluntária, mas não discernido por uma
inteligência sóbria e lúcida.
Para além deste primeiro erro verificável nesta
conceção, há um segundo a registar: toda a ação humana está condicionada; não
é, por isso, sem quaisquer limites. Supor a inexistência de limites e, por
isso, a possibilidade de uma vontade (que já vimos não ser equiparável a ato
livre) sem condicionamentos é um dos ‘pecados originais’ de tal conceção. Todo
o ser humano é, contrariamente, a esta conceção, situado, condicionado,
concreto e marcado pela sua própria história. Mas querem alguns preconizadores
da total disponibilidade da vida pela ‘liberdade’ supor um homem sem
condicionamentos. Um erro fatal e que nos tem conduzido a convicções que só
aprisionam. Como pode ser livre um ato que redunda no fim da própria liberdade?
É um paradoxo e um absurdo.
Esta é, no meu entender, a razão de fundo para não
nos podermos aquietar. Muitos pensam a liberdade assim e tal conceção, profunda
já na cultura de elite deste país, vai continuar a germinar e favorecer o fim
dos laços entre as pessoas que fazem a sociedade.
Há, a somar a esta razão de fundo, uma outra, de
ordem conjuntural. A nossa imprensa de grande tiragem é, na sua grande maioria,
marcada por esta cultura, que poderíamos designar como decadentista. E, por
sê-lo, não irá sossegar enquanto, por cansaço, não vencer os agora vencedores.
Assim aconteceu entre 1998 e 2007. Enquanto não se tomou a decisão que a dita
grande imprensa, manipulada e manipuladora das massas, pretendia, esta não
deixou de veicular meias verdades, informações deturpadas, suposições,
utilizando estes e outros meios, de modo a conduzir à criação de predisposição
para se aceitar aquilo que, genuinamente, não se pretendia.
Nunca o escrevi, mas não resisto, neste contexto, a
contar como li essa fase da história da imprensa portuguesa. Fui, durante
muitos anos, um leitor atento e regular de meios de comunicação a que
reconhecia mérito: o Público e a revista Visão. O Público era, para mim, um
jornal que não dava só as notícias. Situava, explicava, contextualizava.
Recordo-me de, em 11 de setembro de 2001, quando vi o segundo avião colidir com
as Torres Gémeas, ter comentado que tal era ação do Bin Laden. Nenhum dos que
me acompanhavam tinha, até esse dia, ouvido falar de tal homem. Eu sabia ser o
homem mais procurado pelos Estados Unidos porque o Público mo dissera. Porém,
com o aproximar do referendo de 2007, dei-me conta de como este jornal que eu
tinha por digno e honesto servira a causa da legalização o aborto, manipulando
dados e fazendo manchetes com informações que a secção ‘o Público errou’
(pequena e pouco lida) desmentia, no dia seguinte. Senti-me manipulado e
instrumentalizado. Deixei de ler o Público e passei a ser um crítico da forma
como se faz a comunicação social, em Portugal. Esta era, para mim, a imagem de
uma imprensa que, sob a capa da neutralidade, servia interesses que eu
presumia, mas que sabia bem ocultos e disfarçados.
O mesmo se passou com a revista ‘Visão’, que
cheguei a assinar, mas que deixei de assinar e ler, após verificar que adotava
uma atitude frequentemente anticatólica, verificável na nota irónica como
comentou, num momento em que a ONU recusara a clonagem humana, que «a maioria
dos países da Onu são de influência católica», como que afirmando que a esses
‘malvados dos católicos é que se deve não haver progresso’. Confesso que me
senti e ‘quem nãos e sente…’. E reconheci que, como afirma Fernando Pessoa,
tinha a legitimidade e o quase dever de dar seguimento aos seus versos que
dizem ‘que prazer ter um livro para ler e não o fazer’. O poder que eu tinha, enquanto
leitor, era o de deixar de o ser quando me sentia desrespeitado.
Ora, estamos, agora, a iniciar um novo momento como
esse que decorreu entre 1998 e 2007. É, por isso, hora de não deixarmos que o
fim seja o mesmo. É hora de aguçarmos o olhar perante a manipulação de dados a
que vamos passar a assistir. À reiterada informação de que portugueses foram ou
irão pedir a eutanásia a outros países. Ou à repetida ideia de que outros já
têm e Portugal não tem. Ou à manipulação de que os Bispos são contra, mas o
povo e os bem-pensantes católicos são a favor (aliás, o mesmo Público fez uma
manchete, no dia 28 de maio, merecedora de repreensão e profunda crítica, podendo
ser descrita como um ato de malvadez e manipulação gratuita…), com o intuito de
criar a convicção de que há duas Igrejas a falar sobre estas matérias.
Este é o tempo da inteligência e da sabedoria. Este
é o tempo de não nos deixarmos manipular. Este é o tempo de continuarmos a
afirmar que, a não ser que haja, entretanto, queda de regime, a nossa
Constituição continuará, clara e firmemente, a afirmar que «a vida humana é
inviolável».
Este é, também, para os cristãos, o tempo de
reconhecer que a Política é, verdadeiramente, lugar de ação e missão. Para que
não venham outros obrigar a aceitar que a fragilidade e a doença diminuem a
dignidade da vida.