O elogio da amizade
… ao amigo que nasceu para a
eternidade no dia em que nasci para esta vida
Os gregos antigos tinham três termos para designar
o amor: eros, filia e ágape. Entre o amor sensível (eros) e o amor totalmente
gratuito (ágape), que os gregos consideravam quase sobre-humano, o amor de
amizade (filia) era o mais elevado. Teremos de esperar pelo Cristianismo para,
com a entrega de Jesus Cristo, se conferir reconhecimento de que o amor agápico
é possível. E isso demonstraram tantos e tantos cristãos, ao longo dos séculos,
sempre que as suas vidas eram exigidas como dádiva gratuita de amor. Como não
recordar, neste contexto, a desconcertante escolha do Padre Maximiliano Kolbe?
O carácter singular deste modo de vivência do amor, sublime e só possível
graças à fecundidade da esperança, votou ao quase total esquecimento, no
pensamento grego, este nível de amor. Sobrava a amizade.
Sobrava?
Como, porém, considerar menor este modo de vivência
de amor?
Num tempo como o nosso, marcado por relações meramente
funcionais (somos, tantas vezes, reduzidos a funções e números), virtuais ou puramente
idealizadas, a densidade da verdadeira amizade continua a afirmar-se como um
desafio e uma interpelação. E bem sabemos quanto tal significa quando um amigo
se despede de nós e o reencontro só será possível, na eternidade!
Há muito de agápico na amizade.
Ilustram esta convicção duas histórias que recordo,
com frequência.
Ambas me chegaram através da língua castelhana (de
Espanha também podem vir bons ventos!).
A primeira delas conheci-a num dos livros de Carlos
Vallés, um jesuíta missionário em terras indianas. Conta ele que, em plena
guerra, um soldado pede autorização ao seu comandante para se adentrar nas
linhas inimigas, a fim de encontrar um amigo eventualmente detido pelos
adversários. José – este era o nome do soldado que solicitava autorização para
tão heroico ato – não recebe autorização para o fazer, mas desobedece. Parte,
ao encontro do amigo perdido.
Quando regressa, traz nos seus braços o corpo do
amigo já morto e vem, ele próprio, mortalmente ferido. Cambaleando, aproxima-se
do quartel, sendo recebido pelo comandante que, irritado, ainda lhe pergunta se
aquela desobediência valera a pena, pois, afinal, perdera, assim, dois dos
seus.
José, em grande dor, responde: ‘claro que valeu,
pois, quando cheguei junto das tropas inimigas, o meu amigo ainda estava vivo e
pôde dizer-me: «José, eu sabia que virias!».’
A outra história, contada pela voz de Mafalda
Veiga, na sua balada de um soldado, que ela canta, magistralmente, em
castelhano, relata-nos um acontecimento ocorrido numa qualquer guerra civil.
Dos dois lados da barricada estão, como sempre ocorre nas guerras civis,
familiares, amigos, gentes das mesmas terras. O narrador conta-nos que, no meio
da noite, atirou sobre um soldado inimigo. Era, sem que o soubesse, um seu
grande amigo de infância. A canção continua, contando que o seu desejo é,
agora, apenas o de morrer, pois a guerra levou-o a matar um seu muito querido
amigo e deseja, na eternidade, reencontrar o amigo.
Em ambas as histórias a mesma mensagem: a amizade
verdadeira sobrevive à morte e é mais forte do que a guerra, a destruição.
Mais…
A amizade constrói-se de pequenos nadas, de nos
lembrarmos do outro e decidirmo-nos a dizer-lhe que dele nos lembrámos, de
irmos ao seu encontro porque o sabemos em dor e sofrimento. E isto sem que se
procure outro retorno senão o bem do outro. É o puro sentimento de se fazer o
bem sem procurar recompensa, num espírito tão marcadamente inaciano, generoso e
gratuito.
As grandes amizades com que a vida me tem brindado desvendam-me
que o amigo não precisa de que lhe digamos quanto ele significa para nós, mas
que dizer-lho é genuíno e autêntico, porque é dito sem esperar benefício. A
amizade verdadeira percebe que um certo encontro pode ser o derradeiro e que
não há longes nem distâncias, perante a notícia de que a vida pode estar por um
fio e é chegada a hora de dizer-lhe: ‘nunca te esquecerei’. Porque é verdade o
que recorda Gabriel Marcel: «amar alguém é dizer-lhe: tu nunca morrerás!»
Tu nunca morrerás, meu grande amigo!