segunda-feira, setembro 03, 2018

A Hora… da Igreja!


O evangelista João une, sob a categoria da Hora, a morte e a ressurreição de Jesus: o fim assume um dinamismo de início que só os olhos da fé podem vislumbrar. Nenhum outro evangelista confere, tão explicitamente, este caráter libertador à crise da morte. ‘A Hora’ é sinónimo, em João, não tanto do fim, mas de um início.
É este olhar que importa renovar, neste momento, em que a Igreja Católica vive uma Hora de crise. Ler o longo caminho do seu peregrinar sobre a Terra deve permitir revitalizar-se e regressar às nascentes frescas das quais provém. Ler esse longo caminho renovará a consciência de que outras Horas emergiram nesse peregrinar, talvez mais tenebrosas, ainda, mas a que a força do Espírito concedeu novas vozes e profetas que permitiram refazer os passos.
Não poderá, porém, fazer-se essa leitura sem enfrentar, com lucidez, o que motiva a crise agora vivida, começando por fazer a devida justiça às vítimas da ação desconcertante de quantos, em atitude infiel à fé professada, desprotegeram os que tinham sob a sua guarda. Poderá haver maior dor do que a nascida da inocência perdida às mãos dos que a deviam proteger?
É esta lucidez que encontro na carta recentemente escrita (em 20 de agosto de 2018) pelo Papa Francisco ao Povo de Deus sobre os abusos sexuais perpetrados por membros da Igreja.
Leio-a e encontro um passo que me faz recuar à fase preparatória do Sínodo sobre os Jovens que a Diocese de Aveiro realizou em 2004. Numa das reuniões da equipa do secretariado diocesano da pastoral juvenil, em 2003, no centro pastoral, situado então na rua de José Estêvão, Dom António Marcelino afirmou que, se lhe perguntassem como resumiria a sua ação como bispo, a sintetizaria na ideia de que pretendia «acabar com o clericalismo na Igreja». Estas palavras suscitaram, nos que as ouviram, alguma surpresa, pois parecia contrastar com a ação que lhe era reconhecida de um pastor em quem se sentia a atitude de proteção amorosa da Igreja contra todas as investidas de algumas organizações que se designavam como ‘anticlericais’. Mas esta surpresa nascia de um equívoco: ser defensor do fim do clericalismo na Igreja não era sinónimo de se ser contra a Igreja. Pelo contrário!
Bastava, já então, ter lido, com atenção, a Constituição Dogmática do Vaticano II sobre a Igreja Lumen Gentium para perceber que os padres conciliares tinham estruturado este documento de um modo que, só por si, já transmitia uma mensagem inequívoca. Na verdade, logo após um primeiro capítulo dedicado ao Mistério da Igreja, que a define como sacramento de Cristo, o documento fala sobre a Igreja como Povo de Deus. Só depois se fala da constituição hierárquica da Igreja. Na gíria teológica, recorda-se que, em primeiro lugar, é referido o que une (sermos povo de Deus) e só depois os elementos de distinção.
É a isto que se refere o Papa Francisco quando, na carta corajosa recentemente publicada, recorda que “é impossível imaginar uma conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo de Deus. Além disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar, reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos, ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem rostos, sem corpos, enfim, sem vidas. Isto se manifesta claramente num modo anómalo de entender a autoridade na Igreja - tão comum em muitas comunidades onde ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência - como é o clericalismo, aquela «atitude que não só anula a personalidade dos cristãos, mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito Santo pôs no coração do nosso povo». O clericalismo, favorecido tanto pelos próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma rutura no corpo eclesial que beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não ao abuso é dizer energicamente «não» a qualquer forma de clericalismo.” (n. 2)
Tornar esta crise (todas as crises podem ser tempos de purificação, à maneira do que acontece com o ouro no crisol: liberta-se das impurezas para voltar à sua natureza autêntica!) a Hora da Igreja, fazendo-a sobreviver à morte que parece lançar sobre si a sua sombra, terá de passar por aceitar o desafio que nela se esconde: enfrentar o receio da verdade (quantas vocações mal amadurecidas e pouco vividas em comunidade!), não temendo dar o nome com que ela se apresenta; preparar os ministros das comunidades para a vida em comunidade (repensar com coragem, como a que houve, no século XVI, com o Concílio de Trento, o modelo de Seminário e de preparação dos ministros ordenados); preparar os cristãos, em caminhada catequética, não para uma religião de eventos, mas para uma religião vital, feita das perguntas e inquietações profundas da existência para as quais ela é resposta; reconfigurar as comunidades para o acolhimento das múltiplas dinâmicas que acontecem nas pequenas comunidades que fazem a grande comunidade; ler, em atitude humilde, os inúmeros sinais dos tempos, distinguindo o que é efémero do que é permanente e, acima de tudo, anunciar a salvação, porque a humanidade continua a ser humana, a viver inquieta, ainda que, nestes tempos, tantas vezes alienada em inúmeras distrações. A Igreja desta Hora terá de ser a Igreja que acolhe, que é porto de abrigo, que é comunidade, que acolhe e que se regozija com a presença alegre das crianças e dos seus pais, em cada celebração, sem os repudiar nem julgar. A Igreja desta Hora terá de ser a Igreja da Samaritana, do Nicodemos, mas também do jovem rico, terá de ser a Igreja que, à maneira do retrato feito por Rembrandt, no quadro sobre o Filho Pródigo, é, simultaneamente, mãe e pai: capaz de acolher sem ser infiel à verdade, mas sem que, por excesso de fidelidade à verdade, se torne sisuda e desprovida de afeto. A Igreja desta Hora é uma Igreja humilde porque Um só é o Mestre, a cujos pés nos sentamos, humildes e atentos, a ouvir o anúncio da certeza de que Deus não é, apenas, Aquele que tem amor: Ele é Amor! E isso basta!

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