O evangelista João une, sob a categoria da Hora, a
morte e a ressurreição de Jesus: o fim assume um dinamismo de início que só os
olhos da fé podem vislumbrar. Nenhum outro evangelista confere, tão
explicitamente, este caráter libertador à crise da morte. ‘A Hora’ é sinónimo,
em João, não tanto do fim, mas de um início.
É este olhar que importa renovar, neste momento, em
que a Igreja Católica vive uma Hora de crise. Ler o longo caminho do seu
peregrinar sobre a Terra deve permitir revitalizar-se e regressar às nascentes
frescas das quais provém. Ler esse longo caminho renovará a consciência de que
outras Horas emergiram nesse peregrinar, talvez mais tenebrosas, ainda, mas a
que a força do Espírito concedeu novas vozes e profetas que permitiram refazer
os passos.
Não poderá, porém, fazer-se essa leitura sem
enfrentar, com lucidez, o que motiva a crise agora vivida, começando por fazer
a devida justiça às vítimas da ação desconcertante de quantos, em atitude
infiel à fé professada, desprotegeram os que tinham sob a sua guarda. Poderá
haver maior dor do que a nascida da inocência perdida às mãos dos que a deviam
proteger?
É esta lucidez que encontro na carta recentemente
escrita (em 20 de agosto de 2018) pelo Papa Francisco ao Povo de Deus sobre os
abusos sexuais perpetrados por membros da Igreja.
Leio-a e encontro um passo que me faz recuar à fase
preparatória do Sínodo sobre os Jovens que a Diocese de Aveiro realizou em
2004. Numa das reuniões da equipa do secretariado diocesano da pastoral juvenil,
em 2003, no centro pastoral, situado então na rua de José Estêvão, Dom António
Marcelino afirmou que, se lhe perguntassem como resumiria a sua ação como
bispo, a sintetizaria na ideia de que pretendia «acabar com o clericalismo na
Igreja». Estas palavras suscitaram, nos que as ouviram, alguma surpresa, pois
parecia contrastar com a ação que lhe era reconhecida de um pastor em quem se
sentia a atitude de proteção amorosa da Igreja contra todas as investidas de
algumas organizações que se designavam como ‘anticlericais’. Mas esta surpresa
nascia de um equívoco: ser defensor do fim do clericalismo na Igreja não era
sinónimo de se ser contra a Igreja. Pelo contrário!
Bastava, já então, ter lido, com atenção, a
Constituição Dogmática do Vaticano II sobre a Igreja Lumen Gentium para perceber que os padres conciliares tinham estruturado
este documento de um modo que, só por si, já transmitia uma mensagem
inequívoca. Na verdade, logo após um primeiro capítulo dedicado ao Mistério da
Igreja, que a define como sacramento de Cristo, o documento fala sobre a Igreja
como Povo de Deus. Só depois se fala da constituição hierárquica da Igreja. Na
gíria teológica, recorda-se que, em primeiro lugar, é referido o que une
(sermos povo de Deus) e só depois os elementos de distinção.
É a isto que se refere o Papa Francisco quando, na
carta corajosa recentemente publicada, recorda que “é impossível imaginar uma
conversão do agir eclesial sem a participação ativa de todos os membros do Povo
de Deus. Além disso, toda vez que tentamos suplantar, silenciar, ignorar,
reduzir em pequenas elites o povo de Deus, construímos comunidades, planos,
ênfases teológicas, espiritualidades e estruturas sem raízes, sem memória, sem
rostos, sem corpos, enfim, sem vidas. Isto se manifesta claramente num modo anómalo
de entender a autoridade na Igreja - tão comum em muitas comunidades onde
ocorreram as condutas de abuso sexual, de poder e de consciência - como é o
clericalismo, aquela «atitude que não só anula a personalidade dos cristãos,
mas tende também a diminuir e a subestimar a graça batismal que o Espírito
Santo pôs no coração do nosso povo». O clericalismo, favorecido tanto pelos
próprios sacerdotes como pelos leigos, gera uma rutura no corpo eclesial que
beneficia e ajuda a perpetuar muitos dos males que denunciamos hoje. Dizer não
ao abuso é dizer energicamente «não» a qualquer forma de clericalismo.” (n. 2)
Tornar esta crise (todas as crises podem ser tempos
de purificação, à maneira do que acontece com o ouro no crisol: liberta-se das
impurezas para voltar à sua natureza autêntica!) a Hora da Igreja, fazendo-a
sobreviver à morte que parece lançar sobre si a sua sombra, terá de passar por
aceitar o desafio que nela se esconde: enfrentar o receio da verdade (quantas
vocações mal amadurecidas e pouco vividas em comunidade!), não temendo dar o
nome com que ela se apresenta; preparar os ministros das comunidades para a
vida em comunidade (repensar com coragem, como a que houve, no século XVI, com
o Concílio de Trento, o modelo de Seminário e de preparação dos ministros
ordenados); preparar os cristãos, em caminhada catequética, não para uma
religião de eventos, mas para uma religião vital, feita das perguntas e
inquietações profundas da existência para as quais ela é resposta; reconfigurar
as comunidades para o acolhimento das múltiplas dinâmicas que acontecem nas
pequenas comunidades que fazem a grande comunidade; ler, em atitude humilde, os
inúmeros sinais dos tempos, distinguindo o que é efémero do que é permanente e,
acima de tudo, anunciar a salvação, porque a humanidade continua a ser humana,
a viver inquieta, ainda que, nestes tempos, tantas vezes alienada em inúmeras
distrações. A Igreja desta Hora terá de ser a Igreja que acolhe, que é porto de
abrigo, que é comunidade, que acolhe e que se regozija com a presença alegre
das crianças e dos seus pais, em cada celebração, sem os repudiar nem julgar. A
Igreja desta Hora terá de ser a Igreja da Samaritana, do Nicodemos, mas também
do jovem rico, terá de ser a Igreja que, à maneira do retrato feito por
Rembrandt, no quadro sobre o Filho Pródigo, é, simultaneamente, mãe e pai:
capaz de acolher sem ser infiel à verdade, mas sem que, por excesso de
fidelidade à verdade, se torne sisuda e desprovida de afeto. A Igreja desta
Hora é uma Igreja humilde porque Um só é o Mestre, a cujos pés nos sentamos,
humildes e atentos, a ouvir o anúncio da certeza de que Deus não é, apenas,
Aquele que tem amor: Ele é Amor! E isso basta!