Começo este
artigo com uma nota de ordem cultural.
Conta-nos
Homero, na Odisseia, que Ulisses, na viagem de regresso a Ítaca, pediu aos seus
companheiros de viagem que o prendessem ao mastro do seu barco, pois sabia que
teria dificuldade em passar junto às sereias que conseguiam, com os seus
melodiosos cantos, seduzir até os mais resistentes. Aos companheiros mandou que
tapassem os seus ouvidos com cera, para que eles próprios não as ouvissem.
Ulisses mostra, nesta cena, a sabedoria dos homens visionários que, mesmo
diante de discursos melodiosos e inebriantes, pedem para que os prendam ao
mastro do navio a fim de que não sucumbam. Uma sabedoria que, hoje, rareia.
Muitos são os que se deixaram seduzir pelo discurso melodioso de uma ideologia
que nos propomos, neste artigo, denunciar, com a agravante de a cera ter
derretido e já não parecer haver companheiros de viagem.
Ulisses vive,
hoje, provavelmente, o drama de uma outra figura da mitologia clássica,
Cassandra, que tinha o poder de prever o futuro, mas era vítima de uma
maldição: ninguém acreditava nela.
Hoje, os que
ousam pensar por si e denunciar que ‘o rei vai nu’ parecem levar o barco de
Ulisses sem companhia e denunciar uma verdade em que já ninguém parece querer
acreditar.
Feitas estas
notas preambulares, analisemos o assunto chamado a título.
Azul para menino e rosa para menina: o que está em
causa?
Têm sido
frequentes as notícias de gente que se insurge e censura artigos ou livros em
que se referem distinções entre meninos e meninas, considerando-as
ultrapassadas e destituídas de sentido.
O mais recente
caso prendeu-se com um livro em que se recordava o hábito de associar o azul
aos rapazes e o cor-de-rosa às meninas.
Não me
interessa, aqui, entrar no detalhe da discussão sobre a relevância ou não de
associar o azul aos meninos e o cor-de-rosa às meninas, mas à agressividade e à
minúcia com que se está a orquestrar toda uma estratégia que se propõe, não
apenas, nem primeiramente, a igualdade entre os sexos, mas sim a igualdade entre os géneros.
Não temos aqui
espaço para grandes desenvolvimentos, mas importa, no imediato, sublinhar,
primeiramente, que se assiste a um movimento internacional que, como bem
recorda a Carta Pastoral ‘a propósito da ideologia de género’ (14 de novembro
de 2013), tem em curso um processo que vai da modificação da linguagem à defesa
de uma certa ideologia.
Clarifiquemos,
antes de mais, que, em nome da dignidade humana, é legítimo, justo, necessário
e nunca totalmente concretizado, o desejo de assegurar a igualdade entre o
homem e a mulher. Não é disto que falamos, agora. A igualdade entre homem e
mulher não poderá, nunca, porém, consistir em não os distinguir, na sua identidade,
mas em não discriminar naquilo em que ambos desempenham funções iguais. Feita
esta ressalva, regressemos ao que está aqui em causa.
Uma ideologia que começa na linguagem
Como acima se
referia, a estratégia da ideologia de género começa na linguagem. Repare-se que
não se fala de ‘sexos’, mas de ‘géneros’, sendo que, se se consultarem autores
que analisaram esta matéria com detalhe (Aristide Fumagalli, Xavier Lacroix,
etc.), poderemos concluir que a mudança linguística veicula uma intenção: falar
de ‘sexo’ vincula ao aspeto natural e biológico, enquanto ao falar de ‘género’
(tradução pouco ajustada do termo inglês ‘gender’) se está a referir uma
construção mental e cultural. O que se pretende, dizendo-o de modo simples, é
desvincular a identidade (neste caso, sexual) da dimensão herdada que é o
corpo, a natureza fisicamente observável. Parecendo puro jogo de palavras, a
realidade demonstra que não é só isso. Basta ver que são de considerar dois
sexos – masculino e feminino -, enquanto a ideologia de género vem aumentando o
número de géneros identificados, referindo, já, 92 géneros (!). Não será
difícil concluir que, se a lógica vingar, atendendo a que o género é do âmbito
da construção mental, poderemos sempre continuar a aumentar o número destes
géneros até ao limite do número de humanos sobre a Terra.
As
consequências disto são muitas, mas poderemos sublinhar, fundamentalmente,
três:
- o ser humano
fica reduzido à sua condição individualista (sou eu que me faço e nada devo aos
outros ou a algo ou alguém anterior a mim);
- a humanidade
é apenas a sua dimensão de pensamento e não a sua história;
- nada devemos
à família (somos apenas o indivíduo).
«Quem não distingue
confunde!»
Tive um
professor de Filosofia no ISET (Coimbra), José de Oliveira Branco, autor de ‘O brotar da criação’, ‘o Deus que não
temos’, ‘a pergunta de Job’, ‘O humanismo crítico de António Sérgio’, etc. que recordava, frequentemente, que
‘quem não distingue confunde’. Há, na defesa da indistinção entre o sexo
masculino e o sexo feminino, de facto, uma intenção de não distinguir para
gerar a confusão. Uma confusão que ganha a muitos, principalmente aos que,
desde sempre, quiseram promover os ‘ideais’ do anarquismo e que pretenderam
eliminar toda a influência do Cristianismo na matriz ocidental.
Essa
eliminação passa, no nosso entendimento, pelas três dimensões que acima referíamos:
- Reduzir o
ser humano à sua mera individualidade, contra a visão personalista e relacional
com que o cristianismo sempre definiu a condição humana;
- Eliminar da
identidade pessoal a influência do corpo, como se o ser humano fosse, apenas, o
seu pensamento. É muito curioso verificar que esta perspetiva recupera a lógica
do gnosticismo, um dos primeiros adversários com que o cristianismo se depara e
que pretendia, inclusive, logo nos primeiros séculos, defender que Jesus Cristo
não tinha encarnado, pois isso era indigno de Deus. Hoje, estamos de novo aí.
Reduzir o homem ao seu pensamento, à sua alma, e negar que a corporeidade faz
parte da sua identidade é cair num novo platonismo, visão que tem origem no
pensador grego, Platão, e que contribuiu para que alguns movimentos defendessem
que o mundo, a matéria, eram a causa do mal, e não boa criação, como se pode
depreender da leitura do livro do Génesis.
- Tornar
irrelevante a missão e função da família na construção da identidade pessoal.
Neste passo, não resisto a reproduzir aquilo que nos conta Orlando Figes, no
seu livro Sussurros, publicado pela
Alêtheia, que nos descreve o que pretendia a revolução russa (onde se inspiram
muitos destes movimentos que estamos, aqui, a denunciar): ‘Os bolcheviques
estavam convencidos de que, obrigando as pessoas a partilhar o espaço vital,
conseguiriam torná-las mais comunistas no modo de pensar e nos comportamentos.
Os espaços privados e a propriedade privada acabariam por desaparecer, a vida
familiar seria substituída pela fraternidade e organização comunista, e a vida
privada do indivíduo seria submetida à vigilância mútua e ao controlo da
comunidade.’ E porque é que a visão revolucionária atua deste modo? Por causa
da visão que tem sobre a família monogâmica. Uma visão pessimista que serve de
base à ação da revolução. Nada melhor do que pôr a falar os próprios
revolucionários. Diz A. F. Shishkin, autor de ética marxista: «O primeiro
antagonismo de classes que surge na história coincide com o desenvolvimento do
antagonismo entre homem e mulher na monogamia; e a primeira opressão de
classes, a do sexo feminino pelo sexo masculino.»
Uma tal visão
das coisas terá de resultar, naturalmente, na decisão de que é urgente combater
aquela que é considerada a causa de tal opressão: a família.
Muitas
tentativas efetivas foram feitas para concretizar este objetivo, mas, até hoje,
o grau de eficácia tem sido diminuto. A família pareceu resistir, com
segurança. Mas a ideologia de género conseguiu atingir o âmago do problema e
está a revelar-se mais eficaz do que qualquer outra estratégia. Passou por
legitimar que a construção da identidade não passa por cada um se reconhecer
num contexto concreto e situado, em que a família representava o lastro em que
cada um se constrói, mas por cada um ser o criador da sua própria identidade.
Muitos recordam que a ideia que subjaz à ideologia de género se cunhou na
expressão de Simone de Beauvoir que defendia que «ninguém nasce mulher; faz-se
mulher».
A pergunta que
cabe fazer é se o futuro da realidade poderá compaginar-se com este
individualismo extremo. Imagine-se o que seria cada um construir o seu próprio
idioma, ou definir as leis à sua medida, ou estabelecer o que lhe caberá dar à
sociedade, etc.
O que está em
causa é, por isso, muito mais do que a cor de identificação de menino ou menina,
mas se ainda poderemos continuar a pensar-nos de acordo com a nossa
corporeidade. Não temos, apenas, um corpo; somos corpo! Negá-lo significa
construir uma humanidade desencarnada. Mas talvez esse seja o objetivo dos que
estão tão eficazmente a levar por diante a ideologia de género. Enquanto os
restantes se deixam embalar pelas vozes de sereias…