Toda a história da Igreja é uma narrativa de
fidelidade e infidelidade. Já São Paulo, numa carta escrita em finais do ano de
56, dirigida à comunidade de Corinto, abria a sua alma para confessar que «foi,
pois, em grande aflição e com o coração despedaçado, que vos escrevi entre
muitas lágrimas» (2Cor 2, 4).
Não nos podem, porém, servir de atenuante ou
analgésico estas palavras e este reconhecimento, numa hora da história cristã tão
marcada por trevas e escuridão. Seria terrível que assim fosse, dada a
gravidade do que vamos descobrindo sobre práticas e comportamentos que se
permitiram e consentiram, durante tempos prolongados. Necessitamos, como
comunidades cristãs, de refletir, de pedir e fazer tudo para que se cumpra a
justiça, de consolar os que foram doridos e permanecem inconsoláveis na chaga
que lhes atinge a alma e, acima de tudo, de criar as condições para que tal
nunca mais se repita. A Igreja tem de ser porto seguro! A luz para o ser não
tem de o buscar fora da verdade que Jesus Cristo lhe confiou. Mas tem de lhe
permanecer fiel; não procurar nesse tesouro um qualquer pretexto para se
considerar invulnerável: porque a mensagem e o tesouro é singular, mas é de
barro o vaso em que se transmite às gerações futuras e aos que ainda não
participam deles.
É preciso ter-se consciência de que, por detrás de
práticas, há sempre uma teoria, o que torna ainda mais dolorosa a interrogação
sobre como foi possível. Que visão e conceção legitimaram tais práticas? Como
foi possível que não nos inquietasse a palavra do Mestre que anatematizava
aqueles que escandalizam os mais pequenos (Cfr. Lc 17, 1-2)? Como foi possível
que não nos incomodasse mais a dor das vítimas do que o receio de denunciar os
agressores? Como foi possível que as nossas comunidades considerassem
intocáveis e impecáveis alguns só porque investidos de ministérios e missões,
ainda que definitivos, mas participantes na missão maior que a todos toca: a de
anunciar o verdadeiro amor de Deus que respeita a pessoa e a protege, na sua
dignidade? Como foi possível? Como pudemos distrair-nos de sinais que nos
mostravam que alguém pudesse tomar os ministérios na Igreja não como serviço
mas como pretexto para meras realizações individuais? Como pudemos (e podemos
continuar a) alhear-nos perante a tristeza do irmão? Como pudemos deixar que as
nossas comunidades fossem mera geografia de funções e não verdadeira comunhão
de irmãos?
Foi possível, bem certo, porque a Igreja é santa e
pecadora, depositada, na história, pelo Mestre que é o Santo, mas feita de
caminho, a caminho e no pó do caminho.
Mas isso não pode servir de pretexto para nos
sossegar.
Pelo contrário, não pode ser senão motivo acrescido
para que nos mantenhamos atentos. Hoje e sempre. Como deveria ter sido, ontem.
Importa ter, contudo, consciência viva de que a
Igreja é maior do que o seu pecado. Não por mérito seu, mas pela ação gratuita
de Deus que, mesmo em contextos de especial gravidade, concede luzeiros que
permitem manter viva a esperança de que possa haver, pelo menos, um justo a
cujo amor se deva que não seja destruída a mais ignominiosa cidade (Gn 18,
16-33). Importa, nesta hora de trevas, aprender, acolher, pedir perdão e
renovar as razões da fé. Há tanto bem a ser feito! Há tanta esperança a ser
renovada! Há tanto verdadeiro amor a gerar-se! Há tanta gente a reconciliar-se
consigo, com os outros, com o mundo e com Deus, por ação da Igreja! As trevas
não sairão vencedoras. O livro do Apocalipse no-lo assegura: «Depois, na visão,
quando o Cordeiro abriu o primeiro dos sete selos, ouvi um dos quatro seres
viventes que dizia com voz de trovão: «Vem!» E vi que apareceu um cavalo
branco; o cavaleiro levava um arco e foi-lhe dada uma coroa. Depois, partiu vencedor para novas vitórias.» (Ap 6,
1-2)
Os critérios para uma sempre renovada fidelidade ao
melhor da humanidade não precisamos de os procurar fora. Temo-los em grau de
pureza que basta que lhes sejamos fiéis. Se o formos, cada vez com maior
densidade, cumpriremos a missão de respeitar a dignidade de cada um, mas,
infelizmente, chega a parecer que tiveram de nos pressionar de outros
quadrantes para que despertássemos para aquilo que um olhar cristão honesto
deveria ter descoberto e ter-se escandalizado. Que nesta e noutras matérias
nunca percamos a coragem de procurar a verdade, de lhe sermos fiéis, sendo
consequentes com o que a fé nos mostra corresponder ao desígnio de elevar o
humano à estatura de Deus. Porque, afinal, será pelo que fizemos aos irmãos
mais pequeninos que seremos julgados (Cfr. ‘Em verdade vos digo: Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes.’
(Mt 25, 31-46).