sexta-feira, outubro 25, 2019

A vertigem eugenística | ‘Respeitamos-te muito e dizemos que te queremos incluir, mas, se pudéssemos, não terias nascido!’



Esta é a história de uma criança sem rosto, mas com nome: Rodrigo. A ela associa-se o drama da impossibilidade de se preparar o nascimento de uma criança marcada pela deficiência porque, por uma suposta (ainda não demonstrada) negligência médica, a informação sobre a real condição deste Rodrigo foi omitida.
Esperava eu que fosse disto que se estivesse a falar: da preparação para o nascimento de uma criança marcada pela deficiência.
Mas a insistência noutra tecla permitiu-me despertar do sonho em que estava.
O que se discutia não era a gravidade da negligência que tornou impossível preparar, com cuidado, e envolvendo a família e a sociedade, o nascimento de uma criança a quem deveria proporcionar-se o máximo de conforto, aconchego e cuidado para que pudesse nascer com amor e, se a tal estivesse destinada pela natureza, morrer acompanhada.
Mas despertei deste sonho.
O que se discutia era que a informação sobre o estado da criança teria sido importante para determinar o seu fim.
Despertei de um sonho para acordar num pesadelo.
Não é esta a mesma sociedade que (muito bem!) se mobiliza em prol da equiparação dos atletas paraolímpicos aos demais atletas, não é a mesma que discute a inclusão da deficiência nas nossas escolas, que inclui em governos pessoas portadoras de deficiência porque ela não deve ser fator de discriminação?!
Mas, ao ouvido, esta mesma sociedade sussurra, maviosamente: ‘respeitamos-te muito e dizemos que te queremos incluir, mas, se fosse por nós, não terias nascido’!
Assusta esta vertigem eugenística, disponível, de forma subtil e progressiva, para aceitar uma sociedade de perfeitos, de puros. Uma sociedade como a que, entre o início do século XX e a II Guerra Mundial, criou a cultura favorável ao que veio a acontecer, às mãos dos grandes eugenistas da história, cujo nome nos deveria bastar para não repetir tamanhas atrocidades.
O que deveria estar a discutir-se, para além da obrigação da verdade da informação, era se é justa uma lei que prevê que, por se ser malformado, se pode ser impedido de nascer. Esta é uma lei, aliás, que gera conflitos como o que se verificou, na França, a propósito do celebérrimo caso ‘Perruche’, iniciado por ocasião do nascimento, em 1982, de uma criança da família Perruche com malformações não detetadas durante a gravidez, a qual pediu indemnização por ter sido impedida de ser abortada. Após muitas disputas, avanços e recuos, em 2002, foi promulgada a Lei nº 2002-303, de 4 de março de 2002, que sustenta que não existe um direito a não nascer.
Mas é bom sublinhar que o conflito nasceu no momento em que se permitiu que a legislação (a francesa como a portuguesa) desblindasse a proteção da vida humana, permitindo a sua eliminação por motivo de deficiência.
Esta deveria ser uma matéria a retomar, não para, como pretendem alguns, alargar os prazos para além das 24 semanas atualmente legisladas, mas para nos interrogarmos em conjunto sobre se, de facto, pretendemos ser consequentes com o nosso princípio de que a inclusão da pessoa portadora com deficiência é para ser efetiva e não uma hipócrita sensibilidade momentânea. A sermos consequentes, perante a pessoa com deficiência, não podemos considerar que a sua situação é um problema das famílias de que elas fazem parte, mas um dever para todos nós. Quanto se concede do orçamento de Estado para o efetivo apoio destas famílias? Quanto consagramos dos espaços de lazer para o acolhimento destas famílias? Para quando a definição de famílias de cuidado capazes de apoiar, em proximidade, as que integram pessoas portadoras de deficiência? Onde estão as equipas de apoio às famílias a quem é comunicada a notícia de que a sua criança vai (ou pode vir a) ser portadora de uma deficiência, equipas que deveriam ajudar a acolher e a encontrar esperança quando tudo pode parecer nebuloso? Quem garante que não se fica só perante esta notícia, mas, pelo contrário, se é acompanhado e auxiliado a acolher a vida, qualquer que seja a sua condição? São tantas as interrogações que deveríamos colocar-nos para nos pormos em busca das melhores soluções para que a deficiência fosse uma presença efetiva e acolhida na nossa sociedade!
 Na capacidade que uma sociedade tem de integrar os seus mais frágeis é que se evidencia a sua capacidade de humanização e a sua densidade civilizacional.
De outro modo, estaremos prontos a gritar a plenos pulmões que esta é uma sociedade não inclusiva quando, ao ouvido, sussurramos aos ouvidos daqueles que dizemos proteger que a sua vida está a mais.
De que lado queremos estar? É que o lado da deficiência é o lado de todos os humanos, pois, de algum modo, todos somos imperfeitos. Nos portadores de deficiência, a nossa comum imperfeição é, porém, mais visível, e, por isso, mais incómoda. Não nos queremos reconhecer frágeis na sua fragilidade.


quarta-feira, outubro 02, 2019

E se a um cidadão correspondesse mesmo um voto? Um exercício teórico… para tornar a realidade mais justa!


O nosso sistema eleitoral apresenta fragilidades significativas (para ser eufemístico!). De acordo com o sistema atualmente vigente, o voto dos cidadãos não tem valor igual em todos os círculos eleitorais. É, aliás, evidente que o voto de Lisboa, Porto, Braga, Setúbal ou Aveiro é claramente mais relevante do que o voto de Portalegre, Bragança, Beja, Guarda ou Évora.
Mas, supostamente, os cidadãos destes últimos distritos são tão portugueses como os restantes.
Com efeito, o sistema eleitoral português prevê que se calcule, antes de eleições, qual o número de deputados a eleger por círculo, sendo feito esse cálculo com base no número de eleitores recenseados.
Tal situação tem um motivo associado à perspetiva de que cada deputado represente o eleitorado que o elegeu.
Se tal fosse efetivo, poderíamos aceitar esta solução como um mal menor.
Contudo, depois do célebre caso do ‘orçamento do queijo limiano’, em 2001 e 2002, em que um deputado eleito pelo círculo de Viana do Castelo viabilizou o orçamento de um governo minoritário, a troco de investimento na sua região, o que lhe valeu a expulsão do seu partido e acesa discussão, no país, sobre a legitimidade da sua ação, ficou claro que os círculos eleitorais não representavam qualquer valia acrescida para os cidadãos, constituindo-se, pelo contrário, num eventual fator de injustiça (em termos de sistema eleitoral) que deveria merecer acesa discussão por parte dos portugueses. Senão, vejamos.
O sistema eleitoral em vigor permite, entre outras coisas, maiorias absolutas sem que se tenha uma maioria absoluta de votos. Basta que se tenha a sorte (ou desenvolvido estratégia matemática para tal) de se ser mais votado nos círculos onde mais deputados são eleitos.
Por absurdo, pode ocorrer que tenha maioria no parlamento um partido que seja, por exemplo, o menos votado, ainda que a probabilidade seja baixa.
Tomemos um exemplo.
Aveiro, que apresenta, segundo mapa publicado em 1 de março de 2019, 645.212 eleitores, constitui-se como um círculo eleitoral onde serão escolhidos 16 deputados. Bragança, que tem 142603 eleitores, elege 3 deputados.
Imaginemos, por absurdo, que o dia de eleições se apresenta, por terras de Aveiro, tentadoramente quente e apetecível para uma visita à praia. Imagine-se, ainda, que tal favorece uma abstenção que ronde os 80%. Vão votar, em Aveiro, nesse dia, 129 mil eleitores. Bragança, por oposição, não bafejada pelo mar, tem chuva todo o dia e consegue ter uma participação quase absoluta. Os votantes rondam os 130 mil.
Bragança e os seus 130 mil elegem 3 deputados, enquanto Aveiro, com os seus 129 mil, elege 16 deputados.
Imagine-se este cenário aplicado na relação entre os círculos mais populosos - Lisboa, Porto, Braga, Setúbal e Aveiro que elegem, juntos, 141 deputados - em contraste com Portalegre, Bragança, Beja Évora e Guarda, que elegem, em conjunto, 14 deputados.
Imagine-se que a abstenção é avassaladora, nos primeiros cinco, e quase nula, nos últimos. A relação entre estes fatores poderá criar um cenário em que partidos menos votados, no total, mas cujos votos recaem sobre os cinco primeiros círculos, conseguem uma maioria parlamentar que, afinal, não corresponde à maioria dos votos dos participantes nas eleições.
Face a esta constatação, depreende-se, antes de mais, que importa ter coragem para enfrentar esta questão que é de justiça e procurar soluções. A justiça e a verdade deveriam prevalecer sobre o tacticismo e os interesses instalados. A não ser assim, quando os cidadãos se convencerem de que o sistema é injusto, será o próprio regime a ser questionado. Importa, por isso, ser prudente e previdente, a fim de evitar os danos mais gravosos por não se ter tido coragem para ir procurando soluções adequadas.
Uma das primeiras alterações a ponderar era de pequena monta e mais não é do que uma alteração de procedimento. Em vez de se calcular o número de deputados a eleger com base no número de eleitores (potenciais) deveria calcular-se aquele número com base na participação real dos votantes. Só no fim das eleições e depois de apurar a abstenção e o número total de votantes é que se apuraria qual o número correspondente a cada círculo, com base no número efetivo de votantes em cada um deles.
Tal teria uma consequência efetiva e muito provável: a diminuição da abstenção, pois os cidadãos perceberiam, no imediato, que a sua não participação afetaria a sua representação nacional. Quantos menos votantes num círculo, menor o número de deputados na assembleia da República.
Outra consequência seria a maior valorização, em tempo de campanha, dos círculos com menos votantes, pois importaria mobilizar todos os eleitores pois, até ao momento das eleições, não passariam de potenciais votantes. Seria necessária a sua mobilização para que se tornassem ‘votantes’ e não apenas potenciais ‘votantes’, como agora acontece.
Uma terceira consequência verificar-se-ia nas escolhas dos membros das listas que deixariam de corresponder a uma estratégia de escolha dos círculos mais expressivos para redundar num reconhecimento da igual e justa condição de todos os círculos.
Tudo isto em resultado de uma pequena alteração que ainda não chega à de fundo que é haver um sistema eleitoral em que não há desperdício de votos. Tal é praticamente impossível num sistema em que a eleição ocorre por círculos eleitorais. Só através de listas nacionais seria possível superar este problema.
E, nesse caso, seria de ponderar uma solução. A lista seria nacional, mas articulada com os círculos eleitorais em que, como resultado da participação eleitoral, se tornaria obrigatório que determinado partido repercutisse no número de deputados a compor a sua bancada uma percentagem correspondente às votações, por cada círculo. Este modelo juntaria o melhor de dois mundos: a certeza de que não se perderiam votos (todos eram contados e distribuídos, a nível nacional), mas repercutindo-se, de seguida, a votação obtida em cada círculo, por partido, na sua representação, em termos de bancada. Para exemplificar: se um partido obtivesse votação nacional que permitisse, por exemplo, eleger 5 deputados, eles teriam de provir dos círculos onde a sua votação correspondesse, em termos relativos, à sua maior representatividade.
Soma-se, a esta preocupação com a justiça eleitoral e efetiva repercussão do desejo expresso pelos votantes, uma outra que venho defendendo, há uns 10 anos (veja-se este artigo publicado em fevereiro de 2011: http://teologicus.blogspot.com/2011/02/tres-sugestoes-para-democratizar.html): a relevância do voto expresso pelos que participam nas eleições, manifestando-se não representados por qualquer dos partidos submetidos a sufrágio e que anulam ou deixam o seu voto em branco. Defendo, desde então, que as bancadas devem ficar vazias, até ao limite constitucional dos 180 deputados, limite abaixo do qual se imporia a obrigação de realização de novas eleições.
É também matéria a discutir, pois deverá considerar-se muito distinta a opção de quem se abstém (pode ter razões ou total falta delas!) em relação à de quem participa mas anula ou deixa em branco o seu voto. É uma manifestação de vontade e opinião que deveria repercutir-se no hemiciclo.
Este pode não ser mais do que um exercício teórico, mas que parte da real situação em que se toma a decisão sobre quem nos deverá governar, pelo que aos cidadãos também caberá ter uma palavra em tão decisiva matéria.

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

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