(Amigo/a leitor/a, convido-o/a a olhar, com atenção, a imagem que ilustra este texto
[Pode encontrá-la aqui: https://angelusnews.com/wp-content/uploads/2019/09/3dhgsq1dr_Pope_Feature_1_.jpg].
Observe-a, com cuidado, e procure interpretá-la. Sugiro que, só depois de o fazer, inicie a leitura…)
O mundo tem grande dívida para com o cristianismo. Dívida que vai muito para além de todo o impacto visível em obras arquitetónicas, literárias, pictóricas ou outras igualmente observáveis e mensuráveis. Há dívidas que não se podem pesar, calcular e medir. Escapam e são de uma enorme densidade e profundidade. Mas, entretanto, demorará até que reconheça quanto lhe deve, de facto.
Antes de me adentrar no que pretendo aqui analisar, deixo uma sugestão de leitura. ‘O que a civilização ocidental deve à Igreja Católica’, de Thomas E. Woods, Jr (Ed. Alêtheia), é um livro de justiça. Não é um livro de direito. Nem por sombras. É um livro de justiça, isto é, trata-se de uma obra que faz justiça. Costumo sugerir, com ironia, que deveria ser colocado, nas livrarias, na secção de finanças, dado que contribui para se perceber como saldar parte da dívida (enorme!) que o mundo tem para com o Cristianismo.
Feita esta sugestão, regressemos à linha que vínhamos seguindo.
‘Pessoa’:
uma das dimensões da dívida
Há, de facto, nessa dívida, dimensões que escapam à mensurabilidade. Entre elas, está, por exemplo, o conceito de pessoa. ‘Pessoa’ é um conceito que nasce no contexto das discussões sobre a natureza trinitária de Deus. Não servindo a ideia de ‘indivíduo’, a teologia trinitária forjou o conceito que permitisse evidenciar, por um lado, a dimensão ‘individualizante’, mas sem que tal significasse que Deus era, então, três ‘indivíduos’. Era preciso um conceito que salvaguardasse a identidade sem a isolar e sem a conceber fechada em si. O conceito de ‘Pessoa’ foi o que, resultando de prolongada reflexão, permitiu dizer que Deus é diverso, em si, sem que tal signifique que cada ‘parte’ da diversidade possa pensar-se sem ser em relação com a unidade e a relação. Pessoa diz, precisamente, a identidade que se define na relação e no encontro diante do outro. Deus é Pai no preciso ‘momento’ em que gera o Filho e, no preciso ‘momento’, também, em que a ‘geração, no amor, se possibilita. Desta forma muito plástica descrevemos a densidade que nos possibilita o conceito de ‘Pessoa’.
Da visão
trágica à confiança no perdão
Mas ainda não chegámos ao núcleo do que pretendemos, nesta reflexão.
Há, sem dúvida, a dívida da arte, da cultura, dos conceitos, mas, antes, durante e depois de todas estas, há a dívida sobre o modo de olhar a existência.
Para percebermos esta dimensão da ‘divida’, importa recordar como era ‘trágica’ a visão que antecedeu a emergência da visão cristã.
Recordemos que a expressão pública e reconhecida do cristianismo só começa a operar-se, de forma definitiva, a partir do ano de 313, ano do édito de Milão que, pela ação do Imperador Constantino, possibilita que o império romano tolere esta nova religião.
Até aí, a visão vigente era a que conformara o ocidente, por influência da visão grega, chegada pela mão dos romanos.
A visão
trágica dos gregos
E o que nos evidenciava essa visão?
A vida era, na visão grega, tragédia, fundamentalmente, tragédia. Tragédia que se tornava visível na convicção de que, acima dos próprios deuses estava a ‘moira’, o destino (o ‘fatum’ que deu, em português, a ideia de ‘fado’ – destino; ideia presente na palavra ‘fatalidade’). Os próprios deuses estavam submetidos à força de um destino impessoal, cruel, sem piedade…
Tal conceção é particularmente expressiva e densa nas célebres tragédias dos grandes autores clássicos. Entre elas, podíamos recordar a história do Rei Édipo, mas pretendemos incidir o nosso olhar na história de Antígona, uma história que bem conhecem os alunos de Educação Moral e Religiosa Católica, a quem ela é apresentada, na unidade de ‘Política, ética e religião’: um serviço inestimável que a Igreja Católica presta à educação, em Portugal.
O que nos diz a história de Antígona?
O rei Creonte proíbe esta filha do incestuoso casamento de Édipo com Jocasta de enterrar um dos dois irmãos (Etéocles e Polinices) que se tinham combatido um ao outro até à morte. A Etéocles, o rei Creonte oferece honras fúnebres majestosas, mas decide que Polinices seja deixa insepulto. Antígona opõe-se a esta decisão de Creonte, que era seu tio, e enterra, obedecendo ao que lhe impunha a sua consciência e o seu dever religioso. Após fazê-lo, suicida-se, sendo que nos diz a trama trágica que, entretanto, Creonte tinha desistido da decisão e mandara um mensageiro comunicar-lho. Tarde demais…
Assim é, em tantas das tragédias gregas. O destino fora mais forte do que a compaixão.
Esta não é a visão cristã sobre a existência.
O perdão e a
graça é que redimem
No centro da visão cristã, está o perdão que encontro plasticamente representado numa obra que convido o leitor a observar com atenção.
Refiro-me a um capitel de uma coluna da Basílica de Santa Madalena, em Vezelay, uma igreja do início do século XII.
Um olhar atento deste capitel permite-nos ver, do lado esquerdo, um enforcado. (Aparentemente, de novo, a dimensão trágica da existência…) Porém, o capitel reserva-nos uma surpresa, do lado direito.
Na verdade, facilmente reconhecemos, no enforcado, o traidor Judas, aquele que entregou Jesus Cristo.
Mas o lado direito evidencia-nos a dimensão redentora com que o Cristianismo olha a existência. Ali, o enforcado é levado aos ombros… de Jesus Cristo. No levar aos ombros aquele que o entregou à morte, mostra a densidade do amor de Jesus Cristo. Recordo-me de, na década de noventa, ouvir da boca do sr. D. Manuel de Almeida Trindade, meu bispo e padre conciliar, o espanto ao constatar que, ao longo da história, nunca a Igreja ter ousado dizer que alguém, em concreto, estava em Inferno ou tinha sido abandonado por Deus. Dizia-me o sr D. Manuel: ‘Repara, Luís, que a Igreja sempre nos apontou o exemplo de Santos, mas nunca nos disse que este ou aquele em concreto não podia participar da felicidade eterna de Deus.’
O perdão é, com efeito, a resposta à dimensão aparentemente trágica da existência, pois, a Fonte donde tudo provém é Amor. Não apenas ‘tem’ amor; É amor. E se é amor, então, o limite, a fragilidade, a vulnerabilidade, são assumidos e redimidos, para sempre, dando-nos a certeza de que a Vida é mais forte do que a Morte. Como pode concluir-se da leitura de uma recente obra sobre ‘o sofrimento de Deus’, da autoria do Pe. Rui Mendes de Sousa, a resposta ao sofrimento do mundo está na certeza de que a ‘Paixão de Cristo é efetiva compaixão de Deus’.
E como poderiam recusar perdoar os que sabem que o mundo nasce do amor que perdoa?
(Artigo publicado na revista 'Mundo Rural)