sábado, maio 08, 2021

Direitos humanos – duas faces de uma crise de humanidade

 

Vivemos uma dupla crise de direitos humanos: a que se manifesta na sua violação e a que se expressa na justificação e legitimação dessa violação…

A estratégia em andamento já não se basta em atentar contra os direitos humanos. Tudo faz para o justificar, assegurando-se de se munir dos melhores argumentos com aparência de válidos.

Para nos apercebermos disso, exige-se que façamos um breve percurso de reflexão, indo à raiz do que deve entender-se por ‘direitos humanos’.

 

‘Poder fazer’ não é sinónimo de ‘ser legítimo fazer’

A defesa e proclamação dos direitos humanos nasce de uma tragédia humana.

Quando, em 10 de dezembro de 1948, se adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o mundo ainda mal acordara de um pesadelo em que, progressivamente, se fora enredando até à tragédia final, monstruosamente orquestrada ao longo de uma década (desde 1933) até à ‘solução final’, como defendiam os preconizadores de um regime que ‘banalizou o mal’ (expressão cunhada pela judia Hannah Arendt).

Face ao que se consumara, na II Guerra Mundial, em nome de um poder que se concebia como fim em si mesmo, foi preciso reconhecer, sem margem para dúvidas nem subterfúgios, que a dignidade humana se impõe por si própria, sendo mesmo anterior ao seu reconhecimento. Esta é a base dos direitos humanos: a dignidade humana de que todos participamos é anterior mesmo ao reconhecimento que dela façamos; ela impõe-se-nos. Não é porque eu reconheço alguém que ele passa a ter dignidade humana, mas antes é porque o outro é humano que me cabe reconhecê-lo. E é também por isto que a declaração universal dos direitos humanos estabelece, no seu preâmbulo, que a “dignidade [é] inerente a todos os membros da família humana e [que o reconhecimento] dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Ora, este ponto de partida significa que a dignidade humana não é algo oscilante, variável, sujeito a conjunturas. É a condição pela qual somos merecedores de todo o respeito e de todo o cuidado, em particular, quando mais frágeis, quando somos mais dependentes do apoio dos outros.

 

Atentados contra direitos humanos

A esta luz, cabe reconhecer que há atentado contra os direitos inerentes à nossa condição de humanos sempre que essa dignidade não é considerada como portadora de uma mensagem de que não podemos ser instrumentalizáveis, transformáveis em objetos. Como, aliás, souberam reconhecer os homens do século XVIII, a condição humana faz de cada um de nós um fim em si mesmo e nunca um meio. Atenta, por isso, contra a dignidade humana, toda a manipulação, sujeição a poderes que se servem do humano para fins que lhe são alheios, o desrespeito pelas condições que servem essa mesma dignidade (habitação, emprego, educação, etc.), matéria de denúncia tão frequente por parte do Papa Francisco que dedica o mês de abril à reflexão sobre esta matéria.

Estamos, neste contexto, a referir-nos aos atos pelos quais se perpetram os atentados e violações contra os direitos humanos.

Mas, dizíamos acima, há uma dupla crise de direitos humanos. Reparemos na outra face dessa crise.

 

A outra face da crise: a legitimação dos atentados contra os direitos humanos

Assistimos a uma dinâmica que já não se basta em violar os direitos humanos. Ela vem orquestrando um discurso que procura legitimar essa mesma violação. Para percebermos esse discurso, regressemos ao que nos diz o preâmbulo da declaração universal dos direitos humanos. Este afirma que os direitos humanos são ‘iguais e inalienáveis’. Repare-se na força da palavra ‘inalienável’. Ela afirma que eu próprio não posso alienar, deixar de proteger esse bem designado como ‘direito humano’ de que eu participo, pela humanidade que há em mim. É isso que significa ‘inalienáveis’: que não posso alienar, dispensar, entregar a outro. Afirmar que os direitos humanos são inalienáveis é sublinhar que os direitos humanos se constituem para os outros e para nós próprios como ‘deveres’. O raciocínio é simples e claro: não sou eu que me ofereço a humanidade; antes, eu sou participante da humanidade que me é comum e aos demais humanos. É, aliás, nesta lógica, que se compreende que atentar contra uma pessoa, contra um povo, contra uma comunidade religiosa, etc., é atentar contra toda a humanidade que em cada um se faz presente.

 

A dignidade humana é o fundamento da liberdade e não o contrário

Face a isto, percebe-se quão ilegítimo é o discurso dos que pretendem sustentar que respeitar os direitos humanos seja permitir o exercício absoluto e indeterminado das vontades individuais (designando isso como ‘liberdade’, quando, de facto, é arbítrio, mas não liberdade. A liberdade é escolha com respeito pela verdade.). Digo de modo mais simples: pretender legitimar práticas que matam ou ofendem, em nome do direito a uma autonomia sem limites, não só não é sustentável à luz da declaração universal dos direitos humanos como, até, a ofende e está em sua oposição. Veja-se que a declaração afirma que é o reconhecimento dessa dignidade que é fundamento da liberdade. Não o contrário, que é o que pretendem os defensores da legalização de práticas como a da eutanásia ou do aborto, sustentando que estas práticas possam ser legítimas à luz dos direitos humanos, sob pretexto de que ‘cada um terá direito a fazer o que bem entenda’. Não é essa, de modo algum, a conclusão que poderá retirar-se de uma leitura verdadeira dessa mesma declaração. Pelo contrário. Tais práticas ofendem a dignidade humana, por não compreenderem o humano que há em cada um como fim em si mesmo, como merecedor de todo o cuidado e proteção. Não foi por acaso, aliás, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deliberou, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.

Verifica-se, porém, que o discurso difundido pela dita ‘grande imprensa’ é o de que ‘direito humano’ é fazer o que bem se entende e a nada ser impedido. Mas isso não é reconhecer que o direito humano é inalienável, nem que a dignidade seja o fundamento da liberdade, mas, invertendo isto, é pretender que seja a liberdade o fundamento da dignidade. Esse é o contorcionismo a que temos vindo a assistir e que tem levado para uma vertigem de morte as nossas sociedades de conforto e bem-estar. Convém lembrar que a II Guerra Mundial e o regime nazi não nasceram do dia para a noite. Foram preparados por toda uma vertigem legitimadora bem anterior a 1933, de teor eugenístico. Muito antes de os nazis fazerem a hedionda seleção dos que podiam e não podiam continuar vivos, já o mundo aceitara leis eugenísticas que legitimavam a escolha dos que podiam ou não podiam casar, dos que podiam ou não podiam ter filhos. Como tenho recordado em diversos textos sobre estas matérias, e recuperando o que refere “Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma’, entre 1910 e 1935, mais de 30 Estados norte-americanos tinham leis que impunham a esterilização de pessoas (chegando a fazê-lo em ‘mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais’ – p. 300). O mesmo Ridley recorda que assim aconteceu na Suécia, Canadá, Noruega, Finlândia, Grã-Bretanha, etc. Um retrato perturbador que pode confirmar-se no livro de André Pichot, no seu livro ‘Eugenismo’. Recorda este investigador do CNRC, Estrasburgo, que ‘na década de 30, eram esterilizadas, nos Estados Unidos, mais de 100 pessoas por mês’, tendo a Dinamarca esterilizado mais de 3000 pessoas e a Suécia mais de 15 mil, entre 1935 e 1945 (p. 51).”

Ainda vamos a tempo de travar a vertigem que parece ir tomando os nossos tempos. Respeitar os direitos humanos não é deixarmo-nos entregues à vontade puramente arbitrária sem respeito por si nem pelo outro: isso é, antes, um bom princípio para a indignidade. Respeitar os direitos humanos é assegurar que todos (qualquer que seja a sua idade, condição, força ou circunstância) são fins em si mesmos e portadores de uma dignidade que os torna merecedores de cuidado e proteção.

 

Luís Manuel Pereira da Silva

Professor – teólogo e bioeticista

Sócio-fundador da ADAV-Aveiro

Membro da Direção Nacional da Federação Portuguesa pela Vida


(Artigo publicado em https://www.paroquiadefafe.com/vozes-plurais)

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