Inicio, com esta reflexão, uma rubrica dedicada ao estabelecimento de pontes entre a fé cristã e a racionalidade contemporânea. Decidi intitulá-la ‘intelligo quia credo’, integrando a longuíssima tradição teológica que se dispõe a compreender para melhor (e mais solidamente) acreditar (intelligo ut credam – compreendo para acreditar) e crer para, desse modo, melhor poder compreender (credo ut intelligam – creio para que possa compreender). A minha formulação recusa a, erroneamente atribuída a Tertuliano, ideia de que ‘credo quia absurdum’ (creio porque é absurdo). Tertuliano não pretendeu afirmar tal ideia que contradiz o seu enorme esforço intelectual de tornar credível, para os seus tão desafiantes tempos (ele que viveu entre finais do século II e inícios do III), mas a sua convicção de que a ressurreição era credível pelo seu carácter surpreendente (como se fosse algo impossível!), gerou a ideia de que defendia que a fé excluía a razão e era tanto mais ‘credível’ quanto mais absurda. Longe disso!
O pressuposto
que seguirei, ao longo das minhas reflexões, será, exatamente, o de que fé e
razão são, parafraseando João Paulo II em Fides
et Ratio, como que duas asas que necessitam uma da outra para que possa
assim voar o conhecimento humano.
Afirmo que
‘intelligo quia credo’: compreendo porque acredito. Não afirmo, aqui, um
qualquer fideísmo ou uma apologética gratuita, mas antes prenuncio a
constatação que venho fazendo de que, sem o horizonte que lhe abre a fé, o ser
humano e o que é ser humano ficam em grave crise.
Não apenas uma
crise constatável, sociológica e eticamente (talvez a revisão da história
pudesse ser suficiente para sustentar a credibilidade dessa convicção), mas uma
verificação ainda mais radical e fundamental.
O ateu que, por causa da ciência, negou e, depois,
reconheceu a existência de Deus
Tomemos, para enunciar
a tal crise em que ficamos sem a fé, o que nos mostrou, já em pleno século XXI,
o pensamento de Antony Flew, autor que gosto de revisitar.
Fora, durante
cerca de cinquenta anos, um dos grandes defensores do que poderíamos designar
como ‘ateísmo epistemológico’. Entendo por ‘ateísmo epistemológico’ aquela
posição que defende a inexistência de Deus como resultado da verificação de que
o saber teológico foi suplantado pelo saber científico, ficando reduzida a
cinzas a sua pretensão de verdade.
Essa fora a
convicção de Antony Flew, até que, em 2004, a sua honestidade intelectual o
levou a reconhecer que errara. Flew constatava, nessa altura, que o simples
esforço de fazer ciência supunha, só por si, a possibilidade da existência de
Deus. De outro modo, dizia, seria impossível fazer-se ciência. E explicou a sua
conclusão.
Quem faz
ciência parte de um princípio inabalável (axioma): há inteligibilidade no
universo. Se não supuser a existência de inteligibilidade, ninguém fará
ciência. Tudo será absurdo e impossível de estudar. Ora, tal pressuposto obriga
a perguntar sobre a razão que justificará a existência de inteligibilidade no
universo. Flew enuncia duas possibilidades: ou a inteligibilidade é fruto de
acasos que se sobrepõem a acasos, numa cadeia quase infinita de casualidades
(biliões de biliões de acasos que se concatenam de forma a gerar a
inteligibilidade que é a condição para se fazer ciência); ou, então, diz Flew,
há que supor que o universo corresponde à inteligibilidade que nele depositou,
como condição, uma Origem inteligente e infinita que lhe concedeu, desde o
primeiro momento, essa potencialidade de ser inteligível.
Face a estas duas possibilidades, Flew recorda um critério para se
optar pela melhor. O critério recolhe-o da própria ciência que define, à luz do
princípio designado como ‘navalha d’Ockam’, que a explicação mais simples para
um fenómeno é a mais válida. Ora, com este critério, Flew pergunta qual a
possibilidade mais simples e mais credível e conclui que supor a existência de
uma Origem Inteligente como condição para compreender a inteligibilidade do
universo é a hipótese mais plausível.
Com a mesma ciência com que rejeitara a possibilidade da existência de
Deus, Flew concluiria, a partir de 2004 (em português, pode ler-se com muito
interesse, o seu Deus não existe, editado
pela Alêtheia), que essa existência
é, afinal, a própria condição de possibilidade da mesma ciência. (Talvez a
abrangência do mar o torne tão ‘opaco’ e improvável para o peixe, poderíamos
nós concluir…)
Também a história do
pensamento evidencia a crise do Humano sem Deus
No mesmo sentido que nos leva a concluir o raciocínio de A. Flew,
também a história recente da filosofia parece demonstrar-nos a intrínseca
relação entre a existência de Deus e a condição humana. Repare-se que, em
finais do século XIX, Nietzsche afirmara, no seu livro A gaia ciência, que Deus morrera. (E não se referia à morte de
Cristo na Cruz, mas à morte de Deus como Absoluto.) Afirmara-o em nome da
liberdade humana; em nome do Homem. Mas, curiosamente, não foi preciso esperar
muito mais de meio século para que a própria filosofia, pela pena de Michel de
Foucault, viesse afirmar que o homem morrera. Deus morre, em Nietzsche; o Homem
morre, em Foucault.
Estas constatações não pretendem ser, como atrás afirmávamos, apologia
gratuita, mas interpelação.
Se não aponta para um horizonte transcendente a vida que levamos do
berço até à tumba, quem é o ser que leva os andrajos com que se faz essa vida?
Mas será, então, - dirão, alguns -, a fé apenas o fruto de uma necessidade de
dar sentido à vida que ficará absurda sem a fé? Aceitamos o repto a que
tentaremos responder em outros momentos. Fiquemos, agora, pela constatação do
horizonte que nos aponta a própria epistemologia (reflexão sobre o que é
conhecer e sobre o que podemos conhecer): sem Deus, sem a possibilidade, pelo
menos, de que Deus exista, nem ciência poderemos fazer, diz-nos Antony Flew,
nem humanos seremos, como tristemente constatou Foucault.
(Artigo publicado em Ecos da Ria)