segunda-feira, maio 31, 2021

Credo: a fé da Igreja que habita o coração de cada um

 

«Creio em um só Deus, Pai Todo Poderoso…» Assim professamos, domingo após domingo, aquele que, desde o século XVII, foi designado como o ‘credo ou símbolo nicenoconstantinopolitano’.

 

Noção de símbolo da fé

[A designação ‘símbolo’ é, habitualmente, utilizada para designar os ‘credos’ que, ao longo da história, se foram organizando, reunindo (‘simbolizar’), sendo um dos mais reconhecidos e evocados o ‘símbolo dos apóstolos’, que não analisaremos aqui, cuja designação não quer afirmar que foi formulado pelos apóstolos - o seu aparecimento dá-se no século IV, sendo do século V a primeira versão completa -, mas sim que repercute a fé professada pelos discípulos de Jesus Cristo. Este ‘símbolo dos apóstolos’ tem, reconhecidamente, uma missão ecuménica assinalável, na medida em que as diversas igrejas cristãs se reveem nele, dada a simplicidade das suas formulações. Reproduzimos, no final deste artigo, a versão disponibilizada em https://www.vaticannews.va/pt/oracoes/simbolo-dos-apostolos.html]

 

O Credo nicenoconstantinopolitano

A designação que foi atribuída ao símbolo que professamos, domingo após domingo (credo nicenoconstantinopolitano) repercute a unidade entre o credo de Niceia (325) e o que foi finalizado no concílio de Constantinopla (381), mas não podemos deixar de notar uma curiosidade que nos servirá, aqui, de base de reflexão. No símbolo professado em Niceia, as primeiras palavras são “Cremos em um só Deus, Pai Omnipotente, criador de todas as coisas visíveis e das invisíveis”. Por sua vez, o símbolo reunido em Constantinopla (e que secunda a fé de Niceia, desenvolvendo-a) inicia-se, na versão latina (aquela que nos chegará e que professamos), com “Creio em um só Deus, Pai Todo Poderoso, criador do céu e da Terra”.

Niceia assume um sujeito – nós; Constantinopla, na sua versão latina (a versão grega mantém a primeira pessoa do plural), desloca o sujeito da profissão para a pessoa individual.

Sabendo-se da insofismável unidade entre os dois símbolos (designar o segundo como nicenoconstantinopolitano repercute essa unidade), há que interpretar como sendo significativa esta dupla concentração nos sujeitos das afirmações.

Poderíamos recolher deste traço histórico a constatação de que a fé proclamada por cada um de nós não é uma fé individual, à medida do sujeito individual, mas uma fé comunitária que se personaliza e se assume, envolvendo nela não só o intelecto, mas toda a pessoa. Esta visão sobre a fé que é, por um lado, comunitária, mas também muito mais do que adesão intelectual, antes o envolvimento de toda a pessoa, é notória nas próprias formulações do Credo.

 

A fé em Deus e a fé na Igreja

Se olharmos com atenção a versão latina poderemos fazer uma constatação interessantíssima.

Afirma-se “Credo in unum Deum” (Creio num só Deus), “Credo in unum Dominum Iesum Christum” (Creio num só Senhor, Jesus Cristo), “Credo in Spiritum Sanctum” (Creio no Espírito Santo). Em latim, a preposição ‘in’ seguida de ‘acusativo’ (neste caso, ‘unum Deum’, ‘Unum Christum’ e ‘Spiritum Sanctum’) pode ser traduzida pela ideia de ‘fazer caminho em direção a’, ‘dirigir-se para’. Crer é, assim, muito mais do que uma mera conclusão intelectual, ainda que, certamente, esta dimensão da pessoa não esteja, de modo algum, ausente, mas até omnipresente, mas complementada pelo todo da pessoa. Esta perspetiva é coerente com o que afirmam alguns dos estudiosos da religião que, como Émile Benveniste, fazem derivar a palavra ‘crer’ de uma origem indo-europeia ‘Kred-dhe’, que poderia ser traduzida por ‘colocar o seu coração em alguma coisa’.

Dizer ‘credo in unum Deum’ é mesmo isso que pretende afirmar: encaminho o meu coração para Deus, sendo o coração muito mais do que o órgão, mas símbolo da totalidade do ser, em particular, dos afetos. E, se tivermos em conta que o afeto é a condição que nos permite ‘sermos afetados pelo outro’, então, a reflexão sobre o que é a fé atinge um grau de compreensão que supera as visões individualistas ou meramente intelectuais da fé. Ter fé é deixar-se habitar por Aquele em quem se crê. (Tão fecunda foi, ao longo da história, esta metáfora da ‘habitação’ de Deus no coração do Homem…)

Curiosamente, também, e regressando à versão latina do ‘Credo nicenoconstantinopolitano’, é possível constatar que os padres conciliares de Constantinopla não quiseram reservar à fé na Igreja o mesmo grau de adesão que se espera do crente em relação a Deus.

Na verdade, enquanto para a fé em Deus, em Jesus Cristo e no Espírito Santo é utilizada a preposição ‘in’ (criando a referida ideia de ‘caminho e adesão total do ser a…’), no caso da Igreja, a fé professada no símbolo aqui analisado expressa-se através de um ‘acusativo’ sem a preposição (‘Credo unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam’), podendo ser traduzido por ‘creio a Igreja’. A Igreja é merecedora de fé, mas não no mesmo nível que é devido a Deus, pois ela é a comunidade em caminho, ela mesma peregrina com a humanidade. Tal constatação não deve relativizar o papel e missão da Igreja, mas colocá-la ao serviço do absoluto que a transcende. A história cedeu, em alguns momentos, a tentações de absolutização do caminho em relação à meta, mas a consciência que, desde o Vaticano II, a Igreja tem de que a verdade ‘subsiste’ mas não se esgota na Igreja, favorece o diálogo, o encontro e a abertura.

Desafios que deveremos recordar e renovar, domingo a domingo, sempre que, na nossa língua, professarmos ‘Credo in unum Deum’, mas também ‘Credo unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam’).

 

(*Para a reflexão aqui recolhida, tomámos por referência uma obra que se tornou um clássico para os estudos teológicos, o Enchiridion …’, uma obra de que possuímos a 36ª edição, uma coletânea iniciada, em 1854, por Heinrich Denzinger. Esta edição devemo-la a Peter Hünermann que atualizou o trabalho iniciado por aquele professor alemão do século XIX. Nesta obra, coligem-se os principais documentos da tradição católica, renovadamente atualizados.)

 

Símbolo dos apóstolos – credo formulado entre os séculos IV e V.

Creio em Deus, Pai todo-poderoso, Criador do Céu e da Terra

E em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor

que foi concebido pelo poder do Espírito Santo;

nasceu da Virgem Maria;

padeceu sob Pôncio Pilatos,

foi crucificado, morto e sepultado;

desceu à mansão dos mortos;

ressuscitou ao terceiro dia;

subiu aos Céus;

está sentado à direita de Deus Pai todo-poderoso,

de onde há-de vir a julgar os vivos e os mortos.

Creio no Espírito Santo;

na santa Igreja Católica;

na comunhão dos Santos;

na remissão dos pecados;

na ressurreição da carne;

e na vida eterna. Amen

Credo nicenoconstantinopolitano (Concílio de Constantinopla – 381)

Creio em um só Deus, Pai todo-poderoso,
Criador do Céu e da Terra,
De todas as coisas visíveis e invisíveis.
Creio em um só Senhor, Jesus Cristo,
Filho Unigénito de Deus,
nascido do Pai antes de todos os séculos:
Deus de Deus, luz da luz,
Deus verdadeiro de Deus verdadeiro;
gerado, não criado, consubstancial ao Pai.
Por Ele todas as coisas foram feitas.
E por nós, homens, e para nossa salvação
desceu dos Céus.
E encarnou pelo Espírito Santo,
no seio da Virgem Maria.
e se fez homem.
Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos;
padeceu e foi sepultado.
Ressuscitou ao terceiro dia,
conforme as Escrituras;
e subiu aos Céus,
onde está sentado à direita do Pai.
De novo há-de vir em sua glória
para julgar os vivos e os mortos;
e o seu Reino não terá fim.
Creio no Espírito Santo,
Senhor que dá a vida,
e procede do Pai e do Filho;
e com o Pai e o Filho
é adorado e glorificado:
Ele que falou pelos Profetas.
Creio na Igreja,
Una, Santa, Católica e Apostólica.
Professo um só batismo para a remissão dos pecados.
E espero a ressurreição dos mortos
e vida do mundo que há-de vir.
Amém.

segunda-feira, maio 10, 2021

Intelligo quia credo (Compreendo porque creio) | Variações sobre a fé cristã…

 Inicio, com esta reflexão, uma rubrica dedicada ao estabelecimento de pontes entre a fé cristã e a racionalidade contemporânea. Decidi intitulá-la ‘intelligo quia credo’, integrando a longuíssima tradição teológica que se dispõe a compreender para melhor (e mais solidamente) acreditar (intelligo ut credam – compreendo para acreditar) e crer para, desse modo, melhor poder compreender (credo ut intelligam – creio para que possa compreender). A minha formulação recusa a, erroneamente atribuída a Tertuliano, ideia de que ‘credo quia absurdum’ (creio porque é absurdo). Tertuliano não pretendeu afirmar tal ideia que contradiz o seu enorme esforço intelectual de tornar credível, para os seus tão desafiantes tempos (ele que viveu entre finais do século II e inícios do III), mas a sua convicção de que a ressurreição era credível pelo seu carácter surpreendente (como se fosse algo impossível!), gerou a ideia de que defendia que a fé excluía a razão e era tanto mais ‘credível’ quanto mais absurda. Longe disso!

O pressuposto que seguirei, ao longo das minhas reflexões, será, exatamente, o de que fé e razão são, parafraseando João Paulo II em Fides et Ratio, como que duas asas que necessitam uma da outra para que possa assim voar o conhecimento humano.

Afirmo que ‘intelligo quia credo’: compreendo porque acredito. Não afirmo, aqui, um qualquer fideísmo ou uma apologética gratuita, mas antes prenuncio a constatação que venho fazendo de que, sem o horizonte que lhe abre a fé, o ser humano e o que é ser humano ficam em grave crise.

Não apenas uma crise constatável, sociológica e eticamente (talvez a revisão da história pudesse ser suficiente para sustentar a credibilidade dessa convicção), mas uma verificação ainda mais radical e fundamental.

 

O ateu que, por causa da ciência, negou e, depois, reconheceu a existência de Deus

Tomemos, para enunciar a tal crise em que ficamos sem a fé, o que nos mostrou, já em pleno século XXI, o pensamento de Antony Flew, autor que gosto de revisitar.

Fora, durante cerca de cinquenta anos, um dos grandes defensores do que poderíamos designar como ‘ateísmo epistemológico’. Entendo por ‘ateísmo epistemológico’ aquela posição que defende a inexistência de Deus como resultado da verificação de que o saber teológico foi suplantado pelo saber científico, ficando reduzida a cinzas a sua pretensão de verdade.

Essa fora a convicção de Antony Flew, até que, em 2004, a sua honestidade intelectual o levou a reconhecer que errara. Flew constatava, nessa altura, que o simples esforço de fazer ciência supunha, só por si, a possibilidade da existência de Deus. De outro modo, dizia, seria impossível fazer-se ciência. E explicou a sua conclusão.

Quem faz ciência parte de um princípio inabalável (axioma): há inteligibilidade no universo. Se não supuser a existência de inteligibilidade, ninguém fará ciência. Tudo será absurdo e impossível de estudar. Ora, tal pressuposto obriga a perguntar sobre a razão que justificará a existência de inteligibilidade no universo. Flew enuncia duas possibilidades: ou a inteligibilidade é fruto de acasos que se sobrepõem a acasos, numa cadeia quase infinita de casualidades (biliões de biliões de acasos que se concatenam de forma a gerar a inteligibilidade que é a condição para se fazer ciência); ou, então, diz Flew, há que supor que o universo corresponde à inteligibilidade que nele depositou, como condição, uma Origem inteligente e infinita que lhe concedeu, desde o primeiro momento, essa potencialidade de ser inteligível.

Face a estas duas possibilidades, Flew recorda um critério para se optar pela melhor. O critério recolhe-o da própria ciência que define, à luz do princípio designado como ‘navalha d’Ockam’, que a explicação mais simples para um fenómeno é a mais válida. Ora, com este critério, Flew pergunta qual a possibilidade mais simples e mais credível e conclui que supor a existência de uma Origem Inteligente como condição para compreender a inteligibilidade do universo é a hipótese mais plausível.

Com a mesma ciência com que rejeitara a possibilidade da existência de Deus, Flew concluiria, a partir de 2004 (em português, pode ler-se com muito interesse, o seu Deus não existe, editado pela Alêtheia), que essa existência é, afinal, a própria condição de possibilidade da mesma ciência. (Talvez a abrangência do mar o torne tão ‘opaco’ e improvável para o peixe, poderíamos nós concluir…)

 

Também a história do pensamento evidencia a crise do Humano sem Deus

No mesmo sentido que nos leva a concluir o raciocínio de A. Flew, também a história recente da filosofia parece demonstrar-nos a intrínseca relação entre a existência de Deus e a condição humana. Repare-se que, em finais do século XIX, Nietzsche afirmara, no seu livro A gaia ciência, que Deus morrera. (E não se referia à morte de Cristo na Cruz, mas à morte de Deus como Absoluto.) Afirmara-o em nome da liberdade humana; em nome do Homem. Mas, curiosamente, não foi preciso esperar muito mais de meio século para que a própria filosofia, pela pena de Michel de Foucault, viesse afirmar que o homem morrera. Deus morre, em Nietzsche; o Homem morre, em Foucault.

Estas constatações não pretendem ser, como atrás afirmávamos, apologia gratuita, mas interpelação.

Se não aponta para um horizonte transcendente a vida que levamos do berço até à tumba, quem é o ser que leva os andrajos com que se faz essa vida? Mas será, então, - dirão, alguns -, a fé apenas o fruto de uma necessidade de dar sentido à vida que ficará absurda sem a fé? Aceitamos o repto a que tentaremos responder em outros momentos. Fiquemos, agora, pela constatação do horizonte que nos aponta a própria epistemologia (reflexão sobre o que é conhecer e sobre o que podemos conhecer): sem Deus, sem a possibilidade, pelo menos, de que Deus exista, nem ciência poderemos fazer, diz-nos Antony Flew, nem humanos seremos, como tristemente constatou Foucault.


(Artigo publicado em Ecos da Ria)

sábado, maio 08, 2021

Direitos humanos – duas faces de uma crise de humanidade

 

Vivemos uma dupla crise de direitos humanos: a que se manifesta na sua violação e a que se expressa na justificação e legitimação dessa violação…

A estratégia em andamento já não se basta em atentar contra os direitos humanos. Tudo faz para o justificar, assegurando-se de se munir dos melhores argumentos com aparência de válidos.

Para nos apercebermos disso, exige-se que façamos um breve percurso de reflexão, indo à raiz do que deve entender-se por ‘direitos humanos’.

 

‘Poder fazer’ não é sinónimo de ‘ser legítimo fazer’

A defesa e proclamação dos direitos humanos nasce de uma tragédia humana.

Quando, em 10 de dezembro de 1948, se adotou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o mundo ainda mal acordara de um pesadelo em que, progressivamente, se fora enredando até à tragédia final, monstruosamente orquestrada ao longo de uma década (desde 1933) até à ‘solução final’, como defendiam os preconizadores de um regime que ‘banalizou o mal’ (expressão cunhada pela judia Hannah Arendt).

Face ao que se consumara, na II Guerra Mundial, em nome de um poder que se concebia como fim em si mesmo, foi preciso reconhecer, sem margem para dúvidas nem subterfúgios, que a dignidade humana se impõe por si própria, sendo mesmo anterior ao seu reconhecimento. Esta é a base dos direitos humanos: a dignidade humana de que todos participamos é anterior mesmo ao reconhecimento que dela façamos; ela impõe-se-nos. Não é porque eu reconheço alguém que ele passa a ter dignidade humana, mas antes é porque o outro é humano que me cabe reconhecê-lo. E é também por isto que a declaração universal dos direitos humanos estabelece, no seu preâmbulo, que a “dignidade [é] inerente a todos os membros da família humana e [que o reconhecimento] dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.

Ora, este ponto de partida significa que a dignidade humana não é algo oscilante, variável, sujeito a conjunturas. É a condição pela qual somos merecedores de todo o respeito e de todo o cuidado, em particular, quando mais frágeis, quando somos mais dependentes do apoio dos outros.

 

Atentados contra direitos humanos

A esta luz, cabe reconhecer que há atentado contra os direitos inerentes à nossa condição de humanos sempre que essa dignidade não é considerada como portadora de uma mensagem de que não podemos ser instrumentalizáveis, transformáveis em objetos. Como, aliás, souberam reconhecer os homens do século XVIII, a condição humana faz de cada um de nós um fim em si mesmo e nunca um meio. Atenta, por isso, contra a dignidade humana, toda a manipulação, sujeição a poderes que se servem do humano para fins que lhe são alheios, o desrespeito pelas condições que servem essa mesma dignidade (habitação, emprego, educação, etc.), matéria de denúncia tão frequente por parte do Papa Francisco que dedica o mês de abril à reflexão sobre esta matéria.

Estamos, neste contexto, a referir-nos aos atos pelos quais se perpetram os atentados e violações contra os direitos humanos.

Mas, dizíamos acima, há uma dupla crise de direitos humanos. Reparemos na outra face dessa crise.

 

A outra face da crise: a legitimação dos atentados contra os direitos humanos

Assistimos a uma dinâmica que já não se basta em violar os direitos humanos. Ela vem orquestrando um discurso que procura legitimar essa mesma violação. Para percebermos esse discurso, regressemos ao que nos diz o preâmbulo da declaração universal dos direitos humanos. Este afirma que os direitos humanos são ‘iguais e inalienáveis’. Repare-se na força da palavra ‘inalienável’. Ela afirma que eu próprio não posso alienar, deixar de proteger esse bem designado como ‘direito humano’ de que eu participo, pela humanidade que há em mim. É isso que significa ‘inalienáveis’: que não posso alienar, dispensar, entregar a outro. Afirmar que os direitos humanos são inalienáveis é sublinhar que os direitos humanos se constituem para os outros e para nós próprios como ‘deveres’. O raciocínio é simples e claro: não sou eu que me ofereço a humanidade; antes, eu sou participante da humanidade que me é comum e aos demais humanos. É, aliás, nesta lógica, que se compreende que atentar contra uma pessoa, contra um povo, contra uma comunidade religiosa, etc., é atentar contra toda a humanidade que em cada um se faz presente.

 

A dignidade humana é o fundamento da liberdade e não o contrário

Face a isto, percebe-se quão ilegítimo é o discurso dos que pretendem sustentar que respeitar os direitos humanos seja permitir o exercício absoluto e indeterminado das vontades individuais (designando isso como ‘liberdade’, quando, de facto, é arbítrio, mas não liberdade. A liberdade é escolha com respeito pela verdade.). Digo de modo mais simples: pretender legitimar práticas que matam ou ofendem, em nome do direito a uma autonomia sem limites, não só não é sustentável à luz da declaração universal dos direitos humanos como, até, a ofende e está em sua oposição. Veja-se que a declaração afirma que é o reconhecimento dessa dignidade que é fundamento da liberdade. Não o contrário, que é o que pretendem os defensores da legalização de práticas como a da eutanásia ou do aborto, sustentando que estas práticas possam ser legítimas à luz dos direitos humanos, sob pretexto de que ‘cada um terá direito a fazer o que bem entenda’. Não é essa, de modo algum, a conclusão que poderá retirar-se de uma leitura verdadeira dessa mesma declaração. Pelo contrário. Tais práticas ofendem a dignidade humana, por não compreenderem o humano que há em cada um como fim em si mesmo, como merecedor de todo o cuidado e proteção. Não foi por acaso, aliás, que o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deliberou, sem possibilidade de recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o aborto não é um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o penalizem.

Verifica-se, porém, que o discurso difundido pela dita ‘grande imprensa’ é o de que ‘direito humano’ é fazer o que bem se entende e a nada ser impedido. Mas isso não é reconhecer que o direito humano é inalienável, nem que a dignidade seja o fundamento da liberdade, mas, invertendo isto, é pretender que seja a liberdade o fundamento da dignidade. Esse é o contorcionismo a que temos vindo a assistir e que tem levado para uma vertigem de morte as nossas sociedades de conforto e bem-estar. Convém lembrar que a II Guerra Mundial e o regime nazi não nasceram do dia para a noite. Foram preparados por toda uma vertigem legitimadora bem anterior a 1933, de teor eugenístico. Muito antes de os nazis fazerem a hedionda seleção dos que podiam e não podiam continuar vivos, já o mundo aceitara leis eugenísticas que legitimavam a escolha dos que podiam ou não podiam casar, dos que podiam ou não podiam ter filhos. Como tenho recordado em diversos textos sobre estas matérias, e recuperando o que refere “Matt Ridley, no seu livro ‘Genoma’, entre 1910 e 1935, mais de 30 Estados norte-americanos tinham leis que impunham a esterilização de pessoas (chegando a fazê-lo em ‘mais de 100000 pessoas por serem débeis mentais’ – p. 300). O mesmo Ridley recorda que assim aconteceu na Suécia, Canadá, Noruega, Finlândia, Grã-Bretanha, etc. Um retrato perturbador que pode confirmar-se no livro de André Pichot, no seu livro ‘Eugenismo’. Recorda este investigador do CNRC, Estrasburgo, que ‘na década de 30, eram esterilizadas, nos Estados Unidos, mais de 100 pessoas por mês’, tendo a Dinamarca esterilizado mais de 3000 pessoas e a Suécia mais de 15 mil, entre 1935 e 1945 (p. 51).”

Ainda vamos a tempo de travar a vertigem que parece ir tomando os nossos tempos. Respeitar os direitos humanos não é deixarmo-nos entregues à vontade puramente arbitrária sem respeito por si nem pelo outro: isso é, antes, um bom princípio para a indignidade. Respeitar os direitos humanos é assegurar que todos (qualquer que seja a sua idade, condição, força ou circunstância) são fins em si mesmos e portadores de uma dignidade que os torna merecedores de cuidado e proteção.

 

Luís Manuel Pereira da Silva

Professor – teólogo e bioeticista

Sócio-fundador da ADAV-Aveiro

Membro da Direção Nacional da Federação Portuguesa pela Vida


(Artigo publicado em https://www.paroquiadefafe.com/vozes-plurais)

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