(Artigo publicado na revista 'Mundo Rural')
Prosseguimos a nossa viagem de ‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’…
Como em fases anteriores da nossa viagem, cruzaremos a cultura clássica com a bíblica, procurando que, com o contributo recíproco, possamos iluminar o nosso caminhar contemporâneo.
A nossa etapa de hoje pretende perceber as características do paradigma que define as decisões e o modo de pensar deste tempo. Para tal, precisamos de olhar, em contraste, para a história. Para a história dos últimos séculos.
Socorro-me, para isso, do contributo de dois livros.
Revisito o livro ‘ideias e crenças do homem atual’, da autoria de Luís Gonzalez Carvajal (regresso a este livro muitas vezes… Foi um marco no meu modo de olhar para o mundo!) e aproprio-me de uma ideia que encontrei numa leitura recente: ‘O infinito num junco’, da autoria de Irene Vallejo Moreu, um livro extraordinário.
Mas encetemos, então, a nossa viagem de hoje.
A ideia de olhar para a história em ciclos, como se esta fosse o desembrulhar de um novelo em espiral, é já longínqua. Há autores que a pensaram em ciclos sucessivos de melhoria, em etapas tripartidas, sendo, de entre eles, o mais célebre, provavelmente, Joaquin de Fiore (1135-1202), que alguns consideram ter inspirado a versão secularizada de Auguste Comte (1798-1857).
Não me proponho fazer essa leitura, mas antes, olhar para a história e ver como, nas etapas seguintes, se exagerou um determinado aspeto da anterior ou, então, se exagerou um aspeto que se considerou estar omitido na precedente, como forma de compensar as insuficiências prévias. De qualquer modo, a leitura que irei propor ajudar-nos-á a olhar para os limites da atualidade, lançando o desafio de recuperarmos o que nas anteriores havia de mais interessante.
Partamos, então…
O
paradigma da Idade Média: Abraão
Comecemos por assentar ideias no seguinte: para percebermos o nosso tempo, teremos de alongar o nosso olhar para o passado, indo, eventualmente, até à Idade Média.
Ao fazer esse esforço, perceberemos que a poderemos pensar como o tempo em que o centro da ação era a fé. Poderíamos tomar como paradigma dessa fase a figura de Abraão: nele concentra-se a atitude crente, de alguém que não teme decidir se tal se lhe afigura como desejo de Deus.
Sucede-se à Idade Média a Idade Moderna, cuja origem podemos fazer coincidir com o século XVI.
Sísifo
e Prometeu: uma autonomia revoltada com a teonomia
É a era de um otimismo antropológico, da emergência da autonomia (se necessário, contra o próprio Deus), sustentada na convicção cada vez mais consolidada de um imparável progresso.
O paradigma desta fase é, como bem retrata Carvajal, configurado nas personagens da mitologia clássica Sísifo e Prometeu. Une ambas estas personagens a condição de se terem oposto aos deuses e, como castigo, terem sido amaldiçoados com uma condição de eterna repetição de um mal: no caso de Sísifo, terá de arrastar, sem nunca conseguir o seu objetivo, uma pedra pelo monte acima, sendo que, quando próximo do cimo, ela volta a rolar pelo monte abaixo; por seu turno, Prometeu verá as suas entranhas serem devoradas, repetidamente… Em ambos os casos, há a atitude de revolta contra o divino e a ideia de um castigo. (Como cristão, não reconheço nesta a visão genuína que quer propor-nos a fé em Jesus Cristo – o que salva é a graça e a misericórdia divina – mas este retrato repercute a visão que o Homem Moderno foi vincando em si mesmo de que ‘ou Deus, ou o Homem’, visão que, em Jesus Cristo é ultrapassada pelo ‘Deus com o Homem’…).
O tempo avançou e, com as duas grandes Guerras Mundiais, o Homem deparou-se com a constatação de que, afinal, o progresso humano poderia não ser infinito.
Gerou-se uma desilusão que levou à deceção (como refere Lipovetsky) e, com ela, à recusa das fases anteriores: a modernidade já tinha rejeitado a fé; restava, agora, com a pós-modernidade, rejeitar a própria ‘Razão’.
O
homem pós-moderno: Narciso descobre o seu umbigo…
O homem pós-moderno, o que emergiu após as duas Guerras e, segundo o mesmo Lipovetsky, depois do Maio de 68, já não se baseia na força dos argumentos, na força da razão, pois está desiludido em relação a isso. O que lhe resta, então?
Os afetos, a emotividade. O homem pós-moderno é um hipersensível…
Narciso é, segundo Gonzalez Carvajal, o seu paradigma. Narciso é, na mitologia grega, uma personagem que se inebria com o seu reflexo nas águas calmas de um lago. Como se nada mais houvesse senão o próprio umbigo!
Esse
alguém pós-contemporâneo a que deram outrora o nome de ‘Homem’: a síndrome de
Heróstrato
Mas a história não parou e, se olharmos com detenção, perceberemos que Narciso foi, entretanto, superado. Hoje, já não nos basta a autocontemplação.
Hoje, precisamos de constatar quão belo acham os outros que é o rosto (o nosso) que vemos nas águas.
O homem (ou esse alguém a quem deram, em tempos, o nome de Homem… alguns pretendem que estejamos na era do pós-humanismo) pós-contemporâneo (utilizamos este paradoxo para retratar esta atitude alienada em que vivemos: somos mas não somos já deste tempo; não nos sentimos de tempo nenhum…) vive a síndrome de Heróstrato, figura que conheci ao ler o livro de Irene Vallejo, ‘O infinito num junco’. Heróstrato é uma personagem histórica que, em 21 de julho de 365 a.C., decide incendiar o templo de Artemisa com o mero objetivo de ficar conhecido. Quantos Heróstratos temos em nosso redor, nestes tempos pós-contemporâneos!
A história mostra-nos que o esquecimento das virtualidades das etapas anteriores gerou uma humanidade progressivamente mais vazia. Não somos só a fé; não somos só a razão; não somos só a emoção; não somos só a aparência. Só seremos se regressarmos à confiança em que caminhamos no sonho do Éden. Ítaca está no nosso horizonte terrestre, mas esse horizonte ainda não é o definitivo.
Sobreviverá Heróstrato a si mesmo? Uma visão cristã da história não poderá bastar-se em formular a pergunta, pois, no Cristo da cruz (em que o transcendente da trave vertical se une ao imanente da trave horizontal) fica estabelecido que a realização humana se faz na tensão que nunca poderá perder-se entre ser e ainda não ser, entre o ‘já’ de uma salvação de que se participa e o ‘ainda não’ de uma realização total. As etapas da história aqui retratadas perderam esta tensão e pretenderam sossegar o Homem e aquietá-lo. Urge recuperar essa tensão para que o Homem sobreviva, pois, como diz S. Ireneu, ‘a glória de Deus é o Homem vivo’.