Eis-nos no caminho de Troia para Ítaca, no sonho do Éden… Temo-lo feito, ora com uma mão em Ulisses, ora com a outra em Adão. A mão de Ulisses sua de tragédia, goteja, mesmo! Nela, só parece haver sangue e desilusão. Nada podemos fazer, no caminho grego, contra a voracidade e vertigem do destino. Preserva-se no adágio ‘fatal como o destino’ um resquício dessa rendição.
Mas Adão não é o homem da tragédia.
Sucumbiu (e continua a sucumbir), bem certo, à tentação e, com ela, veio a dramaticidade da vida. Mas ele já não é rendido ao poder de um destino inexorável. O horizonte do Novo Adão redime-o e reconfigura-o como imagem da esperança.
O percurso tem-nos mostrado, por isso, que à densidade trágica não temos de somar tragédia. Mas disso se convenceram os gregos e, com eles, tantos dos nossos contemporâneos.
A história humana é marcada pela tragédia. Mas não há que render-se-lhe como se nada mais restasse do que aceitar que assim é e não poderá ser de outro modo.
Também os gregos vislumbraram, fugazmente, que pudesse não ser assim quando colocaram, num recôndito e escondido recanto da caixa de Pandora, a esperança. Mas a tragédia grega parece mais forte do que a esperança.
Terá de se esperar pelo Cristianismo para fazer germinar e tornar frondosa a árvore bem robusta da esperança
Mas a mão de Ulisses parece querer prender-nos e agarrar-nos, não nos deixando acolher os dedos de Adão.
Em tantos momentos se expressa esta visão trágica!
Particularmente notória é a sua presença quando a vida se dramatiza.
Dela são densas narrativas o mito de Édipo e a singeleza do presépio.
Édipo (já aqui falámos dele, pois virá a ser o pai de Antígona, Polinices, Etéocles e Isménia) é filho de Laio e Jocasta, reis de Tebas.
Quem no-lo conta é o eterno Sófocles, nas suas tragédias Rei Édipo e Édipo em Colono, seguindo-o, aqui, pela pena de Luc Ferry, no seu livro ‘a sabedoria dos mitos’ [edição da Temas e debates, 2014].
Um oráculo prenuncia que aquele filho, Édipo, matará o pai e tomar-se-á de amores pela mãe.
Ontem, como hoje, o parricídio e o incesto incluem-se nos mais hediondos comportamentos humanos. Para não sucumbirem ao fatídico vaticínio, decidem entregar o pequeno príncipe à sorte, deixando que um dos seus servos, um pastor, o leve para um bosque onde possa ser devorado pelas feras. No caminho, encontra os servos de um rei vizinho que não conseguia ter filhos. Propõem-lhe tomar a criança para a tornarem príncipe de outro rei. Só já adolescente conhece, numa disputa de crianças, que não será, efetivamente, filho do pai, uma vez mais, no oráculo de Delfos, onde os seus verdadeiros pais já tinham concluído que sobre ele impendia aquela maldição.
Decide fugir da cidade onde vivia, dirigindo-se para (pois está claro!) Tebas. (Tudo é trágico, nesta descrição, e nada há a fazer…) No seu caminho vem o rei de Tebas, dirigindo-se ao mesmo oráculo de Delfos, para saber o que fazer, pois a sua cidade era assolada por uma epidemia. Os destinos de ambos cruzam-se sem que nenhum deles possa fazer nada senão dar os passos certeiros para que ele se cumpra…
Do mito para a realidade…
No início da nossa era, também uma outra criança parece ver recair sobre ela oráculos trágicos (como parecem ecoar os gregos as palavras do velho Simeão!). Mas na história desta criança o fado, o terrível fado não tem a última palavra.
O pai foge da perseguição cruel de um Herodes a quem a história chamou ‘grande’. E sobrevive. Não sucumbe.
E mesmo a predição da morte cruel que atravessará o próprio coração da sua mãe é prenúncio de uma esperança que superará a tragédia.
Dos oráculos de Delfos ‘refulge’ a sombra da tragédia.
Da humildade do presépio dimana a refulgência de uma luz infinita.
E é por isso que, enquanto os gregos expunham os seus filhos ‘malditos’, jamais os cristãos expuseram os seus filhos, como disso é retrato intemporal o dizer do anónimo autor da carta a Diogneto, em finais do século II. Diz ele dos cristãos (segundo edição da Alcalá, de 2001) que «habitam pátrias próprias, mas como peregrinos: participam de tudo, como cidadãos, e tudo sofrem como estrangeiros. Toda a terra estrangeira é para eles uma pátria e toda a pátria uma terra estrangeira.» Mas (nota que mostra a novidade que o cristianismo trouxe ao mundo e permanece, hoje, como escândalo, quando tantos continuam a expor os seus recém-nascidos ou ainda não nascido…) «casam como todos e geram filhos, mas não abandonam à violência os neonatos.»
Édipo continua a fascinar, mas a sua sombra denuncia uma luz de que ele não é origem: a esperança cristã! Hoje, como nos primeiros séculos, o brilho cristão incomoda porque alguns continuam a habitar num reino de sombras. E as sombras falam de uma luz que ofusca e não se quer olhar.
O brilho que inunda o mundo é humilde e suave, mas inabalável. Adão fez-se Novo Adão. Já não estilhaçado pela tentação, mas ainda exposto pelo mundo que o abandona e não quer ver. Mas Deus já não é alguém rendido ao trágico, ao inexorável: liberta e liberta para sempre. Não há, por isso, que temer a fragilidade. Ela já não é uma maldição: é um caminho de superação, em que o próprio Deus encarna, para dela se compadecer e, assim, a elevar. O sonho do Éden está totalmente presente na singeleza luminosa do estábulo frágil e só aparentemente abandonado.
(Artigo publicado na revista 'Mundo Rural')