Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Luís Manuel Pereira da Silva*
O autor e a obra
Ignacio Garcia de Leániz Caprile, La extinción de los hijos: el retorno del flautista de Hamelín, Madrid, Ediciones Cristiandad, 2023.
Ignacio de Leániz Caprile é um autor a conhecer. E, este livro, de tradução obrigatória para português…
Ainda não traduzido em português (não consegui encontrar nenhum dos seus títulos nas editoras nacionais), tem já significativa obra publicada (entre livros e artigos) em diversas editoras e revistas espanholas: Laertes, Encuentro (2 livros), Diaz de Santos e Ediciones Cristiandad, revelando, neste livro com que acedi à sua escrita (‘A extinção dos filhos’) uma robusta cultura que conjuga conhecimento livresco com o aprofundado conhecimento da realidade contemporânea, repercutindo, na sua escrita, a sua experiência como académico (é professor associado na Universidade de Alcalá, Madrid, uma universidade com perto de 20 mil alunos), mas também o seu ‘respirar’ de consultor de empresas. Esta última nota é particularmente visível neste livro em que se articulam o imaginário literário e a concretude das propostas de natureza económica e empresarial. Caprile escreve bem e de forma transparente, com um pensamento lúcido, atento, não só à espuma do tempo, mas também ao ‘espírito’ que lhe subjaz. É desta matriz que se faz ‘a extinção dos filhos’, onde se cruzam as estatísticas e os dados demográficos com uma leitura em profundidade, interpretativa e solidamente analítica. As notas biográficas que cobrem a badana deste livro ajudam a perceber o ‘tapete’ que se tece, neste livro: Caprile tem-se dedicado, nos seus livros e nas colunas com que colabora, nos jornais El Mundo e El Debate, à reflexão sobre filosofia, antropologia, literatura, cinema e, naturalmente, a gestão dos recursos humanos, enquanto consultor de empresas. De tudo isso se fazem as páginas deste livro. Não apenas para servir um bom, robusto, diagnóstico, mas, também, para formular uma original proposta.
Marcas de água
(o que fica depois de se deixar o livro)
Li, de um fôlego, entre os dias 27 e 29 de abril de 2025, este belo ensaio de Ignacio Caprile. São 108 páginas, divididas em oito capítulos, antecedidos de uma introdução e de um epílogo escrito ‘a partir de Hamelin’. O título e o subtítulo são, só por si, já um programa… A capa ilustra, transparentemente, o seu conteúdo: sobre um berço vazio, caminha um ‘flautista de Hamelin’, em cujas vestes se visibilizam as crianças roubadas a Hamelin, seduzidas para a cova onde serão escondidas dos pais. Parece ouvir-se a sua maviosa melodia… O tom cinzento da capa soma-se à ilustração inequívoca. Mas, se de sombras se faz grande parte da reflexão, não se pense que este é um livro de desespero. É, como um despertador, a voz que nos acorda da noite, provocando o incómodo próprio do momento de se elevar do leito do repouso. O acordar perturba, mas a culpa não é do despertador, antes do estado letárgico de que custa sair…
Como com a lenda de Hamelin, popularizada pelos irmãos Grimm (curiosamente, autores que são ‘irmãos’… Uma curiosidade significativa, quando se denuncia a ideologia do ‘filho único’…), o flautista que ‘rouba’ as crianças sabem munir-se das melhores melodias para levar avante os sues intentos.
Ao longo das 108 páginas deste ensaio, Caprile percorre um caminho: socorre-se de dados estatísticos que evidenciam (lá, em Espanha, como cá…) um declínio demográfico. Declínio que deveria preocupar, mas que, como afirma, logo a abrir o livro, é matéria proibida, nas discussões políticas ocidentais, denunciando que já não estamos perante uma mera factualidade de natureza fatalista (devida a causas que ultrapassam a vontade humana), mas sim perante uma intencional ação, pretendida e cultivada.
Caprile encontra as suas raízes no cruzamento entre uma visão nihilista, intencionalmente cultivada [que prefere o ‘nada’ (de não gerar vida) ao ‘ser’ (que é um filho); Caprile cria o termo ‘nadificação’ para designar esta atitude de escolha do ‘nada’ em vez da ‘nidificação’, a criação do ninho para gerar vida…], e ideologias apocalípticas que, a pretexto de uma suposta sobrelotação humana do planeta, defendem a extinção da espécie humana, como meio para a cura de um hipotético mal, de que não só se convenceram os seus próprios defensores, como pretenderam (com bastante sucesso, aliás) associar, criando sentimentos de culpa, os demais humanos. Procriar é, nesta ideologia aqui denunciada, um novo ‘pecado original’ que lesa o planeta, devendo, no entender dos seus preconizadores, gerar sentimentos de culpa nos que ousam dar origem a novas vidas humanas…
É desta matriz que Caprile parte para, como que numa espiral que se vai desenovelando, constatar o papel que tem o aborto, nesta emergência e consolidação da ideologia que defende a diminuição da natalidade e, até, a extinção da espécie humana (Caprile não faz afirmações gratuitas: retenhamos na memória nomes como Corinne Maier, Paul Ehrlich ou Alan Weismann ou a designação das correntes que defendem o ‘voluntary childlessness’ ou a ‘voluntária extinção da espécie humana’…). Os números deveriam, mais uma vez, lá como cá, fazer pensar e incomodar, mas, como bem recorda, ‘infelizmente, acostumamo-nos ao aborto. As suas vítimas, reduzidas e tratadas como restos, como Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), não se veem, ficam no anonimato, sem nome com que figurar em algum registo.’ (p. 26)
Recordemos os números, para que falem por si (deixemos Caprile falar…):
‘Qualquer aproximação intelectual ao tema da extinção dos filhos que pretenda ser honrada não pode iludir o grave tema, o punctum dolens da realidade do aborto na nossa cultura atual.’ Da sua magnitude dão conta as cifras certamente calafriantes da sua prática: no nosso país [Espanha] o número de abortos voluntários não desce dos 90000 por ano. Na França, as cifras atingem mais de 222000; no Reino Unido, 215000. Nos Estados Unidos, com mais de 900000, uma em cada gravidez desemboca num aborto voluntário. Na China, desde que começou a política do filho único em 1979, registaram-se mais de 336 milhões de abortos legais, cifra que supera a população atual dos Estados Unidos. É ocioso dizer que se esses seres humanos tivessem chegado a nascer estaríamos perto da taxa de reposição comentada de 2,1 filhos por mulher e, ao menos no nosso país, os nascimentos estariam equilibrados com as mortes, dado que não se reflete no discurso político atual, como comprovava Blair.’ (p. 25-26)
Soma à análise sobre o contributo que o aborto tem neste destruir da vida humana e o seu robusto impacto numérico e de mentalidade na crise demográfica uma outra linha. No terceiro capítulo do ensaio, evidencia como está organizada a estratégia para que os fins sejam efetivos: os humanos são culpabilizados por terem filhos. Para a concretização deste desiderato, muito contribuíram livros como No kid. 40 boas razões para não ter filhos [1](2008) e O mundo sem nós (2007). Se havia dúvidas sobre a intencionalidade que assiste a este processo, este capítulo não as deixa sobreviver…
Do mesmo modo acontece com um facto observável: a proliferação dos animais de estimação e a (quase diretamente proporcional) inversão no número de filhos. Caprile não deixa escapar essa verificação: ‘Há uma clara correlação entre o declínio demográfico e o aumento exponencial da aquisição de animais domésticos, preferencialmente cães e gatos. De facto, no nosso país (Espanha) há 6265153 crianças menores de 14 anos, enquanto o número de animais de estimação registados ascende a 13 milhões no ano em que menos nascimentos temos tido desde há 80 anos.’ (p. 53)
A sua análise, em relação aos motivos, é particularmente interessante. É que um animal (aparentemente) não desilude; um filho pode desiludir. E esse é o risco de gerar filhos: eles são eles, não o que queremos que sejam. Um animal, enquanto ser previsível e entregue ao instinto, não tem condições para a autonomia e autodeterminação. Mas quanto de geneticamente ou educacionalmente nosso há num cão ou num gato? Quanto da depressão coletiva pode ficar a dever-se a esta morte do futuro que redunda de termos desistido de ter filhos para os substituir por animais que nada têm de nosso?
São interrogações implícitas na análise de Caprile que não podemos deixar de enfrentar…
Desta, o nosso autor encaminha-se para constatação com profundo impacto nas relações mais significativas da nossa condição: esta opção pela extinção da espécie humana está a conduzir-nos a uma sociedade sem passado nem futuro.
Obviamente, uma sociedade sem filhos é uma sociedade sem pai, sem mãe, sem irmãos e, naturalmente, sem avós. Curiosa e paradoxalmente, apesar de ser uma sociedade que conseguiu prolongar o tempo de vida, mas que está, por decisão sua, a impedir que esse prolongamento seja feito de humanidade e significado…
A sua análise encaminha-se, no penúltimo capítulo, para uma análise de natureza teológica, ao constatar que a recusa da paternidade, da filiação repercute a recusa da visão cristã de Deus, revelado como Pai e Filho… Uma observação a que o nosso autor acrescenta um desafio: o de que os discursos pastorais retomem o tema da procriação e da fecundidade como contributo para a realização humana, denunciando, aliás, que ‘o desaparecimento progressivo deste discurso nas próprias esferas religiosas nas últimas décadas, sem dúvida contribuiu com o seu silêncio para a grande encruzilhada em que nos encontramos.’ (p. 107-108) Um repto a ter em conta…
Por fim, não se bastando com uma análise pertinente que nos expõe um diagnóstico inquietante, Ignacio Leániz dedica o último capítulo à formulação de uma proposta que, tendo em conta o seu saber como consultor, tem em conta o modus cogitandi próprio do mundo empresarial: sugere que, dando como certo que a demografia se repercute na criatividade empresarial e nos modelos de organização das empresas, é preciso introduzir o critério do ‘contributo da empresa para a natalidade’ como um dos critérios de apreciação e financiamento destas…
Uma proposta a considerar…
Para que das covas onde foram escondidas as nossas crianças possam estas ser resgatadas das ‘garras sedutoras’ dos novos flautistas de Hamelin.
Ou já teremos sido todos associados à sua orquestra de sopros?
[1] Editado, em português, pela Guerra e Paz, 2008.
Na mesma página que o autor (citações)
‘«As civilizações morrem por suicídio, não por assassinato.»’ Arnold Toynbee (citado em epígrafe, p. 11)
‘Foi já há alguns anos. Li uma entrevista ao antigo primeiro-ministro britânico Tony Blair, na qual declarava que havia um tema proibido na alta política que, como um tabu, não se podia mencionar salvo em voz baixa nas cimeiras de chefes de Estado ocidentais. E se se tentava sacá-lo à colação, calavam-no educadamente. O assunto ocultado não era outro senão o do suicídio demográfico ocidental, que tanto alarmava já o político britânico convertido posteriormente ao catolicismo. Aquela confissão e denúncia sua pareceu-me muito significativa e, a partir daí, prestei mais atenção a esse fenómeno singular na História como é o da drástica queda da natalidade no nosso tempo. Esta queda supõe um facto extraordinário, já não só no Ocidente mas no mundo inteiro: cada vez mais gente renuncia, voluntária e premeditadamente, a ter filhos. Não só um ou dois descendentes, mas nenhum.’ (p. 11)
‘Voltando a Espanha, as projeções demográficas estabelecem que 40% dos jovens não terão filhos e meta não serão avós.’ (p. 13)
‘Um filho é a antítese do nada; ao nascerem homens e mulheres novos afasta-se de alguma maneira o não-ser […]’ (p. 17)
[…] o nosso século XX mudou profunda e sigilosamente aquele grande pressuposto compartilhado de que o ser – neste caso, um filho – é preferível e mais estimável do que o nada, a ausência de ser. E é este princípio imemoriável que combate e destrói Nietzsche na segunda metade do século XIX. O seu nihilismo tornar-se-á dono do mundo ocidental na centúria seguinte.’ (p. 18)
‘Na troca de sermos donos do nosso destino, e esta é a grande mutação ocorrida, unicamente nos fica, para além dos deveres e fins, uma ‘vocação para o nada’ que supõe o vazio que aparece quando os alicerces que sustentavam a nossa cultura ocidental se tornam ilusórios. Mas a nadificação do mundo e da vida humana atentam, como estamos a comprovar agora, contra o desejo e dever procriador, que ficam portanto em suspenso.’ (p. 18-19)
‘O que esta ideologia comporta não é só o empobrecimento da vida humana, mas também a ameaça da sua própria extinção.’ (p. 19)
‘Qualquer aproximação intelectual ao tema da extinção dos filhos que pretenda ser honrada não pode iludir o grave tema, o punctum dolens da realidade do aborto na nossa cultura atual.’ Da sua magnitude dão conta as cifras certamente calafriantes da sua prática: no nosso país [Espanha] o número de abortos voluntários não desce dos 90000 por ano. Na França, as cifras atingem mais de 222000; no Reino Unido, 215000. Nos Estados Unidos, com mais de 900000, uma em cada gravidez desemboca num aborto voluntário. Na China, desde que começou a política do filho único em 1979, registaram-se mais de 336 milhões de abortos legais, cifra que supera a população atual dos Estados Unidos. É ocioso dizer que se esses seres humanos tivessem chegado a nascer estaríamos perto da taxa de reposição comentada de 2,1 filhos por mulher e, ao menos no nosso país, os nascimentos estariam equilibrados com as mortes, dado que não se reflete no discurso político atual, como comprovava Blair.’ (p. 25-26)
‘Infelizmente, acostumamo-nos ao aborto. As suas vítimas, reduzidas e tratadas como restos, como Resíduos Sólidos Urbanos (RSU), não se veem, ficam no anonimato, sem nome com que figurar em algum registo.’ (p. 26)
‘Em 2008 uma psicóloga e mãe francesa, Corinne Maier, escreveu um livro emblemático que não tardou a ser traduzido em mais de 15 idiomas: No kid. 40 boas razões para não ter filhos[1]. O dito manifesto de «boas razões» contrárias à natalidade deu lugar à expansão, no Ocidente, do movimento anglo-saxónico voluntary childlessness, «sem filhos voluntariamente», capitaneado por mulheres que tinham decidido não ter filhos. Maier destaca como uma poderosa razão para tal decisão a «pegada contaminante de carbono» que supõe a procriação, pegada que no nosso país (Espanha) supõe de três a quatro toneladas de CO2 por ano por pessoa.’ (p. 39)
‘A origem desta conceção podemos datá-la no aparecimento, em 1968, do livro de grande impacto The Population Bomb, do biólogo e divulgador Paul R. Ehrlich, onde se avançava o apocalipse ambiental e, portanto de toda a nossa civilização, se não se reduzissem drasticamente as taxas de fertilidade. Com o êxito estrondoso do livro, o termo «explosão demográfica», carregado de dramatismo nada inocente, passava ao acervo cultural do Ocidente. Pouco depois, o Club de Roma fez suas as teses de Ehrlich no seu famoso relatório de 1972, tão difundido em todos os meios, com a sua afirmação de que a Terra era finita e a população devia reduzir-se drasticamente. […] Mais recentemente, o bem-sucedido aparecimento em 2007 do livro de Alan Weisman O mundo sem nós torna visível na imaginação do leitor as vantagens ambientais, especialmente no ar, fauna e flora que o fim da humanidade constituiria para o planeta.
Ao abrigo desta nova dialética restritiva da nossa fertilidade, surgiu um novo conceito psíquico que dá nome a um forte sentimento associado: o da ecoansiedade entendida como uma inédita forma de ansiedade ligada à inquietação e angústia que nos produz no nosso mundo emocional o desgaste e risco ambiental. […] daqui surgiu nos nossos dias uma lei demográfica fundamental: quanto mais consciente estiver uma pessoa sobre o impacto ambiental, maior será o seu sentimento de culpa pela situação em que se encontra o planeta e de rejeição da humanidade; de tal maneira que para procurar evitar o peso desta culpa – como se fosse um novo pecado original -, não gerará filhos contaminantes em favor da natureza.’ (pp. 40-41)
‘Há uma clara correlação entre o declínio demográfico e o aumento exponencial da aquisição de animais domésticos, preferencialmente cães e gatos. De facto, no nosso país (Espanha) há 6265153 crianças menores de 14 anos, enquanto o número de animais de estimação registados ascende a 13 milhões no ano em que menos nascimentos temos tido desde há 80 anos.’ (p. 53)
‘O desaparecimento dos filhos parece ter ativado um mecanismo de substituição a favor do animal doméstico, que ocupa não só novos espaços públicos mas também que protagoniza a nossa esfera conversacional na rua e nos pequenos grupos.’ (p. 54)
‘A paternidade e maternidade aparecem diante da autonomia do animal de estimação como um dispêndio de grande quantidade de energia exigida dia e noite durante os primeiros anos da criança. Pelo contrário, o animal de companhia na sua suficiência tranquila sem prantos outorga-nos alívio, afeto e descanso. A quantidade de energia que nos exige é mínima em comparação com a do filho. Digamo-lo deste modo, o animal de estimação dá-me enquanto o filho me pede.’ (p. 56)
‘Um dos [efeitos antropológicos], e não menos, é o aumento exponencial do filho único, que comporta a extinção paulatina da figura do irmão e, portanto, da vivência biográfica do que a ‘irmandade’ supõe. […] Em 1975, o número de filhos por mulher, em Espanha, era de 2,8, o que supunha uma média de três descendentes por família. Hoje, o indicador de fecundidade em Espanha é de 1,19, o que implica famílias de filho único, que atingem já uma percentagem de 27,6%.’ (pp. 65-66)
‘O desaparecimento dos filhos comporta outra diminuição que também não se menciona. Sem eles, extingue-se também a figura dos avós, precisamente num momento histórico em que o papel do avô se pode exercer durante muitos anos, mercê do presente da longevidade que amplia as idades do homem.’ (p. 77)
‘[…] a crise atual da figura do pai, que explica em grande medida o atual desaparecimento dos filhos, é uma crise da própria ideia do Deus cristão, ou, para o dizer de outro modo, sinal da sua perda. Mas também é a crise da figura do filho, que já não consegue reconhecer a pré-existência e bondade do pai, muitas vezes ausente, replicação do esquecimento do Filho de Deus encarnado em Jesus Cristo.’ (p.90)
‘Face a tal declive demográfico que põe em questão o futuro dos modelos das empresas, talvez tenha chegado o momento de ampliar a sustentabilidade organizacional, incluindo nos critérios ESG (principalmente nos sociais) um tipo de «contributo para a sustentabilidade populacional» que ajude a corrigir a atual configuração da pirâmide demográfica, a gravidade da sua crise e que fixe metas e objetivos com vista à distante razão de reposição de 2,1 que assegure a sobrevivência. Recordemos a este propósito que o «S» de social do ESG inclui o impacto que uma determinada empresa tem no seu contexto social, na sua comunidade, e determina com os outros critérios a decisões finais dos investidores que se regem, cada vez mais pelo investimento sustentável e responsável (ISR de acordo com sigla em inglês).’ (p. 100)
‘No nosso passeio, deparamo-nos agora com a Bungelosenstrasse: a rua sem tambores. Conta a tradição que foi o último lugar por onde passou o flautista com as crianças a 26 de junho de 1284. Daí que nela não se possa tocar nenhum instrumento, nem cantar ou rir, em memória das crianças roubadas à cidade, como um luto perpétuo, que nos refere as perdas que supõe a extinção das crianças e as suas tristezas associadas. Hoje o Ocidente é uma imensa Bungelosenstrasse, sem rufar de tambores, silenciosa e inerte, que atravessa obscuramente uma das épocas Kali mortas, que nos ensino Ortega na sua conhecida alusão à mitologia hindu.’ (p. 106)
‘[…] não basta o desalento quando se trata da sobrevivência de uma civilização e talvez de toda a espécie humana, por mais que o desafio seja formidável. É necessário para isso inaugurar novos cursos de ação que reposicionem a natalidade no gonzo do Ocidente, que era até agora o eixo do mundo. Algumas ações que poderíamos iniciar bem poderiam começar por ser tomar consciência plena da gravidade da nossa crise demográfica e do que está em jogo, informar-se sobre a sua profundidade e alcance, e falar pelo menos em privado dela. […] Já apontámos no último capítulo possíveis ações que se podem implantar progressivamente no mundo empresarial. A principal, como já dissemos, seria incorporar a natalidade necessária no conjunto de critérios de sustentabilidade organizacional […].’ (pp. 106-107)
‘O desaparecimento progressivo deste discurso nas próprias esferas religiosas nas últimas décadas, sem dúvida contribuiu com o seu silêncio para a grande encruzilhada em que nos encontramos.’ (p. 107-108)
‘Entretanto, continuamos o passeio imaginário pela cidade alemã com o livro de contos dos irmãos Grimm entre mãos. Sentamo-nos junto ao Weser e relemos as suas páginas sobre o flautista e a sua lenda: elas referem-nos que as crianças de Hamelin desapareceram dentro de uma cova na montanha próxima da cidade, Poppenberg, que ao fundo divisamos para lá das muralhas. E acrescentam os autores irmãos de forma premonitória: «Esta cova ainda existe». Fechamos, pensativos, o livrito dos Grimm junto ao velho rio. Talvez tudo consista nessa precisa tarefa: descer à cova da nossa hipermodernidade e lançar cordas para recuperar as crianças perdidas, e repovoar assim o mundo minguante do Ocidente, enquanto prevenimos as consequências do músico inquietante que está a deixar tão desertos os nossos parques infantis, a cidade e nós mesmos.’ (p. 108)
[1] Editado, em português, pela Guerra e Paz, 2008.
**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)
*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'