terça-feira, setembro 23, 2025

Alberto Ferreyra | Mystérios lusitanos [contos - texto e locução] | 16 | Mistério na curva da foz

 

Mystérios lusitanos | A vinte e três (23) de cada mês, habitamos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

(Nos ramos da escrita, repousam, vezes sem conta, as gralhas da distração, ocultas, sob múltiplos disfarces, até que alguém as enxote. Alberto Ferreyra contou com o fino olhar da sua amiga Teresa Correia, detentora do segredo da sua identidade, para afastar ou caçar o grasnar das gralhas. Está-lhe, por isso, muito grato...)

Alberto Ferreyra*



- Deixa-me intrigada que, com dois olhos, um nariz e uma boca, se façam tantos rostos.
- E as relações geométricas entre eles, a cor da pele, as simetrias e assimetrias e outras variáveis? – Atalhou, prontamente, J., desvalorizando a surpresa da irmã. E continuava, como em noite de insónia, a acompanhar cada chegada e cada partida. Aquela tarde de verão nutria de acelerados passageiros a pequena estação em que desembocava a avenida central da cidade. Diante de J. e M., sentados no único banco exterior, uma pequena rotunda homenageava os bombeiros, preenchida de ervas sem flores. A um canto, enrolado sobre si, um homem, cujo odor fétido se sentia ao longe. As barbas cobriam-lhe o peito. Sentia-se o calor que exalava daquela pele. Mas o olhar parecia ausente. Só barbas e o odor… Aquele odor!...
- Bem sei. Mas não deixo de me admirar. Como um ligeiro desvio na maçã do rosto pode fazer de alguém um ‘quase-bonito’ ou, de um outro, uma autêntica Helena de Troia! E quanto se transmite num ligeiro franzir de sobrolho ou no esgar de dor! – Concluiu M., sem alongar a conversa.
O silêncio preencheu os espaços. E o tempo…
Subitamente, o olhar de ambos prendeu-se ao de duas mulheres. Cada um a uma mulher distinta.
Ambas belas. Ambas sofridas, no olhar.
Uma, de olhar negro, sulcos cavados nas redondezas dos olhos, olhava para diante, lenta, sem fixar nada.
- Como diz o povo, parece uma Madalena ainda não reencontrada! – Assim rompeu M. aquele demorado silêncio.
A outra mulher olhava para o mundo com a verdura dos campos. Profunda. Longa. Mas igualmente demorada.
- Credo! Olha-me estes olhos! – J. acotovelou a irmã, que, de imediato, recolheu o braço, em ligeiro movimento de dor. Deslocou o seu olhar da mulher de olhos negros para a que, agora, lhe apontava o irmão.
- Mas tanto sofrimento naquela beleza! – Rematou.
O caminhar daquelas duas mulheres cruzou-se frente ao banco onde estavam os dois irmãos, sem que se tenham sabido contemporâneas. Seguiram o seu rumo, distantes uma da outra, a uma distância que só no olhar daqueles irmãos se anulou.
Não mais se viram.
Mas não mais deixaram de ser vistas, no olhar de J. e M.
… e daquele triste e fétido homem, sentado no canto da estação que se ergueu de um salto, com uma energia que surpreendeu os irmãos. Sentou-se, junto deles.
- Admiram-se de tantos rostos se fazerem com tão pouco? Ah, quantos rostos se fazem com o mesmo rosto! Quantos rostos já tive eu próprio! E que rosto vedes, agora?
A pergunta não parecia mais do que retórica, mas M. e J. ficaram, por momentos, incomodados, como que surpreendidos pela urgência de lhe dar uma resposta.
- Bem… Quer mesmo saber? – Ousou dizer M.
O homem não parecia, porém, interessado em ouvir. Fechou os olhos, como quem busca, nas pálpebras, as letras de um discurso, e avançou.
- Conheço estas duas mulheres de as ver e de lhes reconhecer a história pelo olhar. Ambas mulheres amadas, desejadas e a quem um dia o amor tornou mães.
J. e M. estavam inquietos. Aquela conversa parecia emergir do nada. Se o homem vinha falar de olhares, era porque tinha estado atento à conversa.
Recordaram, rapidamente, todo o conteúdo dos seus diálogos. A ver se alguma coisa os poderia comprometer.
E aquele odor! Incomodava e quase tornava impossível acompanhar, com concentração, as palavras. Pareciam flutuar sobre lixo.
Entredentes, M. tartamudeou:
- Mano, mano, este homem será de confiança? Sabes quem é?
- Lembro-me de o ver sair da casa que dizes ser dos megapixéis, a casa de azulejos pequenos de cores diversas que parece ser uma foto de má qualidade quando ampliada.
- Bem me lembro. Mas mais parece um sem-abrigo…
O homem deteve o seu discurso, esbugalhou os olhos e fixou-os nos irmãos.
Um frio gélido, indiferente ao calor daquela tarde, percorreu cada osso e músculo dos seus corpos. Decidiram-se, num assentimento tácito, não mais o interromper até que considerasse chegada a hora de recolocar o selo sobre o pergaminho do seu discurso.
O homem voltou a fechar os olhos.
- Aqueles negros olhos são de uma mãe que do seu ventre viu nascer um amado filho. Viu-o crescer. Amou-o e viu-o ser amado até que, numa tarde em que boa notícia seria não lhe darem notícias, numa das curvas da foz a morte abrupta por acidente o levou dos seus braços.
- Regressa, todos os dias, mais de vinte anos volvidos, ao sítio de onde o levaram de si para sempre. Ali deposita flores e mantém viva uma luz. Todos os dias. Todos os dias.
O homem deteve-se, por um momento. Assoou-se, comovido, e prosseguiu.
- Por aqui passa, dia após dia. De comboio, desce até à cidade dos canais para daí seguir até às dunas do mar, onde recolhe as flores com que leva beleza ao lugar onde tudo, para ela, se fez feio. Assim, sempre. E para sempre.
As lágrimas desciam, lentas, pelo rosto de M. e J.
O silêncio fez-se demora.
Até que M., limpando o rosto, segredou ao ouvido do homem, cúmplice na dor.
- E a mulher de olhos verdes? De que dores fala aquele olhar?
O homem acomodou-se, no banco, como que finalmente recebido, pousou os cotovelos nos joelhos, repousando o queixo sobre as palmas das mãos. Fixou o olhar na rotunda onde não havia flores. Só plantas, mas nenhuma flor.
- Olhai para o que tendes diante dos vossos olhos. O que vedes?
A pergunta gerou estranheza em J. e M. O homem parecia querer desviar a conversa. Olharam um para o outro…
- Não mais do que uma rotunda e um singelo e justo monumento de homenagem aos bombeiros. – Ousou dizer J.
- Como os rostos falam, também pode ser muito sonoro o silêncio do mundo em que nos fazemos gente. Olhai com mais atenção.
M. arregalou os olhos de espanto, quando lhe pareceu perceber o que aquele homem pretendia mostrar-lhes.
- Vejo plantas que deveriam estar floridas, mas que não o estão.
- Achais que é porque não podem florir? Digo-vos que não. Não florescem porque não as deixam florir. A mulher dos olhos verdes pôde, um dia, florescer. Foi, também ela, amada, até que, num dia que rapidamente se fez noite, uma flor começou a florescer no seu ventre. ‘Desmancha-te!’ – disseram-lhe. ‘Desmancha-te!’. Ainda resistiu, uns dias, mas a malfadada lei que diziam protegê-la por ser mulher, desprotegeu-a de ser mãe. Não conseguiu resistir e foi ao desmancho, como lhe diziam. Nesse dia, a mulher que ela era continuou a sê-lo, mas a mãe que ela fora morreu no filho que as vozes lhe pediam que desmanchasse. Nesse dia, essa mãe morreu com o seu filho. Sonha, todas as noites, nas noites da sua solidão, com o filho que não deixou nascer. Vê-lhe um rosto, sente-lhe o cheiro, ouve-o chorar. Ele assalta-lhe os sonhos como pesadelo e é neste canteiro que ela vem desmanchar a sua perda. Nenhuma flor aqui voltará a brotar enquanto ela não renascer no seu coração.
M. sentiu-se revoltada… Revoltada… Queria gritar contra as vozes – sempre essas vozes, sem rosto nem nome; vozes sem olhar: o vazio! - e contra os que lhe tinham assegurado que, pela força das leis, a estavam a proteger. Mas a frieza das leis deixara-a abandonada à sua solidão. Nunca se perdoara ter impedido aquele filho de ver a luz. Deixara-o, para sempre, na noite, a escuridão da inexistência, o abandono da morte.
M. desejava poder deter-se diante do profundo daquele olhar vencido. Erguê-la da derrota de um dia para, restaurada, a fazer assomar ao olhar de outras mulheres que, como ela, se enrolaram de medo, aturdidas pelas vozes que repetiam, maviosamente: «Vai ao desmancho»! «Livra-te disso!»
Esta revolta cansou-a. Deixou-a perturbada, umbigada no mais profundo de si. Ela mesma, M., sentia que podia ter sido aquele filho rejeitado, recusado, ‘desmanchado’. Tomava conta do seu espírito uma certeza: - Se de um só pode depender-se assim, na fragilidade dos nossos primeiros dias, todos, então, sobrevivemos da nossa própria morte arbitrariamente evitada e vivemos vidas de um luto definitivo.
M. soluçava, à medida que estes pensamentos lhe preenchiam a alma.
Recomposta, exteriorizou uma pergunta com que cruzou o seu olhar com o daquele homem de sujas barbas até ao peito:
- Se sabe tudo isso, porque não diz a estas duas mães que há uma dor comum às duas?
- A dor da perda une-as, mas afasta-as um abismo. Uma era a mãe que queria ser e o fado impediu de continuar a sê-lo; outra foi a mãe que já o sendo desistiu de continuar a sê-lo. Antes de se encontrarem uma com a outra, terão de se encontrar cada uma consigo mesma.
M. adivinhara, nas suas errâncias, esta resposta.
O homem desenrolado de si concluiu:
Mas, - Digo-vos! – há um segredo, neste canteiro. Entre as plantas, cresce uma biloba – era-lhe difícil o nome de ‘ginkgo biloba’! -. Mesmo que sempre a cortem, ela voltará a brotar, vezes sem conta. Até ao dia em que dará fruto, ainda que sem flores.
- Sempre te disse, J., que a graça é o humor do Amor que Deus é. Nos abismos mais estéreis da existência, há sempre lugar para a esperança.
O homem ergueu-se do banco. Deu três passos e voltou-se. Olhou, fixamente, primeiro, o olhar de M., e, depois, o de J. e rematou:
- Muitas são as curvas com que se chega a uma foz. Mas esse não é, ainda, o lugar do fim. Todo o rio leva ao mar.
E subiu, trôpego, pela avenida, deitando um ligeiro olhar sobre o canteiro reverdejante.
M. e J. acompanharam-no, silenciosos, até que o perderam de vista.
Fecharam os olhos.
No ar, um suave perfume de flores!
…e um subtil odor a maresia…


Imagem de Tumisu por Pixabay


*Alberto Ferreyra diz que as suas letras habitam a mente e saem da mão de alguém nascido em terras gaulesas, ainda que afirme, em sussurro, que o seu real nascimento ocorreu nas margens do Antuã, em abril de 2024. É, por isso, um prematuro autor literário, germinado da inspiração que a realidade proporciona quando se tem a companhia, nos livros, de génios como Jorge Luis Borges, Miguel Torga, Gabriel García Marquez ou personagens como Poirot ou Padre Brown.
 
Na sua escrita, cruzam-se o real e o imaginado, o fictício e o histórico, numa embrenhada teia em que o leitor continua a ler, mesmo já depois de fechado o conto. O real continua a fecundar histórias na mente de quem lê Ferreyra. Cada conto, feito dos mistérios desvelados, aproxima o tempo e distancia o espaço, esticando-o até ao eterno e ao infinito. Ao ler Ferreyra, faz-se 'silêncio' ('mystério' alude à etimologia grega da palavra, que remete para o 'fazer silêncio', 'emudecer-se'...) para que possam ecoar as palavras, para que possa desenovelar-se o enredo sucintamente desvelado.
 
J. e M., protagonistas de cada um dos contos, acompanhados, em alguns deles, pelo seu periquito 'branquinho', fazem emergir, do real em que se enredam, histórias que, nascendo da imaginação de Ferreyra, permanecem como realidades possíveis, deixando a suspeita de terem mesmo ocorrido.
Se não foi real, Ferreyra o criará, inspirado numa cosmovisão que tanto deve àquela religião que fez do encarnado a condição fundamental do existir.
 
A vinte e três (23) de cada mês, habitaremos o mundo pelo imaginário de Alberto Ferreyra...

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