sexta-feira, novembro 15, 2024

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

 

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | Parceria com a revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

 

Cerca de duas décadas passaram desde que o rei Ulisses partiu de Ítaca, deixando Telémaco, o filho, ainda pequeno (com uns três anos), e Penélope, a sua ‘nunca-viúva’ fiel, esperançosa do seu (mesmo que tardio, mas nunca inesperado) regresso. Os pretendentes abundam e esperam pela hora em que se acabe de tecer a condição de disponibilidade sempre adiada.

Regresso…

Fizemos este caminho de vinte e quatro passos (tantos quantas as letras do alfabeto grego) sob a inspiração da ideia de ‘regresso’.

Explorámos a ambiguidade de ‘regresso’ – entre o verbo que nos envolve a todos e o substantivo que confina a narrativa à história de um sujeito concreto, neste caso, Ulisses – para que dela pudéssemos retirar elementos de confluência ou divergência entre as influências clássica e cristã, na cultura que inspiramos e expiramos.

Chegámos ao momento de, com Ulisses, fruir (com) a chegada… Muitos são os elementos a guardar deste regresso.

Como observa Maria Helena da Rocha Pereira, a ideia do regresso é relevante, facto observável, imediatamente, na frequência do termo (ou palavras da família) que supera a centena[1] de aparições no texto homérico. Não é despiciendo, também, constatar que, dos vinte e quatro cantos da Odisseia (ou ‘rapsódias’, segundo algumas edições), doze (metade, portanto) tenham por cenário a Ítaca tão pretendida e onde Ulisses já se encontra, mas em que o encobrimento do protagonista que só progressivamente vai sendo desvelado, torna densa e tensa a tarefa da efetiva chegada. Ulisses está em Ítaca, mas vai chegando, pouco a pouco. Só mesmo no último canto se obtém, finalmente, a pretendida paz.

Há algo de universalmente transferível deste ‘regresso’ de Ulisses.

Esta universalidade e caráter simbólico e permanente traz-nos à memória a também universal condição violenta da humanidade, genialmente descrita em breve texto de Jorge Luís Borges:

 “In memoriam J.F.K.

Esta bala é antiga.

Em 1897 disparou-a contra o presidente do Uruguai um rapaz de Montevideu, Arredondo, que passara muito tempo sem ver ninguém para que o soubessem sem cúmplices. Trinta anos antes, o mesmo projéctil matou Lincoln, por obra criminosa ou mágica de um actor que as palavras de Shakespeare tinham convertido em Marco Bruto, assassino de César. Em meados do século XVII a vingança serviu-se dela para dar morte a Gustavo Adolfo da Suécia, a meio da pública hecatombe de uma batalha.

Antes, a bala foi outras coisas, porque a transmigração pitagórica não é apenas própria dos homens. Foi o cordão de seda que no Oriente recebem os vizires, foi a fuzilaria e as baionetas que destroçaram os defensores do Álamo, foi o punhal triangular que ceifou o colo de uma rainha, foi os obscuros cravos que atravessaram a carne do Redentor e o lenho da Cruz, foi veneno que o chefe cartaginês guardava num anel de ferro, foi a serena taça que Sócrates bebeu num entardecer.

No dealbar do tempo foi a pedra que Caim lançou contra Abel e será muitas coisas que hoje nem sequer imaginamos e que poderão acabar com os homens e com o seu prodigioso e frágil destino.”[2]

No regresso de Ulisses, está essa ‘bala antiga’, de sempre. A ‘bala’ que é, aqui, a condição de ser indigente, sedento de uma água tantas vezes substituída e tão raras vezes autenticamente descoberta.

No regresso de Ulisses, habita o sonho do Éden, essa marca profunda e que inunda, presente, como condição escondida e tão indecifrável, no desejo de Deus manifesto sob tantos disfarces.

O ‘nóstos’, o regresso demorado de Ulisses, mora no coração humano como sinal indelével da origem, múltiplas vezes negada ou equivocadamente identificada. De tão inundante, chega a expressar-se como ânsia inapagável de regresso, ‘nostalgia’ de uma morada original a que se pretende voltar.

No primeiro passo de cada um, morava já o último, como esperança regenerada, sonho de um paraíso que se opõe ao ditame que repousa à entrada do Inferno de Dante: ‘Abandonai toda a esperança os que aqui entrais’.

Mas, como com Ulisses, o regresso faz-se encoberto, irreconhecível e a exigir duro combate sobre pretendentes aguerridos.

Esperar-nos-á, porém, Penélope, fiel e, com ela, o futuro sempre aberto, densamente simbolizado no filho que cresceu e se torna robusto.

O regresso, tornado desejo de chegada, expressa-se como sede profunda. Sede que alguns homens do século XIX e seus herdeiros (Feuerbach, Marx, Nietzsche, etc.) interpretaram, de forma equívoca, como sendo a responsável pela realidade desejada. Do equívoco partiram em direção à negação de tudo o que dizia respeito à fonte geradora da sede. Daí à perseguição por consideração de que a religião, que nos religa à fonte original (e nos faz reler o mundo com o novo olhar nascido dessa religação), não mais era do que um ópio ou uma alienação, foram curtos passos.

Não é a sede, porém, que origina a água, mas a ausência da água a ‘fonte’ da sede.

Contrariamente ao que presumiram os homens desistentes dos últimos dois séculos, o sonho que habita o homem e que o Cristianismo nomeia, à luz da Revelação, ‘abarca tanto o esperado como o esperar’[3]. No esperar, na sede ainda sem nome, aninha-se o prometido, o esperado, não nascido do esperar, mas nele feito emergência, um incontrolado emergir.

Bem o sabem os homens que leram o Homem como poucos: ‘o nosso coração vive inquieto, enquanto não repousa em Vós [Deus Criador]’[4].

A ‘bala’ da violência é uma só. O regresso a Ítaca um só, também.

Ulisses e Adão encontram-se no partir e no voltar, como seres de um regresso ao eterno. O tempo caminha para a paz definitiva e autêntica felicidade aqui só analógica e provisoriamente visitadas.

Ítaca é, na história de Ulisses, imagem do Éden por que ansiamos e a que esperamos regressar: a mão de Deus em que fomos desejados perfeitos e a cuja perfeição retornaremos.


[1] Cfr. Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos sobre a Grécia Antiga: Artigos, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p.155.

[2] Jorge Luís Borges, Obras Completas, II: 1952-1972, S/L, Editorial Teorema, 1998, p. 229.

[3] Jürgen Moltmann, Teología de la esperanza, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1989, p. 20.

[4] Santo Agostinho, Confissões, Porto, Editorial A.I., 198411, n.º1, p. 27.



quinta-feira, novembro 07, 2024

Sabes, leitor... | 11 | Marca de água do livro de Fabrice Hadjadj, 'A profundidade dos sexos: para uma mística da carne'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Fabrice Hadjadj, A profundidade dos sexos: para uma mística da carne, Prior Velho, Paulinas Editora, 2010.

Fabrice Hadjadj é um pensador difícil de imitar e ainda mais difícil de sintetizar. Lemo-lo e percebemos que estamos diante de um texto de Hadjadj, mas não é fácil transmitir a quem nunca o leu a unicidade do seu modo de pensar e de transmitir o que pensa. A sua escrita faz lembrar, pelo recurso aos paradoxos e à surpresa do humor, o igualmente inimitável G. K. Chesterton.

Acedi ao mundo de Hadjadj pela via de uma sua conferência no Porto, em 2015, no âmbito do II Congresso Nacional de Leigos, em que refletiu sobre ‘recolocar o Homem no centro: desafio antropológico’, iniciando a sua intervenção de modo paradoxal, ao recordar que este recentrar no Homem tem de acontecer no momento em que corresponde ao desafio do Papa Francisco de ir para as periferias. Periferias e ‘recentrar’ parecem não encaixar… Mas é esta a marca de Hadjadj: o paradoxo que obriga a pensar e nos ‘põe de orelhas guiadas’, à espera do que aí vem.

Habituado a este humor hadjadjiano, mandei vir de Espanha, em 2018, um dos seus livros mais teológicos [F. Hadjadj é filósofo, mas, em virtude do seu percurso de convertido tardio, depois de um judaísmo ‘não praticante’ e um ateísmo militante, não se priva de reflexões teológicas sempre bem fundamentadas e intencionalmente desconcertantes…]. O título pareceu-me suspeito. Desconfiei de que a tradução espanhola teria vincado dedo editorial. Na edição de editora solene, o título do livro era ‘Ressurreição: experiência de vida em Cristo ressuscitado’.

Desconfiado, fui ver o título original. Não podia ser mais hadjadjiano: ‘Ressurreição: modo de utilização’.

Isto é Hadjadj!...

Quem é que se iria lembrar de refletir sobre coisa tão séria como a ressurreição como quem fala de um frigorífico? Mas, com esta forma desconcertante, Hadjadj dá-nos logo a entender ao que vai, antes mesmo de abrirmos o livro: teremos de conviver com a experiência da ressurreição como quem se prepara para abrir a porta de um frigorífico: tem de fazer parte do nosso quotidiano, para que não seja algo estranho e opaco. E, já agora, encontrando nela a frescura para manter vivo o que perderia vigor e robustez…

Para os que se sentirem fascinados ou interpelados a descobrir Hadjadj, deixo uma terceira sugestão de leitura, também em tradução portuguesa: a peça de teatro ‘Job ou a tortura pelos amigos’, que revisita, em modo de teatro contemporâneo, a dramática experiência do sofredor bíblico. Com a marca de Hadjadj, é uma peça a levar à vida do palco, para que se possa beneficiar da mordacidade e ousadia hadjadjiana em modo de drama.

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

O livro que, agora, apresento ao leitor, vive desta mesma energia e ousadia. Como não ver o paradoxo que dimana do contraste entre o título e o subtítulo? Há uma certa malícia em ‘a profundidade dos sexos’ que contrasta com a elevação de ‘para uma mística da carne’.

Não é, por isso, surpreendente que Jean Sévillia, no seu monumental ‘La France Catholique’, o inclua, como ‘judeu de nome árabe e confissão católica’, num capítulo dedicado à ideia de que ‘muitos grandes filósofos franceses são católicos’, e o identifique como um dos que fazem parte da vaga de continuadores de nomes maiores da história contemporânea da filosofia e da teologia, como Rémi Brague, René Girard, Jean-Luc Marion, etc.

A ironia com que escreve parece habitar a história do próprio Hadjadj cuja narrativa de conversão é contada pelo Cardeal Tolentino de Mendonça no prefácio com que abre a edição que tenho em mãos. Desafio a leitor a lê-la. Perceberá o leitor que um escritor não se faz humorado sem deter o seu olhar de humor sobre a realidade em que germina.

O humor de Hadjadj já não é, porém, o do ‘riso de Voltaire’, que goza sem se comprometer. É o riso desbragado de quem percebe que, nas ironias da vida e nas ironias sobre a vida se descobre o humor do sentido que Deus deposita na existência.

Hadjadj deve ser lido porque revela que, contrariando os inúmeros preconceitos com que o catolicismo é tantas vezes brindado (inclusive o de que é preconceituoso quando, se haveria alguma coisa de que o poderiam acusar, era de superabundância de conceitos…), o catolicismo é, afinal, uma enorme irreverência contra as inundantes reverências do nosso tempo.

Sim, este é um livro irreverente e em que o mais puro ‘dogma’ sobre como deverá ler-se a sexualidade humana, em registo católico, é dito de forma muito pouco dogmática.

É essa a genialidade de Hadjadj: a de dizer levar o leitor a refletir sobre coisas muito, muito sérias, mas com um humor que se sustém ativo, da primeira á última página.

Logo na introdução, Hadjadj reconhece que ‘falar de profundidade, assim de imediato, leva a pensar em produtos domésticos. Explicam-nos que este detergente «limpa superfícies em profundidade». E isso alimenta o sonho. A dona de casa não suspeitava que o seu pavimento fosse um tal abismo. O técnico de superfície sente-se quase igual ao explorador em batíscafo. O termo é, pois, muito publicitário. Foi de propósito que o escolhi: A profundidade dos sexos – achei que isto vendia. Mas os leitores mais atinados, aqueles que já não caem nessa, logo se aperceberam da artimanha.’ (p. 15)

Ficamos certos de que a surpresa nos espera ao virar da página, se não for antes mesmo de o fazermos, ainda no rodapé da que estamos prestes a findar.

E essa surpresa pode dar-se, bem certo, como tenho vindo a dizer, no modo como diz o que nos quer dizer, mas também pelo que diz.

Hadjadj é muito criativo, original e consegue encontrar, neste livro, formas singulares de dizer o que sempre reconhecemos e tomámos como o correto e sensato.

E, nestes tempos propensos a cancelamentos e novas censuras, Hadjadj não teme que o cancelem. Pensa livremente, olhando, com assombro, para a realidade, como ela se apresenta ao olhar inteligente.

É com esta agudeza que enfrenta matérias como a ambiguidade da ideia de amor, o eugenismo, a eutanásia, o aborto, a homossexualidade, o individualismo, os novos totalitarismos, a teoria de género, etc., opondo-se quer aos angelismos, quer às sacralizações da sexualidade. Hadjadj olha para o Homem e vê-o sempre imperfeito e perfetível, uma unidade indissolúvel de alma-corpo, e, por isso, incompleto e só na dualidade totalmente humano. As dualidades, em Hadjadj, não são sinónimas de dualismo que, aliás, supera, com mestria. As dualidades são marca de tensão da unidade que quer romper-se, mas não pode perder-se…

Ao definir a sua posição, Hadjadj enfrenta as questões com que, habitualmente, são ‘desmanchadas’ as posições natalistas ou defensoras de que existe um nexo intrínseco entre a sexualidade humana e a sua abertura à vida. Hadjadj não recusa enfrentar as teorias demográficas com que se esconde o malthusianismo que recusa a natalidade por em perigo estar o mundo. E fá-lo de um modo de facto único: não diz tudo; deixa subentendidos que o leitor calcorreia, concluindo por si mesmo. É, por isso, um livro em que, havendo uma tese muito clara, uma ideia de sexualidade que é mordaz para com a teoria de género e para com uma conceção de sexualidade que condescende com a ‘cerebralização’ do sexo, a abordagem é inteligente e intrigante. Somos levados a fazer o caminho. O autor não o faz por nós… E isso também é Hadjadj.

 

Na mesma página que o autor (citações)

‘O método [do trocadilho] é criticável. […] É uma promessa de ligeireza que depressa vira falta de graça. Mas é também busca de espírito na matéria sonora das palavras. Eis porque os autores bíblicos a ele recorrem com frequência (as nossas traduções impedem que de tal nos demos conta): mostram que o Verbo não despreza a carne da língua. O seu procedimento aproxima-se assim do que será a minha tese principal: a matéria do homem está atulhada de espírito: e o seu sexo, longe de ser um resquício animalesco, é uma espécie de exorbitante relicário.’ (p. 14)

 

‘Meditar sobre a profundidade dos sexos é também poupar-se à tarefa ingrata de ter de explicitar a sua diferença (e a sua eventual confusão). Que é que caracteriza o temperamento da mulher por oposição ao do homem? Provém ela de Vénus e ele de Marte? Será verdade que ela não lê tão bem os mapas das estradas? Deseja ele o acto físico e brutal, ao passo que ela busca, acima de tudo, a ternura que protege? Perante estas questões, confesso de bom grado a minha preguiça. É que a minha mulher lê os mapas das estradas muito melhor do que eu. Além disso, sou do signo Virgem. Neste registo psicologizante, há apenas uma coisa que tenho por garantida: os homens abotoam a sua roupa à direita, enquanto as mulheres o fazem à esquerda. A não ser que seja o contrário.

Interessa-me, pois, menos a diferença dos sexos do que a sua ordenação recíproca. O homem torna-se tanto mais viril quanto mais se vira para a mulher, e a mulher tanto mais feminina quanto mais se volta para o homem.’ (p. 16)

 

‘Encontrar Deus, indo para o mosteiro, é uma coisa bastante óbvia. Mas encontrar Deus, indo ter com a Micheline, que acabou mesmo agora de esturrar o seu guisado de vitela, eis algo que permanece assaz inexplicável.’ (p. 18)

 

‘Esta mística da carne será, apesar de tudo, uma moral, mas uma moral trocista, zombadora, numa palavra, dramática.’ (p. 19)

 

‘O anarquista coerente começa por ultrapassar os limites e acaba a lançar bombas.’ (p. 22)

 

‘A sexualidade remonta ao século XIX. A prova está no dicionário: antes, a palavra não existia. Devido à contaminação desta «sexualidade», que reveste uma noção muito vaga, é que o sexo, agora identificado com ela, se tornou indefinido.

[…]

E hoje? Os pulmões continuam a servir para respirar. Ao estômago ninguém contesta a sua função digestiva. Mas o sexo? Asno seria quem respondesse que a sua finalidade é a procriação. E as suas outras funções também não se aguentam. Poderá dizer-se que ele se reduz à relação entre homem e mulher? Será mesmo possível crer que ele implica sobretudo a carne? Deverá então concluir-se que existe apenas para provocar em nós perguntas? Tudo isso não passa de hipóteses. O sexo é, sem dúvida, usado como um órgão, como uma arma, como uma cruz. Mas, sobretudo, desapareceu…’ (p. 30)

 

‘Com o advento da psicologia, a sexualidade já não se encontra, primeiro, nos sexos, mas no cérebro, ou no inconsciente, ou no livre arbítrio, ou na língua, ou nas convenções sociais. Deixámos de nos entender.’ (p. 32)

 

‘Discutimos tão-só o sexo dos anjos - sem carne nem gravidez, sem história nem privacidade, para lá do feminino e do masculino, longe do casamento e da circuncisão (um espírito puro não tem prepúcio). Mas os anjos têm ainda demasiada consistência. E, ademais, já não acreditamos neles. Comparemos antes o nosso sexo `famosa faca de Lichtenberg, «sem lâmina, e já sem cabo» - uma faca que não corta nada.’ (p. 37)

 

‘O que me agrada no corpo, disso me apercebo de repente, é a sua unidade vibrante, a sua presença indecomponível e, por último – digamo-lo sem medo -, a alma que transpira em todo o seu ser.’ (p. 38)

 

‘A mulher é o único ser humano que em si pode trazer outro. O seu corpo é habitável.’ (p. 128)

 

‘A diferença dos sexos é, de qualquer modo, tão profunda que as sexualidades que pensam ter-se dela libertado se limitam a reproduzi-los por interiorização ou por redistribuição dos papéis.’ (p. 143)

 

‘Pode compreender-se o choque de Pasolini, em 1975: «Fico traumatizado com a legislação sobre o aborto porque, juntamente com outros, vejo nela uma legalização do homicídio. Nos meus sonhos e no meu comportamento quotidiano – eis algo de comum a todos os homens – vivo a minha vida pré-natal, a minha feliz imersão nas águas maternais: sei que aí eu estava vivo». (p. 158)

 

‘Um útero circundou todos os heróis da história. Também todos os imbecis (entre os quais me incluo).’ (p. 159)

‘O psicologismo, com as suas cataplasmas contra o baby blues, esforça-se por esconder esta ocorrência. Promove, por gentileza, uma degradação universal: apartar o homem da tragédia para o emboscar no romance burguês – que ele sonhe encharcado em água de rosas. E desemboca, inevitavelmente, na negação do real. O grande perigo é, para ele, o traumatismo infantil; por isso, feitas as contas, é melhor suprimir o filho na altura em que ainda é puro, antes de ser pervertido ou esmagado diante dos nossos olhos. O paradoxo da nossa época encontra aqui a sua explicação: nunca a criança foi tão protegida e nunca houve tantos abortos. O seu sentimentalismo é a causa da sua rejeição do nascituro. A eliminação é, de facto, a mais segura e eficaz proteção dos menores.’ (p. 177)

 

‘[…] a coisa mais absurda nesta aventura [refere-se à história de Moisés] é que o seu rapazinho é adoptado pela filha do Faraó, ou seja, do Führer. E esta dá-lhe o nome de Moisés: «retirado das águas», são é salvo da inundação e extermínio. O prometido à morte certa tornar-se-á o libertador do seu povo. O mundo mortífero e senil renovar-se-á graças a este petiz, que passou pelas malhas. Se a sua mãe, para lhe poupar o horror, se não atrevesse a tê-lo, o horror apenas poderia perdurar.’ (p. 179)

 

‘É muito duro ser um filho desejado. A tua existência fica toda suspensa pela decisão dos pais. Os seus desejos são ordens. Se te permites qualquer desvio, cautela; chovem as lambadas, suprimem-se as sobremesas, culpabilizar-te-ão até ao tutano as recriminações lacrimosas, e não só até ao tutano, mas até à medula, até aos gâmetas que tem deram para viver.’ (p. 183)

 

‘Tenho boas razões para pensar que os infanticídios e os parricídios hão-de aumentar com o eugenismo.’ (p. 184)

 

‘[…] se for desejável outorgar ao projeto parental todas as garantias, eu recomendo ao legislador o alargamento desse prazo muito para além das doze semanas, digamos, até aos quarenta anos.’ (p. 185)

 

‘Um mundo perfeito, onde os petizes aparecessem sem turbulência, conformes às instruções do fabricante, seria pior do que um inverno nuclear. As crianças estariam congeladas desde o núcleo da sua primeira célula. Nasceriam velhas, com todos os nossos rancores e todos os nossos cuidados. A sua primavera já conseguiria perfurar a crosta das nossas preocupações. Teríamos perdido, para sempre, o espírito de infância… É-nos forçoso, então, chegar à conclusão que proibiria o fechar-se e o pronunciar-se em vez de outro: em vez de um super-homem, conforme aos estudos de mercado do homem velho, vale mais uma pequena Flor, polichinelo que salta da caixa, deficiente mental, sem dúvida, dolorosamente incapaz de entrar na maturidade consciente, mas mais apta para nos arrancar ao nosso triste horizonte produtivista, mais dotada para nos levar a rememorar a surpresa de ser e a alegria de amar.’ (p. 187-188)

 

‘Aquele que, há pouco, cantava tão alto os órgãos internos cai num subjetivismo descarnado. As determinações que a vinda ao mundo impõe, a partir do sexo, afiguram-se-lhe oprimentes. Em vez de apoio, os vínculos do corpo seriam, para ele, uma tumba. O pequeno Sartre imagina arrojar-se ao mundo a partir do seu próprio pensamento, fora das particularidades sombrias de uma conceção física, das suas escandalosas desigualdades, a fim de ser à medida do universo, ou seja, do universal. Ter nascido de Anne-Marie Schweitzer e de Jean-Baptiste Sartre não deve contar para nada. O que importa, a partir desta copulação fortuita, é nascer a cada instante das suas próprias escolhas, ex nihilo. A existência dimana, agora, não da carne, mas do nada.’ (p. 194)

 

‘O casamento é, ao mesmo tempo, um contrato e mais do que um contrato. Tendo por fim excessivo a comunhão das pessoas e o nascimento dos filhos, apresenta a estranha propriedade de não poder ser rompido sem uma íntima violência, mesmo quando as duas partes querem separar-se em termos amigáveis. A comunhão pressuposta pelo «Amo-te» interdiz toda a ruptura: o seu termo é o outro, e não esta ou aquela sua qualidade. Se eu tivesse dito apenas: «Amo o teu traseiro» ou «Amo o teu êxito», poderia desembaraçar-me, logo que o meu cônjuge depare com o fracasso ou as suas nádegas se tornem frouxas e moles. Mas eu disse: «Amo-te», ou seja, a tua pessoa na sua totalidade sucessiva, o que ela é hoje, mas também o que ela será amanhã e que ainda não conheço. Não é como num contrato com uma empresa, que posso rescindir, se eu estiver dececionado ou se o objetivo foi atingido.

Por outro lado, esta união amadurece um fruto natural. O filho não é apenas um ato de papel. Não é rasgável. Mesmo se eu já não quisesse estar com a sua mãe, sou forçado a ver os dois, a sua mãe e eu, na sua figura. Este estranho contrato produz assim uma realidade que excede as liberdades que o estabeleceram, de tal modo que elas não podem desfazê-lo, tal como o concluíram. O casamento é, ao mesmo tempo, natural e livre: é uma escolha sobre o fundo natural da ordenação recíproca dos sexos; é uma naturalização da liberdade mediante a realização desta escolha na criança.’ (p. 198)

 

‘[…] na década de noventa, só na região do Sudeste asiático, o tráfico em vista do proxenetismo fez três vezes mais deportados do que o comércio de escravos africanos, durante vários séculos.’ (p. 210)

 

‘«O sujeito ideal do regime totalitário não é o nazi ou o comunista convicto, mas o homem para quem a distinção entre facto e ficção (ou seja, a realidade da experiência) e a distinção entre o verdadeiro e o falso (isto é, as regras do pensamento) já não existem».’ [citando Hannah Arendt] (p. 217)

 

‘O individualismo é, assim, a base do totalitarismo, e não o seu inimigo principal, como tantas vezes se pensa. Requerem-se seres isolados, «desapontados», sem fortes vínculos familiares ou religiosos, portando dispostos a fundir-se numa massa: «O isolamento é pré-totalitário. Os homens isolados não têm, por definição, qualquer poder. […] Estar desenraizado pode ser a condição preliminar da superfluidade».’ [citando Hannah Arendt] (p. 217)

 

‘No romance 1984, é normal vaporizar os avós. Todo o avozinho, enquanto tal, resiste. Constitui uma autoridade histórica e memorial, que ameaça o monopólio da Doutrina. Tenta opor-lhe as abordagens de uma sabedoria de experiência. A experiência, que arcaísmo! A ideologia possui o Saber absoluto. Tem na sua mão a lei da Natureza ou da História. É a Providência do mundo. Por esta razão, cabe-lhe antecipar as eliminações que, de qualquer maneira, o curso previsível das coisas levaria a cabo. Por gentileza; por eutanasismo, por assim dizer. Não pode, de facto, apadrinhar nenhum crime, mas tão-só «uma morte muito doce».’ (p. 217)

 

‘O facto de eu ser macho, e portanto destinado à fêmea, recorda-me que não sou, por mim mesmo, o Homem integral, e que só me torno tal ao virar-me para o outro sexo em vista de uma fecundidade comum. […] Descubro, atónito, que o meu órgão masculino é feito para órgão feminino, de modo que me pertence menos a mim do que a esta mulher: que seria uma chave sem a fechadura? E vejo também que os nossos sexos juntos existem para que o seu beijo floresça numa terceira pessoa: que seria da chave e da fechadura sem uma porta que se abre? Esta coisa da carne revela-se uma dupla desapropriação e empenha-me num terna comunhão. O meu sexo só se encontra a si mesmo no outro. E os dois, ao encontrarem-se, fazem brotar de si ainda outro (e em corpo).’ (p. 258 e 260)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)


domingo, outubro 27, 2024

Cidadania e desenvolvimento - O explícito e o implícito… Paremos para pensar.


 

A discussão sobre a disciplina (e a estratégia) de ‘cidadania e desenvolvimento’ regressou à ribalta. A animosidade com que a matéria tem sido abordada evidencia muitos elementos implícitos e muitos pressupostos, pelo que se exige centrar a atenção no que, verdadeiramente, está em causa.

Para contribuir para esta reflexão, proponho-me iniciar com uma parábola.

 

Uma parábola…

Imagine-se uma escola em que é transmitida, aos professores, a informação de que há uma ou duas crianças de anos iniciais cujos pais se descobriu, recentemente, que não serão quem elas pensaram sempre ser e que essas crianças estão em vias de o descobrir, prevendo-se que seja para breve.

É guardada reserva sobre esta matéria, não sendo conhecida a identidade das crianças com quem tal vai ocorrer.

A escola começa a organizar-se para encontrar formas de minorar os efeitos dessa ‘demolidora’ informação nas respetivas crianças.

Há, porém, um professor que decide criar uma estratégia mais ampla de abordagem.

Propõe-se – diz – diminuir o efeito daquela dolorosa mensagem.

Começa a criar dinâmicas com a sua turma através das quais suscita dúvidas em todas as crianças sobre se os seus pais serão, efetivamente, quem elas pensam ser. Dinâmica após dinâmica, texto após texto, dramatização após dramatização, as dúvidas vão-se avolumando em todas as crianças, ‘garantindo’, assim, - diz aquele professor – que todas perceberão o que o seu ‘ainda desconhecido’ colega irá passar. Com que custo, porém? – Perguntamos nós.

Qual o efeito de tal estratégia? É a estratégia adequada para o problema a enfrentar?

É a única forma de se ser compassivo para com quem vive uma situação dolorosa?

 

A parábola, aplicada à ‘cidadania e desenvolvimento’

Feitas as devidas salvaguardas, a disciplina de ‘cidadania e desenvolvimento’ que está estreitamente associada à ‘estratégia nacional de educação para a cidadania‘ parte do mesmo equívoco do professor da nossa parábola.

Vejamos porquê.

A estratégia nacional de educação para a cidadania define três grupos de domínios: ‘o primeiro, obrigatório para todos os níveis e ciclos de escolaridade (porque se trata de áreas transversais e longitudinais), o segundo, pelo menos em dois ciclos do ensino básico, o terceiro com aplicação opcional em qualquer ano de escolaridade’ (ver https://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Projetos_Curriculares/Aprendizagens_Essenciais/estrategia_cidadania_original.pdf).

 

1.º Grupo:

Direitos Humanos (civis e políticos, económicos, sociais e culturais e de solidariedade);

Igualdade de Género;

Interculturalidade (diversidade cultural e religiosa);

Desenvolvimento Sustentável;

Educação Ambiental;

Saúde (promoção da saúde, saúde pública, alimentação, exercício físico).

2.º Grupo:

Sexualidade (diversidade, direitos, saúde sexual e reprodutiva);

Media;

Instituições e participação democrática.

Literacia financeira e educação para o consumo;

Segurança rodoviária;

Risco.

3.º Grupo:

Empreendedorismo (na suas vertentes económica e social);

Mundo do Trabalho;

Segurança, Defesa e Paz;

Bem-estar animal;

Voluntariado.

Outras (de acordo com as necessidades de educação para a cidadania diagnosticadas pela escola e que se enquadre no conceito de EC proposto pelo Grupo).

 

Uma leitura ‘inocente’ destes domínios poderá não compreender as dúvidas dos que a criticam.

Terá de se ouvir, por um lado, a palavra dos decisores políticos que, por exemplo, em contexto de marchas do orgulho gay, em Lisboa, afirmaram, antes de esta estratégia estar definida, que haveria de se fazer chegar às escolas o que ali se celebrava (declarações proferidas pela então secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, Catarina Marcelino, em junho de 2017: “não chega só mudar a lei, é necessário ter educação para a cidadania nas escolas” – ver aqui: https://dezanove.pt/catarina-marcelino-hoje-marchei-com-1093201).

A esta primeira constatação, que evidencia a intenção, terá de se juntar a leitura mais fina dos documentos.

Um olhar já com a inocência mais burilada constatará que a estratégia define domínios como obrigatórios em todos os anos e ciclos, os do primeiro grupo, que, incluindo temas com que todos concordarão, enuncia a ‘igualdade de género’ que, na interpretação de muitos, será o esforço de aproximação de direitos entre homens e mulheres. Seria ótimo!

Mas os ‘guias de educação género e cidadania’, a começar no pré-escolar (ver aqui: https://www.cig.gov.pt/wp-content/uploads/2015/10/398_15_Guiao_Pre_escolar.pdf) não deixam margem para dúvida.

Parece ter sido o professor da nossa parábola a definir a estratégia. Ele não quer, apenas, que se suscite solidariedade e ‘compaixão’ para com quem se encontra em dúvidas sobre a sua condição sexuada. Quer que todos as tenham por igual. Quer gerar a confusão em todos para que, assim, a compaixão de todos seja por solidariedade na desgraça…

Veja-se o que se afirma, na página 12. Cito sem cortes…

«No sentido de clarificar a ideia de que as diferenças observadas entre os sexos não se justificam simplesmente pela pertença da pessoa a uma categoria biológica presente à nascença, mas que resultam sobretudo de construções culturais, Ann Oakley propôs, em 1972, que se efetuasse a distinção entre os termos sexo e género, distinção essa que passou a servir de referência para as Ciências Sociais. Em seu entender, o sexo com que nascemos diz respeito às características anatómicas e fisiológicas que legitimam a diferenciação, em termos biológicos, entre masculino e feminino. Por seu turno, o género que desenvolvemos envolve os atributos psicológicos e as aquisições culturais que o homem e a mulher vão incorporando, ao longo do processo de formação da sua identidade, e que tendem a estar associados aos conceitos de masculinidade e de feminilidade. Assim, o termo sexo pertence ao domínio da biologia e o conceito de género inscreve-se no domínio da cultura e remete para a construção de significados sociais.»

Destaco «os sexos não se justificam simplesmente pela pertença da pessoa a uma categoria biológica presente à nascença, mas que resultam sobretudo de construções culturais».

Fica claro que os géneros serão todos os que forem pensáveis e não os que, biologicamente, forem observáveis e que são a base da organização da sociedade atual (progressivamente a ser revolucionariamente transformada…).

 

A obsessão dos ‘estereótipos’ e a contradição na própria estratégia

Somado a este pressuposto teórico, que dissolve qualquer ligação entre biologia e género, acrescente-se toda a estratégia marxista da luta contra os estereótipos, no pressuposto de que todo o estereótipo é necessariamente errado, devendo ser erradicado.

Como se a escola não fosse, ela mesma, um lugar carregado de estereótipos (os nerds, os góticos, os dreds, etc.) que, curiosamente, não são enfrentados nesta disciplina, nem abordados pela estratégia nacional. Quantos custos resultam, por exemplo, do estereótipo de que estudar é para ‘ratos de biblioteca’! (Não deveria reservar-se-lhe destacado lugar na referida estratégia?)

Acrescente-se a estas já suficientemente esclarecedoras constatações que é significativo verificar esta incidência obsessiva nos estereótipos de género quando não são enunciados outros que, se a intenção era combater todos os estereótipos, deveriam ser integrados.

Por exemplo, sendo Portugal um país com crise demográfica, quantos estereótipos recaem, com custos, sobre as famílias numerosas (Coitados! Irresponsáveis!); ou sobre os católicos que são a maioria, nas escolas portuguesas (são todos uns pedófilos ou inquisidores!) ou sobre os empresários (só pensam no lucro!) ou sobre os que professam uma religião (padecem de uma patologia e infantilidade!) … ou…

Quer se queira, quer não, os estereótipos fazem parte da nossa condição de seres gregários que, muitas vezes, para se entenderem sem necessitarem de explicitar tudo, têm agendas subentendidas.

Esta obsessão marxista com os estereótipos, para mais apenas de um tipo, gera uma atitude moralista de censura permanente que retira a naturalidade na relação e ficciona todas as dimensões da vida.

E se isto não é ideologia!...

É a sedução de construir um ‘Homem novo’ sem vínculo à realidade, à sua corporeidade, o que, curiosamente, contradiz o documento estruturante da escolaridade obrigatória – o PASEO (Perfil do Aluno – seguramente, também é das alunas! - à saída da escolaridade obrigatória – ver aqui: https://dge.mec.pt/sites/default/files/Curriculo/Projeto_Autonomia_e_Flexibilidade/perfil_dos_alunos.pdf) – que inclui, entre as suas áreas de competências, ‘a consciência e domínio do corpo’, em que se prevê que uma das competências seja a de «ter consciência de si próprios a nível emocional, cognitivo, psicossocial, estético e moral por forma a estabelecer consigo próprios e com os outros uma relação harmoniosa e salutar.»

Alguém que recusa o seu corpo revela esta competência? E se essa recusa é promovida pela própria estratégia, não é uma estratégia contraditória em si mesma?

Não deveriam ter deixado o professor da nossa parábola com a missão de definir esta estratégia de cidadania. Ele não se compadece dos seus alunos sofredores (que nem sabe quem são!); lança sobre todos o mesmo sofrimento, pensando estar, assim, erradamente, a diminuir a dor dos sofredores.

Ser solidário e ser bom cidadão não é isto. É acolher o outro, mesmo podendo divergir dele e das suas opções, que estão sempre sujeitas a possível escrutínio.

sábado, outubro 19, 2024

Aborto e alargamento de prazos: impressiona tamanha insensibilidade

 

Impressiona!

Impressiona a insensibilidade com que se está a preparar um hipotético alargamento dos prazos do aborto legal. Dois projetos estão na mesa que se propõem alargar para 12 ou para 14 semanas o prazo do aborto.

Digamo-lo com verdade e honestidade. O abortamento voluntário é a morte de um filho e com essa morte, a morte, também, da sua mãe e do seu pai, pois só há mãe e pai porque há um filho.

É disto que estamos a falar.

O filho em desenvolvimento no útero da sua mãe não é uma parte desta, mas antes um alguém (ou mais do que um, se for uma situação em que estamos perante gémeos) que confia e se confia à sua mãe, durante nove meses, para poder desenvolver-se e autonomizar-se, deixando de depender dela, em exclusivo, a partir do seu nascimento. O aborto trai este ‘depósito’ tácito de confiança.

E se já é grave que seja feito, em alguns casos, em circunstâncias de pressão que obnubilam a capacidade de decidir, a sua gravidade aumenta quando a sociedade se vai insensibilizando para o que, de facto, está em causa.

Um filho, cuja dignidade de humano deveria significar que conta com todos para se saber protegido, fica à mercê das decisões conjunturais para ver garantida a sua vida, quando, numa sociedade humanista deveria contar com o ‘abraço’ e conforto de todos para poder vir a nascer.

Mas, sob a ação de campanhas de manipulação da opinião pública, a sociedade prefere fazer de conta que se trata de um assunto individual, em relação ao qual ninguém tem nada a ver, como se um filho fosse propriedade de alguém e não um indivíduo com direitos próprios, uma dignidade humana e merecedor de cuidado e proteção.

Veja-se como se afirma que mais de 1300 abortos não foram realizados por estarem fora de prazo, como se não estivesse em causa a vida de 1300 como nós.

Se pararmos para pensar, quem dá uma notícia destas está a dizer, aos que vão nascer, dentro de meses: ‘vais nascer, mas muito contra a nossa vontade. Por nós, não terias direito a nascer.’

 

Importam-se de repetir?

Mais de 1300 abortos não se terem realizado por estarem fora de prazo é motivo de tristeza? É notícia?

Impressiona-me esta indiferença para com a vida de outrem.

Impressiona-me, também, esta manipulação da opinião pública que posiciona o tema de modo a insensibilizar as ‘hostes’ de modo a que possam acolher a decisão que se avizinha no horizonte: o alargamento do prazo do aborto.

 

Impressiona-me que não incomodem os mais 250 mil abortos realizados, desde 2007, ao abrigo da lei que já existe.

Como é que não incomodam estes números?

E pretende-se o alargamento dos prazos.

O objetivo é vir a chegar a 500 mil abortos? A um milhão?

E, se forem honestos, dado que reivindicam que o aborto é legítimo sob o pretexto de que se trata de uma coisa que é parte do corpo da mulher, então, a reivindicação deve ser a de que se alargue o prazo até final da gravidez…

Não nos impressiona tamanhã insensibilidade?

E quem apoia a mulher que quer ser mãe e tem de ocultar a sua gravidez para não ser pressionada a abortar porque a lei deixou de a proteger?

E quem apoia a mulher que quer ser mãe mas a quem propõem que se desfaça do filho porque não tem condições para o sustentar?

Eu sei quem a apoia. Os que, no seu silêncio mediático, têm estado ao lado das mulheres que não desistem de ser mães porque sabem que não têm direito a tirar a vida aos seus filhos.

Eu sei quem a apoia. Os que alguns insistem em qualificar como conservadores ou já residuais, mas que, porque sabem que quem não conserva deixa estragar, não desistem do que é mais importante e reconhecem que cada vida humana é uma história única que ninguém tem direito a interromper antes de começar a narrar-se.

Há situações dolorosas em que o aborto parece ser a solução quando tudo é negro à volta? Há!

Mas não é boa opção, nessas situações, propor que a solução passe pela eliminação de um filho, quando, afinal, o que é necessário é acompanhar, dar condição para acolher e cuidar. É assim uma sociedade humanamente moderna, humanamente desenvolvida, cientificamente sustentada e validada pela factualidade de que uma gravidez não é um alargamento de um útero, não é o crescimento de uma ‘coisa’ no ventre de uma mulher, mas a história de uma vida em desenvolvimento com a proteção única da sua mãe.

Até quando continuará este processo manipulador e insensibilizador?

Cada filho abortado grita fundo nas consciências da sociedade. Mas há quem saiba muito bem abafar essa voz…

segunda-feira, outubro 07, 2024

Sabes, leitor... | 10 | Marca de água do livro de Byung-Chul Han, 'A Agonia de Eros'

 

Rubrica ‘Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página’** | Marca de água de livros que deixam marcas profundas
Parceria: Federação Portuguesa pela Vida e Comissão Diocesana da Cultura

Luís Manuel Pereira da Silva*

O autor e a obra
Byung-Chul Han, A Agonia de Eros, Lisboa, Relógio d’Agua Editores, 2014.

 

Cheguei a Byung-Chul Han pela mesma porta pela qual terá entrado a maioria dos seus leitores portugueses: o seu livro ‘a sociedade do cansaço’, que me foi apresentado por um amigo (bibliófilo como eu) e que eu li em 2019. De então para cá, somei onze livros a essa primeira leitura.

Atrai, na sua escrita, a capacidade de ler o mundo em profundidade, sem medos nem receios, nestes tempos dados a cancelamentos.

Atrai, ainda, a capacidade que tem de procurar uma linguagem que diga a todos aquilo que se pode presumir poder nascer das fontes que o inspiram. A sua biografia, que o ‘faz’ nascer em Seul (Coreia do Sul), onde estudou Metalurgia, mostra um homem em busca. Da Metalurgia (estudada na Ásia) parte para a Filosofia, Teologia e Literatura Alemã, apesar de, quando chegado à Alemanha, nada saber da língua.

Percebe-se, na sua escrita e no seu pensamento, a influência dos mundos que calcorreou. Percebe-se a preocupação com as palavras (é um exímio criador de termos e de título – ‘o aroma do tempo’, ‘a salvação do belo’, ‘não-coisas’, ‘infocracia’, etc. dizem muito da sua capacidade de expressar muitíssimo em poucas palavras [como os seus ensaios, que muito dizem em poucas páginas]), influência do seu contacto com a língua alemã, ou a sua preocupação com o que é, para além do que parece, influência de Heidegger sobre o qual fez tese de doutoramento ou, ainda, a sua busca do sentido nas escolhas coletivas, influência da teologia em que se versou, em Munique.

 

Marcas de água 

(o que fica depois de se deixar o livro)

 

Li ‘A Agonia de Eros’ em dois dias: entre 26 e 28 de agosto de 2022, depois do seu ‘a sociedade da transparência’. Nos meus registos, anotei que, após este, avancei para novo livro de Byung-Chul Han, ‘No enxame’, em que reflete sobre o impacto do digital nas sociedades e nos indivíduos, linha que se cruza com o que reflete em ‘Infocracia’.

Anotei, ao acabar de ler ‘A Agonia de Eros’, o seguinte: ‘o raciocínio é magnífico. Não me centraria tanto, porém, na crítica ao capitalismo (acho que também ele é um fenómeno de outro noúmeno a descobrir’), aludindo aos pontos de coincidência e divergência que me fazem cruzar com o pensamento de Han.

Explicito…

Han é mordaz na constatação de que a sociedade se vem estruturando sobre a ideia da centralidade do indivíduo, conduzindo, com isso, à morte do ‘outro’ ou, como diz Han, neste livro, à ‘erosão do outro’. Neste ponto, aproximamo-nos. Sou um personalista de matriz comunitarista influenciado pela minha nascente cristã e, por isso, revejo-me na ideia da inconcebibilidade de se pensar o eu sem o tu, mas divirjo quando Han atribui a causa disso ao capitalismo que gera a sociedade de consumo. Considero que o capitalismo (e o liberalismo a ele associado) emerge de uma causa anterior que encontra nestes dois – capitalismo e liberalismo – epifenómenos: o egocentrismo congénito à condição humana, desde que se ‘afastou da mão de Deus’.

Salvaguardada esta divergência, recentro a atenção no pensamento e no texto de Han, onde é possível encontrar pérolas de assertividade.

A ideia fundamental de Han é a de que ‘Eros’ expressa a ideia de um amor em que as identidades não se fundem, mas se respeitam, se acolhem, permanecem ‘tus’ dialógicos. ‘O Eros dirige-se, em sentido enfático, ao outro que não é possível alcançar sob o regime do eu. […] a sociedade de consumo visa eliminar a alteridade atópica a favor de diferenças consumíveis, heterotópicas. Hoje, em todos os lados, a negatividade desaparece. Tudo se achata de modo a poder tornar-se objeto de consumo. […] Em contrapartida, Eros torna possível uma experiência do outro na sua alteridade, arrancando o eu ao seu inferno narcísico. Eros põe em ação um desconhecimento voluntário de si mesmo, um voluntário esvaziamento de si mesmo.’ (pp. 10-11)

E Han avança no seu raciocínio, levando-nos à constatação de que ‘o amor positiviza-se hoje como sexualidade, estando esta, por seu turno, submetida ao imperativo do rendimento. O sexo é rendimento. E a sensualidade é um capital que é necessário aumentar. O corpo, com o seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. O outro é sexualizado como objeto excitante. Despojado da sua alteridade, o outro não pode ser amado, mas tão-só consumido. Nesse sentido, o outro já não é uma pessoa, porque foi fragmentado em objetos sexuais parciais. Não há personalidade sexual. Se o outro é percebido como objeto sexual, erode-se essa ‘distância originária’ que, segundo Buber, é ‘o princípio do ser humano’ e constitui a condição transcendental de possibilidade da alteridade.’ (p. 20)

É de ficar sem fôlego perante a clareza e luminosidade destas ideias.

Não se pense, porém, que Han defenda um qualquer angelismo assexuado. Pelo contrário. Consciente da natureza sexuada do ser humano, interroga-se sobre o que ela diz sobre o mesmo ser humano e descobre a profunda tentação de, por ela, o Homem deixar de ser Homem, a pessoa deixar de ser pessoa, para, por ela, a ‘relação’ se degradar em modo de exercício de poder.

Na verdade, consequente com esta leitura, Han é coerente e conduz-nos a reconhecer que, por oposição a esta abordagem genuinamente ‘erótica’ que acolhe o outro, que o recebe e que se entrega, em alteridade não objetual, o ‘porno é os antípodas do Eros. Aniquila a própria sexualidade.’ (p. 35) porque ‘o pornográfico também não tem inerente qualquer decoro, qualquer distância. Precisamente, é pornográfica a falta de tato e de encontro com o outro []. A pornografia, deste modo, aumenta a dose narcísica do eu.’ (p. 52). Há como que uma redução do encontro a um lugar de poder… E é nisto que a tese de Han tem o seu quê de sedutora ao identificar essa ação à tentação capitalista… Mas insisto que, na minha perspetiva, a sua origem é mais profunda; origina-se na tentação que acompanha a humanidade desde sempre: a da autossuficiência que convence de tudo ser para um eu que se agiganta cada vez mais e que de tudo é senhor absoluto.

‘A Agonia de Eros’ é um conjunto de ensaios que desafiam a que se regresse à original visão sobre a sexualidade humana, que […] desperta perante o ‘rosto’, ‘no qual o outro se dá e oculta ao mesmo tempo’. O ‘rosto’ opõe-se diametralmente à face (face), que se expõe como mercadoria com uma nudez pornográfica e se entrega a uma visibilidade e a um consumo totais.’ (p. 24) Uma visão assente na genuína ideia do que seja o amor. ‘A ‘verdadeira essência do amor’ consiste em ‘renunciar à consciência de si, em esquecer-se de si mesmo, num outro mesmo.’ […] Morre-se no outro, sem dúvida, mas a essa morte segue-se um retorno a si. E o retorno reconciliado que volta do outro a si é tudo menos essa apropriação violenta do outro […]. É antes o dom do outro, precedido pela entrega, o abandono de mim mesmo.’ (p. 30-31)

Ao ler Han, não pude deixar de recordar um dos mais belos e fecundos textos sobre estas matérias saídos nos últimos tempos. Nele, também se refere algo que Han revisita, vez após vez. Diz-se, ali: ‘[…] o modo de exaltar o corpo, a que assistimos hoje, é enganador. O eros degradado a puro «sexo» torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma «coisa» que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se mercadoria. Na realidade, para o homem, isto não constitui propriamente uma grande afirmação do seu corpo.’ Quem o diz é Joseph Ratzinger, já como Bento XVI, na sua luminosa encíclica ‘Deus Caritas est’ (n.5), onde o amor, nas suas expressões erótica, de amizade e agápica é analisado, para surpresa de tantos, como manifestação da real condição humana, longe de angelismos com que alguns ainda pretendem ver a leitura cristã da sexualidade.

Pela mão de Han, cabe perguntar, então, se sobreviverá o humano à tentação da sua redução a ‘coisa’. Ou, de outro modo, poderá questionar-se se Eros resistirá ao poder de Narciso. Continuará a sexualidade humana a ser lugar de encontro ou reduzir-se-á, progressivamente, à condição de ‘não-lugar’, sendo, apenas, um outro modo de se exercer poder sobre o objeto diante do degradado ‘eu’?

O pensamento de Han permite, por fim, formular uma arriscada interrogação que julgo, contudo, ser legítimo enfrentar e partilhar: uma sociedade que deixou de questionar e até faz a apologia da busca do igual (expresso, em grego, pelo prefixo ‘homo’), estará, ainda, capaz de ousar pensar a sexualidade como o tempo e o lugar da genuína abertura ao outro, diferente do eu?...

 

Na mesma página que o autor (citações)

 

‘[…] as teorias sociológicas […] desconhecem que está hoje em ação alguma outra coisa que ataca o amor mais do que a liberdade sem fim ou as possibilidades ilimitadas. Não é somente o excesso de oferta de outros outros que conduz à crise do amor, mas fá-lo também a erosão do outro, que tem lugar em todos os âmbitos da vida e está ligada a um excessivo e ensimesmado narcisismo do mesmo. Com efeito, o desaparecimento do outro é um processo dramático – mas trata-se de um processo que se desenvolve sem que, infelizmente, muitos se deem conta.

O Eros dirige-se, em sentido enfático, ao outro que não é possível alcançar sob o regime do eu. Por isso, no inferno do igual, a que a atual sociedade se assemelha cada vez mais, não há qualquer experiência erótica. Esta pressupõe a assimetria e a exterioridade do outro.’ (p. 9-10)

 

‘Tudo se achata de modo a poder tornar-se objeto de consumo.’ (p. 10)

 

‘O sujeito narcísico-depressivo está exausto e fatigado de si mesmo. É desprovido de mundo e acha-se abandonado pelo outro.’ (p. 11)

 

‘[…] Eros torna possível uma experiência do outro na sua alteridade, arrancando o eu ao seu inferno narcísico. Eros põe em ação um desconhecimento voluntário de si mesmo, um voluntário esvaziamento de si mesmo.’ (p. 11)

 

‘O sujeito do rendimento, como empresário de si mesmo, é sem dúvida livre, na medida em que não está submetido a um outro que o comande e o explore; mas não é de facto livre, porque se explora a si mesmo, por mais que o faça com inteira liberdade.’ (p. 17)

 

‘A proclamação neoliberal da liberdade manifesta-se, de facto, como um imperativo paradoxal: sê livre. Precipita o sujeito do rendimento na depressão e no esgotamento.’ (p. 18)

 

‘O amor positiviza-se hoje como sexualidade, estando esta, por seu turno, submetida ao imperativo do rendimento. O sexo é rendimento. E a sensualidade é um capital que é necessário aumentar. O corpo, com o seu valor de exposição, equivale a uma mercadoria. O outro é sexualizado como objeto excitante. Despojado da sua alteridade, o outro não pode ser amado, mas tão-só consumido. Nesse sentido, o outro já não é uma pessoa, porque foi fragmentado em objetos sexuais parciais. Não há personalidade sexual.

Se o outro é percebido como objeto sexual, erode-se essa ‘distância originária’, que, segundo Buber, é ‘o princípio do ser humano’, e constitui a condição transcendental de possibilidade da alteridade. A ‘distância originária’ impede que o outro seja reificado como um objeto, como uma ‘coisa’. O outro, enquanto objeto sexual, já não é um ‘tu’. Já não é possível qualquer relação com ele. A ‘distância originária’ é portadora do decoro transcendental, que liberta o outro na sua alteridade, e, mais do que isso, o distancia. […] O objeto sexual não tem um ‘rosto’ que constitua a alteridade – essa alteridade do outro que impõe a distância. Hoje, perdem-se cada vez mais a decência, as boas maneiras e também o distanciamento – ou seja: a capacidade de experimentar o outro no confronto com a sua alteridade.’ (p. 20)

 

‘O futuro é o tempo do outro. A totalização do presente como tempo do igual faz desaparecer essa ausência que situa o outro fora do disponível. […] O amor, na medida em que hoje não significa senão necessidade, satisfação e prazer, é incompatível com a subtração e a demora do outro. A sociedade, como máquina de procura e consumo, suprime o desejo orientado para o ausente, que, enquanto tal, não pode ser encontrado, captado e consumido. Em contrapartida, Eros desperta perante o ‘rosto’, ‘no qual o outro se dá e oculta ao mesmo tempo’. O ‘rosto’ opõe-se diametralmente à face (face), que se expõe como mercadoria com uma nudez pornográfica e se entrega a uma visibilidade e a um consumo totais. ’ (pp. 23-24)

 

‘O capitalismo elimina por toda a parte a alteridade para tudo submeter ao consumo. O Eros é, por seu turno, uma relação assimétrica com o outro. E interrompe desse modo a relação de troca. Não se pode fazer contabilidade com a alteridade, uma vez que esta não aparece no balanço de dever e haver.’ (p. 24)

 

‘O homem atual permanece igual a si mesmo e procura no outro somente a confirmação de si mesmo.’ (p. 26)

 

‘O sentimento e a paixão dão lugar a sentimentos agradáveis e a excitações sem consequências. Na época do quickie, do sexo ocasional e de distensão, também a sexualidade perde toda a negatividade. A total ausência de negatividade faz com que o amor hoje se atrofie como um objeto de consumo e de cálculo hedonista. O desejo do outro é suplantado pelo conforto do igual. Procura-se a agradável e, em última análise, confortável imanência do igual. Ao amor de hoje faltam por completo a transcendência e a transgressão.’ (p. 27)

 

‘Nem toda a conclusão é violência. Conclui-se a paz. Conclui-se (‘fecha-se’) a amizade. O amor é uma conclusão absoluta porque pressupõe a morte, a renúncia a si mesmo. A ‘verdadeira essência do amor’ consiste em ‘renunciar à consciência de si, em esquecer-se de si mesmo, num outro mesmo’. […] O amor como conclusão absoluta passa pela morte. Morre-se no outro, sem dúvida, mas a essa morte segue-se um retorno a si. E o retorno reconciliado que volta do outro a si é tudo menos essa apropriação violenta do outro, que foi falsamente elevada a figura principal do pensamento hegeliano. É antes o dom do outro, precedido pela entrega, o abandono de mim mesmo.’ (pp. 30-31)

 

‘Na relação de pode e de dominação, afirmo-me e oponho-me ao outro na medida em que o submeto. Em contrapartida, o poder de Eros implica uma impotência em que eu, em vez de me afirmar, me perco no outro ou para o outro, que de novo me alenta […].’ (p. 31)

 

‘A hipervisibilidade é acompanhada pela desmontagem dos limiares e dos limites. É a meta da sociedade da transparência. O espaço torna-se transparente depois de alisado e achatado. Os limiares e as passagens são zonas cheias de mistérios e de enigmas, onde começa o outro atópico. Juntamente com os limites e os limiares desaparecem também as fantasias relativas ao outro. A fantasia atrofia-se sem a negatividade dos limiares, sem a sua experiência. A crise atual da arte, e também da literatura, pode ser atribuída à crise da fantasia, ao desaparecimento do outro, quer dizer, à agonia de Eros.

As vedações ou muros das fronteiras que hoje se erigem já não excitam a fantasia, porque não geram o outro. Antes, atravessam de um extremo a outro o inferno do igual, que segue somente as leis económicas que separam os ricos dos pobres. É o capital que produz esses novos limites. Mas o dinheiro, em princípio, torna tudo igual. Nivela diferenças essenciais. Os limites como elementos de separação e de exclusão eliminar as fantasias relativas ao outro. Não são limiares ou passagens que conduzam a outro lugar.’ (p. 47)

 

‘Não deve confundir-se o Eros com o desejo (epithymia). É superior não só ao desejo, mas também ao Thymos. Incita-o a produzir belas ações. O Thymos é o lugar onde pode haver contacto entre Eros e política. Mas a política atual, que, além de desprovida de coragem, se desenvolve por completo sem Eros, atrofia-se e transforma-se em mero trabalho. O neoliberalismo leva a cabo uma despolitização da sociedade, na qual a substituição do Eros pela sexualidade e pela pornografia desempenha uma importante função. A sua base é o desejo (epithymia). Numa sociedade do cansaço, com sujeitos do rendimento isolados em si mesmos, o ânimo também se atrofia por completo. Torna-se impossível uma ação comum, impossível um nós.’ (p. 50)

 

‘A pornografia […] aumenta a dose narcísica do eu. Em contrapartida, o amor como acontecimento, como ‘cena do dois’, des-habitua e reduz o narcisismo. Produz uma ‘rutura’, uma ‘perfuração’ na ordem do habitual e do igual’. (p. 52)


**(Título retirado de Daniel Faria, Dos líquidos, Porto, Edição Fundação Manuel Leão, 2000, p. 137)

*Professor, Presidente da Comissão Diocesana da Cultura
Autor de 'Ensaios de liberdade', 'Bem-nascido... Mal-nascido... Do 'filho perfeito" ao filho humano' e de 'Teologia, ciência e verdade: fundamentos para a definição do estatuto epistemológico da Teologia, segundo Wolfhart Pannenberg'

 

quarta-feira, setembro 25, 2024

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 23 | Némesis e moiras – a desmesura e o destino perante a graça e o perdão

 

Artigo originalmente publicado na revista 'Mundo Rural'

Luís Manuel Pereira da Silva*

Ulisses está no seu demorado processo de regresso. Há, nele, um profundo desejo de chegar à casa donde partiu há já demasiado tempo. Desejo que o habita e ‘arrasta’ como uma ausência a necessitar de ser preenchida. Sobre ele refletiremos, no último capítulo deste já longo ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’. É um desejo que se expressa como ânsia de «regresso a casa», uma ‘nostalgia’ persistente e omnipresente desde a partida feita desejo de chegada. Nela se unirão ‘regresso’ (a Ítaca) e ‘sonho’ (do Éden).

Mas ainda nos cabe enfrentar o motivo profundo pelo qual temos de voltar a partir de Ítaca, mas desejando regressar, já não a ela, mas ao Éden, que nos toma a alma como saudade e genuína nostalgia.

Ulisses é um herói, bem certo, mas um herói à maneira grega. A visão é trágica, porque, nela, dominam o limite intransponível e a sombra da maldição de nada ser ou eternamente ficar abandonado por em algum momento se ter transgredido o estabelecido.

A tentação desta leitura não está ausente da receção do cristianismo, entre o povo. Mas não é a marca definidora do ser cristão.

Expliquemo-nos…

No espírito grego, não há lugar para a ‘surpresa’, para a ‘graça’, o ‘não previsto e previsível’. Tudo é destino (moira) e determinação do limite (Némesis). O ser humano está determinado a cumprir o traçado que lhe coube em sorte. A transgressão é certeza de custo previsto.

Maria Helena da Rocha Pereira recorda-o ao analisar a história de Medeia que quer de Creonte muito mais do que uma promessa. Quer ‘um juramento formal, com a invocação precisa dos deuses envolvidos no ato, que comprometa de forma irreversível quem o presta, formule as suas obrigações e anteveja os castigos da transgressão’ [1]. Não há lugar para o inesperado. No espírito grego, tudo é previsível, antecipável e quem comete a ousadia da desmesura, submete-se à consequência esperável. Cruzam-se, nesta síntese, dois vetores que, sendo, originalmente, abstrações, se ‘personificam’ em figuras míticas: por um lado, a irrevogabilidade do destino de cada um, na ideia das ‘moiras’ ou, na redação proposta por Pierre Grimal [2], das ‘meras’, o quinhão, a parte que cabe a cada um cumprir (de felicidade e infelicidade); por outro, a ‘vingança dos deuses’, representada na ideia e na figura da Némesis, cuja representação mais famosa é a que se encontra em Ramnunte. Aqui, numa estátua hoje mutilada, representava-se uma deusa com uma arranca de maçã e um figo, e terá sido esculpido por Agoracritus, um aluno de Fídias, por volta de 430 a.C. É curioso que o figo e a maçã sejam elementos ilustrativos desta figura mítica, evocando a simbologia transcultural a eles associada. Como não recordar a interpretação do fruto proibido como sendo uma maçã (apesar de o texto bíblico não suportar essa conclusão) ou a referência à figueira como uma árvore amaldiçoada, talvez em virtude da ‘traiçoeira’ fragilidade da sua madeira, incapaz de suportar, demoradamente, o peso de um homem?

O mesmo Pierre Grimal dá suporte a esta nossa interpretação, ao recordar que as Meras ‘não têm uma lenda propriamente dita. Não são mais que a simbolização de uma conceção do mundo semifilosófica, semi-religiosa’[3], a qual, como fomos evidenciando, ao longo deste ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’, se mostra ora convergente, mas maioritariamente divergente do genuíno espírito cristão.

Neste, com efeito, se foram sobrevivendo, aqui e ali, marcas desta visão trágica e fatalista (de que o predestinacionismo calvinista será uma das maiores expressões), terá de ser reconhecido como tendo contribuído para emergir, no mundo, um outro olhar, em que há espaço para a ‘surpresa’, a ‘novidade’, o ‘gratuito’ (porque dado por ‘graça’), e, por isso, a possibilidade do perdão.

Esta nossa reflexão permite-nos ousar depreender na frequentemente evocada conflitualidade entre cristianismo e ciência um equívoco que nascerá destas duas visões retratadas, ao longo da reflexão feita em ‘regresso a Ítaca…’. O real ‘conflito’ não é entre cristianismo e ciência, mas entre uma visão ‘determinista’ e uma outra em que continua a haver lugar para a liberdade, para o rompimento de toda a previsibilidade e irrevogabilidade.

No limite, na visão grega, até os deuses estão submetidos às Meras. ‘Impessoal, a Mera é tão inflexível como o destino: encarna uma lei que os próprios deuses não podem transgredir sem pôr em perigo a ordem do mundo’[4], sendo que deles pode esperar-se, inclusive a vingança e sérias represálias: ‘tudo o que se eleva acima da sua condição, no bem como no mal, expõe-se a represálias dos deuses’[5].

Numa canção sobejamente conhecida e replicada de título ‘Némesis’, o cantor Clementine recorda que ‘Nemesis is, is the mother of karma’ (‘Nemesis é a mãe do Karma’), replicando uma intuição interessante e nem sempre constatada: de facto, é preciso esperar pelo judeo-cristianismo para encontrar a ideia de perdão que, fora deste registo, está sempre ausente. ‘Karma’ evoca a matriz oriental, explicitada na visão hindu.

Bono Vox, o vocalista dos U2 recorda, numa muito interessante entrevista dada a Michka Assayas, que ‘no centro de todas as religiões há a ideia de Karma. Vê bem, aquilo que fazes volta para ti: olho por olho, dente por dente, ou, na física – nas leis físicas – a cada ação equivale uma igual ou oposta. É claro para mim que o Karma está no centro do Universo. Tenho a certeza absoluta. E ainda assim, aparece igualmente este conceito de Graça para dar a volta a tudo isto «Como colhes, assim terás de semear». A Graça desafia a razão e a lógica. O amor interrompe, se quiseres, as consequências das tuas ações, o que, no meu caso, é, na verdade, muito bom, porque eu fiz muitas coisas estúpidas.[6]

O leitor atento poderá contestar-me que também a bíblia está cheia de ‘maldições’ e ‘fatalismos’. Mas não deixará de surpreender que o último livro, também ele tantas vezes lido sob um registo de mais um vademecum de maldições, termine com a esperança de que ‘A graça do Senhor Jesus esteja com todos vós.’ (Ap 22,21), depois de assegurar que a esperança definitiva será em relação a um lugar onde ‘E ali nunca mais haverá nada maldito.’ (Ap 22,3)

E erraria quem se agarrasse ao literalismo das frases. Todo o livro é uma ode à esperança, à graça, à surpresa da vitória do amor sobre os determinismos e fatalismos: «Não tenhas medo! Eu sou o Primeiro e o Último; aquele que vive. Estive morto; mas, como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo!», sendo que não é despiciendo que se evidencie estarem superados os limites do espírito grego refazendo o discurso grego com um novo alfabeto que, em Cristo, a pura Graça de Deus, encontra o novo ‘alfa’ e ‘omega’ dos novos discursos…



[1] Maria Helena da Rocha Pereira, Estudos sobre a Grécia Antiga: Artigos, Coimbra, Fundação Calouste Gulbenkian e Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014, p. 368.

[2] Cfr. Pierre Grimal, Dicionário da mitologia grega e romana, Lisboa, Antígona Editores Refractários, 2020, p. 306.

[3] Pierre Grimal, op. Cit., p. 306.

[4] Pierre Grimal, op. Cit, p. 306.

[5] Cfr., Ibidem, p. 326.

[6] Michka Assayas e Bono Vox, Bono por Bono, Lisboa, Editora Ulisseia, 2005, p. 227.

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