segunda-feira, setembro 17, 2007

Só os agnósticos podem presidir à Comissão da liberdade religiosa?

A propósito da tomada de posse do novo Presidente da CLR
Só os agnósticos podem presidir à Comissão da liberdade religiosa?

Foi com surpresa (ou, talvez, até não!) que ouvi, recentemente, o Presidente da Comissão da liberdade religiosa, Dr. Mário Soares, afirmar que era garantia de neutralidade, no desempenho desta função, o seu conhecido agnosticismo.
Tal consideração que, aos ouvidos mais distraídos, parecerá certa e coerente, é denunciadora de uma visão que valerá a pena ler atentamente.
Desde logo, veja-se que se presume a possibilidade de que alguém exerça uma qualquer função sem que deva atender ao contexto histórico, aos lugares, às culturas próprias em que está integrado. Há, aqui, um pressuposto de liberdade não situada, exercida fora da história, impossível de compaginar com a realidade humana, sempre circunstanciada, tal qual a define, com acutilância, o grande pensador espanhol, Ortega y Gasset, ao considerar que «eu sou eu e minha circunstância». Qualquer exercício que não queira ser ideológico deverá saber-se e presumir-se sempre situado e quanto mais esquecer ou pretender impor tal esquecimento, mais refém se tornará de uma amnésia redutora. Pois é esse o primeiro grande risco da afirmação de que só um agnóstico poderá exercer com justiça a função de presidente da comissão da liberdade religiosa.
Esta enfermidade conceptual é claramente devedora de uma visão que atinge o seu pico no positivismo do século XIX. De acordo com tal concepção, o homem que conhece, que busca o conhecimento, é concebido como se estivesse fora do acto de conhecer, à maneira de um deus omnisciente, colocado para além da história, para além de toda a circunstância, capaz de conhecer de forma absoluta, isento de erro porque totalmente neutro e imune a toda a subjectividade. Ora, tal visão poderá ser eventualmente aplicável a Deus, mas, seguramente, pouco terá a ver com o homem concreto, real, que age e decide, aqui e agora. É este homem que presume o Dr. Mário Soares na sua afirmação, reconhecendo-se a si mesmo nos atributos que enuncia.
Para além destas notas presumidas, a afirmação do Presidente da Comissão da Liberdade dá, ainda, como certa a incapacidade de imparcialidade dos representantes das confissões religiosas, numa linha de pensamento que, para além de quase ofensiva para com estes, recupera uma visão que, aplicada a outros sectores da sociedade, criaria um imobilismo absoluto. Veja-se o que seria presumir que quem faz parte de uma determinada história concreta fosse incapaz de ser justo e imparcial no desempenho de funções em que fossem beneficiários das suas decisões membros da sua comunidade, em paralelo com membros de outras comunidades diferentes. Aplique-se, por exemplo, à União Europeia. Só um não europeu seria justo no desempenho de funções de presidente da Comissão Europeia. Não me parece que a isto queira chegar o Dr. Mário Soares, seguramente bem intencionado na sua afirmação, mas denunciador de uma visão redutora que, para além de confundir neutralidade com imparcialidade e justiça, ainda olha, à maneira dos mentores do pós-revolução francesa, para o religioso como um factor de divisão, injustiça e conflito.
Será, por tudo isto, afinal, este agnosticismo a condição certa para o desempenho de tal função? Ou o verdadeiro disfarce de uma parcialidade ainda maior porque sustentada numa presumida ‘neutralidade’ impossível?

Luís Manuel Silva
(Organizador dos Encontros Inter-religiosos de Sever do Vouga)

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