Com a lei 25/2012, de 16 de
Julho, que entrou em vigor a 16 de Agosto, passou a existir, em Portugal, a
possibilidade de expressar, antecipadamente, a vontade sobre os tratamentos que
se «deseja receber, ou não deseja receber, no caso de, por qualquer razão, se
encontrar incapaz de expressar a sua vontade pessoal e autonomamente.»
A importância da matéria merecia
maior abordagem, mas foi notória a quase indiferença perante iniciativas que
procuraram proporcionar oportunidades de discussão. Na nossa diocese,
contaram-se iniciativas da Associação de Médicos Católicos, do ISCRA e de
outras entidades, cuja adesão patenteou que a matéria escapava ao interesse da
maioria.
Contudo, valerá a pena não nos
deixarmos afogar por esta onda de indiferentismo. A relevância e a intenção que
assistem à formulação desta lei exigem que se discuta o que nela se preconiza.
Importa, logo à partida, tomar
consciência de que, ao falar-se de «testamento vital», que poderá prestar-se a
ambiguidades, está a dar-se nome a uma manifestação antecipada de vontade sobre
o que se espera que seja o modo de tratamento, em momento em que, pelas
circunstâncias de doença, essa vontade não possa manifestar-se. Sem qualquer
conotação, constata-se que este procedimento se integra em todo um movimento
que pretende sublinhar a relevância da autonomia individual na prestação dos
cuidados de saúde.
Sendo movido por uma intenção
positiva inicial, pois quem poderá negar a importância de se respeitar a
vontade de alguém, é bom ter-se a consciência dos riscos associados a este
procedimento que agora se regulamenta.
Na verdade, sou, desde longa
data, céptico e crítico em relação à relevância, justeza e eficácia destes
«testamentos vitais», pois, ou são minuciosos, deixando muito claros os
cuidados pretendidos e preteridos, o que torna o documento um problema para
quem presta cuidados de saúde e pode abrir a caixa de Pandora para a prática de
eutanásia dissimulada; ou, então, são tão vagos que são redundantes e repetitivos
em relação ao que deve ser a boa prática médica.
É curioso que, sendo esta a minha
posição de partida, a vejo reforçada com a leitura do diploma legal.
Na realidade, considero que pode
estar a criar-se, com este documento, ou uma inutilidade (por repetir o que já
se deve fazer), ou uma abertura para a eutanásia (impedindo-se de se fazer o
que deve ser feito).
Sem entrar, ainda, nos detalhes
da lei, proponho-me refutar a crítica dos que contestam a observação de que
possa ser uma porta de abertura para a eutanásia. Na verdade, para estou
convicto de que, após a aplicação desta lei, que causará muitos problemas
jurídicos e judiciais
[Que limites há, por exemplo, para o exercício da função de procurador
de cuidados de saúde, prevista no artigo 11º? Como pode avaliar-se a boa
intenção de um procurador e estar certo de que não pretende ver-se «livre» de
alguém que se tornou um peso? Em que condição fica o médico que tentou salvar
alguém, presumindo a sua intenção de ser recuperado, quando a directiva antecipada
de vontade caducara, por exemplo, no mês anterior?], a sociedade, saturada de
ouvir os que querem a todo o custo legalizar a eutanásia e vendo as
complicações que resultaram da aplicação desta lei, acabará por se render e
admitir o que, por convicção, não pretende. Para além disto, registo que este
diploma inverte uma lógica que subjaz à prática dos cuidados de saúde: toda a
legislação que regula a prestação dos cuidados de saúde presume a intenção de
se ser curado e cuidado, quando se lhes recorre. Isto é tão claro que,
inclusive perante a entrada, nos serviços de urgência, de alguém que fez
tentativa de suicídio, os cuidadores têm o dever grave de prestar auxílio. Este
dever é extensível aos demais cidadãos, que devem tudo fazer para impedir a
morte de alguém, mesmo do que se pretende suicidar. Ora, o pressuposto deste
diploma legal é o inverso. Como se deverá, a partir de 16 de Agosto de 2012,
proceder em relação a quem, como um «pré-suicida», manifesta tão vivamente que
pretende morrer? Ser-lhe indiferente? De que se necessita mais para vislumbrar
que está em causa uma sociedade que se pretende humanizada e humanizadora?
Mas dizíamos, acima, que a lei
vem confirmar a nossa convicção de que o «testamento vital» ou é redundante ou
a preparação para a aceitação da eutanásia.
Na verdade, no ponto 2 do artigo
2º, em que se definem as disposições que podem constituir o conteúdo das
directivas antecipadas da vontade, enunciam-se as cinco seguintes:
- «não ser submetido a tratamento
de suporte artificial das funções vitais» – esta disposição redundará num
tremendo problema jurídico para as unidades de cuidados intensivos que se
deparem com a premência de tomar decisões perante alguém que entra
politraumatizado. Ou o que deverão fazer os técnicos do INEM no contexto de um
acidente grave? O que deve prevalecer? A vontade individual ou o dever de
prestar assistência?
- «não ser submetido a tratamento
fútil, inútil ou desproporcionado»… - confesso que, ao ler esta disposição fico
perplexo, pois ela apenas repete o que deve ser a boa prática médica, pelo que
se torna redundante e repetitiva, sendo, por isso, inútil. Causa, igualmente,
perplexidade o que se diz, no final desta alínea: «não ser submetido … às
medidas de suporte básico de vida e às medidas de alimentação e hidratação
artificiais que apenas visem retardar o processo natural de morte». Ora, o que
se afirma, aqui, é a possibilidade de suspender a alimentação e hidratação, que
são deveres básicos de qualquer ser humano em relação a outro. Não são sequer cuidados
de saúde. Admiti-lo é, no nosso entender, no mínimo, causa de estranheza.
- «receber os cuidados paliativos
adequados» – esta é mais uma disposição redundante, pois a possibilidade de
beneficiar desses cuidados deverá tender para a universalização e não ficar
circunscrita aos que manifestarem tal desejo.
- «não ser submetido a
tratamentos que se encontrem em fase experimental» e «autorizar ou recusar a
participação em programas de investigação científica ou ensaios clínicos» - tal
como algumas das anteriores disposições, estas são redundantes, pois ninguém
pode ser submetido a tratamentos em fase experimental ou participar em
programas de investigação científica sem a devida autorização, circunstância
que devemos aos episódios de experimentação médica ocorridos durante a segunda
guerra mundial, que vieram a ser proibidos com o código de Nuremberga.
A reflexão bioética sempre teve
claro que, na discussão sobre como devem agir os cuidadores de saúde, perante a
morte, as suas escolhas devem situar-se num equilíbrio entre a distanásia (o
retardamento indevido da morte) e a eutanásia (a sua antecipação indevida), designado
como «ortotanásia», registo em que devem estar assentes as boas práticas
médicas.
Neste contexto, parece-nos que,
resultando de uma intenção inicial positiva, a de salvaguardar que o paciente
não pode ser considerado como um objecto ou um instrumento nas mãos dos
cuidadores de saúde, mas que é alguém com vontade própria que deve ser
respeitada, mesmo quando não é manifesta, este documento legal pode originar
mais problemas e dificuldades do que constituir fonte de soluções.
O futuro o dirá. Assim permitam
que haja futuro.
Luís Silva