A história está
convencida de que chegou ao seu termo. Dizem! Aliás, os próprios que o disseram
já não estão tão certos disso, mas a ideia continua a fazer escola. Na verdade,
depois de Fukuyama, autor de um célebre livro que recebeu como título «o fim da
história», muitos são os que defendem que atingimos o modelo último de
organização da sociedade política e da economia. Esta ideia resulta de
convicção de que, após a queda das ideologias e dos regimes totalitários, já
não restará senão a democracia e o capitalismo.
Não estou certo
disto. A história fez-se e define-se pela efemeridade dos sistemas que, ou se
desenvolvem ou são substituídos por outros sistemas. E este não tem razão para
ser diferente. Sucumbirá como os demais e verá surgirem dos seus escombros novas
respostas e modelos de organização Resta saber se será fazendo dos escombros
peças a contemplar ou poeira a ocultar.
Ora, sente-se
no ar a emergência de novos modelos, pois os sinais vertiginosos de que o
modelo vigente possa começar a sucumbir podem passar despercebidos, mas deixam
o seu perfume espalhar-se. Na verdade, não são de hoje as palavras de João
Paulo II que alertava, na sua encíclica de 1991, «Centesimus Annus», para os
riscos da absolutização do modelo capitalista, sendo que sucumbira, com a queda
do Muro de Berlim, aquele que se pensava ser o único modelo rival.
Muitos são os
indícios que parecem dar razão a este alerta do Papa polaco e que nos fazem
sentir a impressão de um certo retorno às tentações vigentes por altura dos
primeiros documentos eclesiais sobre matérias sociais. Na realidade, em finais
do século XIX, a concentração da riqueza nas mãos de poucos, a desvalorização
da pessoa no contexto da economia, o silenciamento das histórias pessoais
propiciaram a emergência de respostas que configuraram modelos alternativos.
Neste contexto,
o cristianismo procurou envolver-se e não ficar alheio aos desafios que se
afiguravam diante de si.
Ontem, como
hoje, o Cristianismo é chamado a encontrar respostas e a não bastar-se com
modelos sempre efémeros, erroneamente tomados como certos e definitivos.
Em verdade, se
não o souber fazer, será mesmo ultrapassado pela história. Importa, porém,
sublinhar que nenhum modelo será, também ele, capaz de configurar, de forma
definitiva, o que seja o pensamento do cristianismo sobre as sociedades. A sua
leitura escapa sempre às tentativas de aprisionamento. Aliás, o pressuposto de
todo o modelo que se pretenda devedor das intuições cristãs não poderá senão
ter este dado como premissa paradoxalmente absoluta: a sua efemeridade, pois a
história não é a eternidade.
Neste quadro, exige-se,
antes de mais, uma resposta que saiba ultrapassar as soluções para um suposto dilema
entre Estado e Indivíduo, como se não restasse outra hipótese. Na verdade, o
pressuposto deste dilema esquece o ponto de partida de toda a resposta cristã:
o fim de toda a actividade política e económica não pode ser senão a pessoa e o
fim da pessoa é a eternidade. Este terá de ser o lema da «humanocracia cristã» do
qual decorrem consequências enormes. A maior delas é a certeza de que Estado,
instituições, bens, etc., são sempre meios e, por isso, nunca fins em si
mesmos. Tal postura coloca uma política de matriz crista numa lógica de
«humanocracia». Não é o povo, anónimo e desconhecido, reduzido à condição de
eleitor ou mero cidadão, quem (parece que) governa, mas sim a pessoa humana,
definida pela sua identidade e pela sua história. Ela é memória e projecto. O
registo deverá ser sempre o da protecção da pessoa, em todas as suas dimensões,
sabendo sempre que as instituições da sociedade (empresas, organizações não
governamentais, partidos, etc.) e o Estado não são fins em si. O seu papel é o
serviço da pessoa humana. Não uma entidade abstracta, sem raízes, nem história.
Este dado, aparentemente teórico, neutro e inócuo, exige uma posição de
compreensão de que o que a pessoa é, nas suas buscas mais autênticas e
verdadeiras, deve ser respeitado. Também aqui se redefine o modo de fazer a
política que tenha em conta as vivências públicas e pessoais, colectivas e
individuais, inaugurando uma justa laicidade, que não é esquecimento das
religiões, mas são convivência e aliança para um contributo comum. Que tenha,
também, em linha de respeito, a construção lenta, demorada do modelo de
família, de reconhecimento da dignidade da vida humana, seja na fragilidade do
seu início, seja na debilidade do seu fim, e que não force abruptamente a
transformação dos modelos, em nome de ideologias da razão abstracta, incapaz de
integrar o que lhe diz a razão histórica que é sempre situada e protectora da
vida. A razão abstracta, que idealiza o homem no vazio, convenceu muitos, por
exemplo, de que «ser mãe» é o mesmo que um homem «fazer de mãe». À razão histórica
não é preciso muito para concluir quão imenso é o abismo entre o «ser» e o
«parecer que é». A mesma razão abstracta idealizou um homem sem dimensão
religiosa e espiritual, dimensão que a razão histórica conclui ser impossível dissociar
da construção colectiva do humano.
Porque nem
todos têm a mesma capacidade de crescer e progredir, de alcançar o sucesso e de
o conservar, a opção deverá sempre recair sobre os mais desfavorecidos, seja
económica, seja socialmente, não em nome do Estado e contra quem quer que seja,
mas em favor de todos, pois o pressuposto da matriz cristã não é o conflito,
pressupondo uma liberdade que acaba onde começa a do outro, mas sim uma
liberdade que aumenta com o aumento da liberdade do outro. O alicerce
principial que deverá sempre estruturar esta relação é o da subsidiariedade: o
que pode fazer uma estrutura ou entidade mais próxima das pessoas não deverá
ser assumido pelas entidades superiores. Tal pressuposto combaterá todos os
monopólios, sejam de Estado sejam empresariais, e acentuará, contra todo o
anonimato, a organização de políticas de proximidade.
Uma tal matriz
não pode sustentar-se sobre a injustiça, sobre a mentira, sobre a afirmação que
tem a duração da expectativa de atingir o poder. Seja nas relações internas a
uma nação, seja na relação entre nações. A mentira, a falta de verdade mina a
estrutura política, as sociedades, as relações interpessoais e conduz,
progressivamente, a sistemas de poder que têm de perpetuar-se pela violência e
pela lei da força. Para consubstanciar tal pressuposto, a «humanocracia cristã»
deverá sustentar-se no pressuposto de que o poder tende a corromper, pelo que
deverá existir a disponibilidade permanente para abandonar o seu exercício se
tal for a resposta mais justa e mais verdadeira.
Deverão tais
linhas de configuração de um outro modo de agir político e económico originar
movimentos concretos e estruturados, paralelos aos existentes? A tentação de
responder afirmativamente não é pequena. Na verdade, ao configurarem-se em
partidos, as matrizes dos sistemas enunciados deixam sempre de fora algo de
importante. Bem certo que a política é a arte dos possíveis. Mas, serão os
possíveis tão pouco? Não é verdade que, ou temos partidos que são capazes de
assegurar o respeito pela autoridade, pelo rigor, pela exigência, mas que
tendem a proteger os mais fortes, esquecendo a opção pelos mais pobres, ou,
então, temos partidos que, pretendendo-se protectores dos mais frágeis,
idolatram o Estado como se ele fosse um fim em si mesmo e que sempre se
pretendem numa dinâmica de revolução que afoga os modelos historicamente
conquistados? Não é verdade que ou temos partidos que falam de um
desenvolvimento económico a longo prazo, e que esquecem a justiça imediata para
com os mais débeis, ou, então, temos partidos que esgotam no imediato o crédito
de que dispõem, impondo, num segundo momento, ditaduras que tentem perpetuar-se
por fracasso do modelo?
Se a história
demonstrar que tais linhas cumprem a sua função enquanto horizontes de ideal,
configurá-las em movimentos é traí-las; mas se o grito dos mais débeis o
exigir, os braços não podem abandonar o arado.