A suspeita que os célebres mestres, Nietzsche, Freud e Marx, lançaram sobre a fé já se desvaneceu? E porque foi tão profunda que, mesmo decorrido mais de um século sobre a sua descida, qual neblina silenciosa, ainda não resplandece o céu azul sobre a fé cristã? Ou, até, em muitos momentos, parece, mesmo, que se projectou sobre a neblina uma qualquer imagem holográfica que ilude estar-se perante um céu verdadeiro? Porque continua a temer-se o encontro com os que perguntam pelas razões da nossa fé? Porque continua a sentir-se a impressão de que há medo de perguntar pelos desafios efectivos que o encontro com a cultura contemporânea coloca à fé cristã?
Não é esta a atitude que preconiza Bento XVI e que lhe assistirá, seguramente, à convocação para um ano da fé. Provam-no os seus escritos, ao longo de mais de cinquenta anos de reflexão (é, no mínimo surpreendente, por exemplo, o alcance do seu pensamento, na sua recuperada «Introdução ao Cristianismo», onde não se teme, por exemplo, integrar as implicações de uma adequada compreensão evolucionista na própria reflexão sobre o homem e o seu encaminhamento para Deus).
Julgando, por isso, fazer justiça a este desiderato profundo de renovar, em cada momento, sem medo, - tão frequente é o «não temais» nos evangelhos! – as razões para a fé, é, seguramente, oportuno ouvir, de novo, as mais acutilantes críticas que a suspeita (a Paul Ricoeur se deve o cognome de «mestres da suspeita») tem lançado sobre a fé e que urge saber ouvir e perceber o alcance nela escondido. Não para colocar a fé em atitude de apologia, regressando a um tipo de discurso que favoreceu a emergência da suspeita, por se fechar num círculo auto-justificativo, mas sim para distinguir o que é essencial e acidental nessa crítica. Em muitos casos, a crítica enuncia-se sobre aspectos periféricos, que contribuem para ridicularizar o «depósito da fé», seja adequada, seja inadequadamente. A distinção entre o essencial e o acessório, critério tão claramente definido na Unitatis Redintegratio como condição para a realização do ecumenismo, continua a ser assumido de forma titubeante.
Mas regressemos ao ponto em que nos propúnhamos recolher as mais acutilantes críticas formuladas à fé cristã.
O século XIX, envolvido no seu optimismo antropológico e científico, que confiava num progresso ilimitado e, mesmo, infinito, olhou para a fé como o resultado de uma projecção do desejo humano. No dizer de Feuerbach, a teologia deveria ser reduzida a antropologia, pois o que se dizia de Deus mais não era do que a expressão do que se desejava que o homem fosse. Este ponto de partida foi assumindo diversas configurações e matizes. Formulou-se como afirmação de que a fé contribuía para a alienação do homem – o homem transferia para Deus a sua própria natureza – ou a fé religiosa mais não era do que o ópio do povo, contribuindo para o distrair dos reais problemas que uma sociedade intrinsecamente mal estruturada favorecia.
A pertinência desta crítica continua hoje a merecer atenção. Deve continuar-se, ainda hoje, a perguntar se a fé é um mero sossego dos espíritos, o que, a sê-lo, trairá a própria natureza da fé, que deve contribuir para a inquietação perante a perdição humana. Só perante o Santo, que é Deus, é possível ver quanto ainda o homem deve progredir. Mais do que um olhar para trás, a fé só pode responder a esta crítica afirmando-se como um olhar para diante, não para fugir do presente, mas para o fermentar. O erro esteve em perder-se esta tensão: em esgotar o homem, ou no futuro, ou no passado. Hoje, esgota-se o ser humano no presente. E a fé pode impedir, curiosamente, que o homem sofra uma nova «vaga» de alienação, abrindo-o à memória e à esperança.
Uma segunda crítica é a que qualifica a fé como obscurantista. Curiosamente, na nossa sociedade portuguesa esta é uma crítica que vem, muitas vezes, dos que pertencem a sociedades secretas, pouco propensas à exposição e clareza de procedimentos. Convenhamos, porém, que a fé cristã deu, muitas vezes, o flanco, ao não ter sabido afirmar que a sua crítica a certos modos de fazer ciência não era uma revolta contra a ciência, mas contra a construção da ciência feita negando o homem (ciência sem ética) ou contra a ciência absolutizada (que esquece que a ciência é competente a conhecer os seus objectos de investigação e segundo os seus métodos, mas incapaz de se estruturar como uma explicação última para o sentido do mundo, do homem, da história…). A história, apesar de casos mal contados como o de Galileu, demonstrará, a quem estiver disposto a estudá-la sem preconceito, que é impossível fazer uma história da ciência sem contar com o contributo da fé cristã. Leia-se, a título de sugestão, a obra «o que a civilização ocidental deve à Igreja Católica», de Thomas Woods, Jr.
Uma terceira crítica, decorrente da anterior, atribui à fé a causa do fundamentalismo e do fanatismo.
Mais uma vez, a primeira responsável pela pertinência da crítica estará na própria forma de vivência da fé que parece enclausurar-se em circuitos explicativos redundantes, receosos da crítica. Contudo, esta não será, de todo justa se esquecer que não lhe é específico o comportamento fanático ou fundamentalista. Ele emerge sempre que alguém se sente inseguro e incapaz de explicar aos demais os motivos das suas escolhas. Assim acontece na política, no futebol, nas manifestações nacionalistas, etc. A religião e a fé não são, de facto, a origem do fanatismo, antes um seu instrumento por parte dos menos esclarecidos. Não é a religião que é fanática, mas sim alguns fanáticos que se apropriam da religião para fortalecer as suas opções de poder. Assim, importa tomar consciência de que, em vez de ser a origem do fundamentalismo e do fanatismo, pelo contrário, a fé religiosa pode ser o seu maior antídoto. Na verdade, só pode combater-se o fundamentalismo e o fanatismo revelando que tudo na vida terrena é relativo perante o único absoluto que é Deus e que nunca é conquistado pelo homem de forma definitiva. Esta consciência só é possível com a fé. De outro modo, a história torna-se absoluta e perverte-se.
Uma quarta crítica teve em Nietzsche o seu grande patrono. Filho de pastor pietista, o poeta alemão julgou ver na fé cristã a causa de uma moral de fracos que, não conseguindo vencer aos vencedores de outro modo, lhes impõem a moral como forma de os controlarem. Esta moral configurava-se, para o autor da «Gaia ciência», como uma negação da vitalidade do corpo, da pujança da vida, tornando o homem amorfo, como se fosse necessário dispensar o corpo para crer. Ora, uma tal crítica ainda hoje pode ser oportuna e desafiadora. Quantos modelos de santidade mais parecem negação do que afirmação de humanidade! A própria arte popular deu um contributo para a validade desta crítica ao representar santos como se não possuíssem vontade própria. Importa, por isso, compreender que a antropologia cristã recuperou o corpo para a salvação. É o homem todo, não uma parte de si, que se salva. Mas a crítica deve continuar no horizonte, para que a moral social e pessoal não se estruturem sobre uma ideia de fuga do mundo, mas antes de assunção do que este tem de processo de caminho para Deus.
Ainda que possivelmente datadas pela época de optimismo que definiu o século XIX, estas críticas continuam a servir de suporte a outras que mais não são do que manifestações destas mais profundas. Tal continuará a exigir a coragem de perguntar se as nossas escolhas e as nossas razões dadas da fé continuam a permitir responder afirmativamente à pergunta: «quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?» (Lc 18, 8)
Luís Silva