A Educação Moral e Religiosa Católica é, de acordo
com o decreto-lei n.º 70/2013, «uma componente do currículo nacional integrando
todas as matrizes curriculares, de
oferta obrigatória por parte dos estabelecimentos de ensino e de frequência facultativa». No mesmo
diploma, esclarece-se que «o Estado garante as condições necessárias para
assegurar o ensino da disciplina de EMRC nos estabelecimentos públicos dos
ensinos básico e secundário, no âmbito do dever
de cooperação com os pais na educação dos filhos.». No primeiro artigo do
mesmo diploma, sublinhava-se que «o presente decreto-lei estabelece o regime
jurídico da lecionação e da organização da disciplina de Educação Moral e
Religiosa Católicas (EMRC), nos estabelecimentos públicos dos ensinos básico e
secundário, nos termos da Concordata celebrada entre a República Portuguesa e a
Santa Sé, assinada em 18 de maio de 2004, na Cidade do Vaticano, e aprovada,
por ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 74/2004, de 16
de novembro.». À luz destes conteúdos, ficam sublinhados dois pressupostos que
suportam a existência desta disciplina, no quadro do ensino público: o acordo
(concordata) entre Estados - República Portuguesa e Santa Sé -, mas também o
direito constitucional, salvaguardado no artigo 68º, de cooperação do Estado em
relação aos pais para a educação dos filhos, o que supõe que é aos pais que
cabe o dever de escolher o modelo de educação que pretendem para os seus descendentes.
Sendo claros os pressupostos, contudo, ciclicamente
aparecem dúvidas sobre se estes não colocam em causa o princípio da laicidade
do Estado.
1. «Laico» e
«laicidade» não aparecem na Constituição
Importa, antes de mais, esclarecer que os termos
«laico» e «laicidade» não são referidos, nenhuma vez, na constituição da
República Portuguesa. O que se afirma, sim, é, no artigo 41º, que «as igrejas e
outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua
organização e no exercício das suas funções e do culto», o que coloca o
conceito de laicidade situado num registo de respeito pela liberdade religiosa,
em vez de numa perspetiva de silenciamento da manifestação pública das
religiões. Na verdade, sendo assim, podemos assegurar que a constituição da
república portuguesa se situa no registo da dita laicidade positiva, que
encontra no modelo norte-americano um dos seus exemplos mais significativos.
2. Duas
formas de pensar a laicidade - a história demonstra que a conflitualidade
significa perdas sem fundamento
Como
recordava, no século XIX, Alexis de Tocqueville, a diferença entre a laicidade
francesa e a americana está em que aquela concebia que os Estados deveriam ser
indiferentes às religiões, sumindo-as no âmbito privado, enquanto a americana,
compreendendo a sua relevância e papel agregador, concebia que o Estado deveria
respeitá-las e relacionar-se com elas, sem se lhes submeter, mas também sem as
submeter. É este o registo português.
Não é, contudo, o de muitos que, em nome da referida
laicidade de matriz francesa (que redunda num laicismo), entendem que o Estado
deveria fazer de conta que as religiões não existem, em vez de compreender a
oportunidade que estas podem representar.
3. EMRC tem correspondido à confiança do Estado
no seu serviço
Superada esta visão negativa, importa compreender
que, com efeito, a disciplina de EMRC tem vindo a corresponder à confiança que
o Estado e a sociedade têm depositado neste serviço que é prestado através dos
professores de EMRC aos alunos que a escolhem. Na realidade, a disciplina supre
duas necessidades que muitos têm vindo a reconhecer: a de formar para a
compreensão do fenómeno religioso e para a dimensão ética. Esta é uma
disciplina que, de algum modo, corresponde, até, a uma espécie de «economia» de
recursos, pois, como poderá observar-se pela leitura do programa da disciplina,
a disciplina forma naqueles dois âmbitos, o que se pode constatar através da
leitura das metas que se pretende atingir ao lecionar os seus conteúdos, metas
que são agregadas em três domínios: «religião e experiência religiosa», «ética
e moral» e «cultura cristã e visão cristã da vida». Para os que pensam que esta
disciplina é uma decorrência da catequese, visão já pouco consentânea com o
papel de uma e outra, basta constatar que os dois primeiros domínios
correspondem à maioria das metas para perceber que esta convicção não está
correta.
4. A
confessionalidade da disciplina é uma mais-valia e não um prejuízo
Um outro argumento repetidamente referido diz
respeito à confessionalidade que configura esta disciplina, como se tal
significasse um prejuízo ou uma menos-valia.
Salvaguardado o facto de a disciplina ser de
frequência facultativa, condição que decorre da imposição constitucional que
afirma, no artigo 43º, que «o Estado não pode programar a educação e a cultura
segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou
religiosas», compreende-se, neste quadro, que a sua confessionalidade
constitui, antes, uma mais-valia, se se tiver em conta que se trata de uma
disciplina que pretende promover a «educação moral» e «religiosa», isto é, que
pretende, não só instruir, mas formar pessoas e cidadãos. Com este registo, e
compreendendo-se que nenhuma ética é abstrata e incondicionada, saber-se o quadro
conceptual da disciplina confere-lhe força e dinamismo e aumenta a sua
eficácia. A título de exemplo, vale a pena recordar que, no âmbito da linguagem
se verifica um fenómeno semelhante. Nenhum ser humano adquire linguagem no
abstrato. Todo o acesso à linguagem se faz a partir de uma língua, um idioma
concreto, à luz do qual se desenvolve o acesso a outros idiomas. Na ética, na
moral, algo de semelhante se verifica. O acesso crítico aos valores
ético-morais não se faz no vazio, no neutro: faz-se a partir de uma determinada
matriz. A matriz católica desta disciplina não é um limite, mas uma condição de
possibilidade de acesso à compreensão do mundo religioso e do mundo
ético-moral. Isto a distingue, também, da catequese. Na catequese, a matriz é
um fim em si mesma. Na EMRC, a matriz é o registo de compreensão das demais
abordagens e perspetivas.
5. EMRC é um
serviço à sociedade - o Estado serve a sociedade e remunera os seus servidores
Um outro motivo de discussão, ainda, diz respeito a
quem deveria pagar aos professores que lecionam esta disciplina. Muitos dos
opositores da disciplina defendem que deveria ser a Igreja a suportar estes
vencimentos. Tal argumento apresenta várias falácias. A primeira é a que
respeita à ideia de Estado que lhe subjaz: o Estado não é um fim em si mesmo,
mas sim a organização estruturada da sociedade, sendo, por isso, serviço. O
Estado, numa visão democrática e não totalitária, existe para servir a
sociedade, criando-lhe condições para esta se organizar e garantir, num contexto
de justiça e equidade. Para além disto, é bom constatar que, numa perspetiva
subsidiária, o Estado socorre-se do apoio da Igreja para prestar este serviço
aos pais, chamado Educação Moral e Religiosa que, neste caso, corresponde à
matriz católica, sendo de sublinhar que a legislação assegura condições
semelhantes para outras confissões. Ainda mais. Se o argumento fosse válido,
valeria sempre a pena perguntar se quem deve pagar aos professores de línguas
devem ser os ministérios da educação dos países que as falam ou se os
professores de matemática deveriam ser pagos pela sociedade portuguesa de
matemática e assim por diante. Não colhe, também, o argumento de que deveria
ser a Igreja a pagar por ser quem reconhece a idoneidade a estes professores.
Na realidade, a situação destes professores não é muito distinta da que
acontece com os profissionais que pertencem a ordens (dos médicos, dos
engenheiros, dos arquitetos, etc.): podem ser portadores de currículos
excelentes, mas, se as ordens lhes retirarem o «placet», não poderão exercer.
No caso dos docentes de EMRC, algo semelhante se apresenta sendo que, no caso
anterior, ninguém pede às Ordens que assegurem os salários dos seus
profissionais. Também alguns defendem que, por ser uma disciplina de frequência
facultativa, aos pais que a escolhem deveria caber pagá-la. Mais uma vez, o
argumento perde a sua eficácia quando se tenta universalizá-lo. Assim seria com
todas as disciplinas opcionais? O serviço que a disciplina presta não é,
apenas, aos diretos beneficiários, mas, através deles, a toda a sociedade. A
base da refutação do argumento é o princípio de solidariedade que esperamos que
continue a estruturar o nosso modelo de sociedade. Vale a pena verificar que
esta é a lógica, por exemplo, do financiamento pelo serviço nacional de saúde à
investigação em doenças raras. A solidariedade é o pressuposto, mesmo que o
benefício possa não ser para muitos.
6. Uma certa
ideia de Estado - o Estado não é fim em si mesmo
O que está, aqui, em causa é, claramente, uma certa
ideia de Estado e da sua relação com a sociedade. Neste quadro, a disciplina de
EMRC é um excelente exemplo, quase único, de uma boa relação entre Estado e
sociedade, em que aquele se socorre da sociedade para corresponder aos direitos
da sociedade (dos pais a assegurarem o modelo de educação dos seus filhos) e
sem substituir a sociedade (socorrendo-se, antes, dos bons serviços que a
sociedade pode garantir).
7. Um
desafio: conhecer o programa da disciplina de EMRC e deixar-se surpreender com o
trabalho feito
Acrescente-se, ainda, para os que possam considerar
que esta abordagem se confina a uma leitura a partir do programa (o que já não
seria pouco, pois trata-se de um renovado programa que surpreenderá muitos dos
que ainda pensam a disciplina à luz da que frequentaram, há muitos anos!) que o
trabalho real desenvolvido por professores e alunos tem contribuído,
visivelmente, para a transformação humanizadora das comunidades escolares. Tenham-se
em conta, a título ilustrativo, as inúmeras campanhas solidárias, as iniciativas
ambientais, os recursos didáticos criados com o contributo dos alunos, os
debates inter-religiosos e ecuménicos, os debates sobre matérias de
ética/bioética, as iniciativas interdisciplinares, etc. Se, um dia, se fizerem
recolhas estatísticas sobre o contributo real da disciplina, no sentido das
maiores necessidades constatadas pelos mais atentos, seja no âmbito da formação
moral e ética, seja no âmbito da compreensão do fenómeno religioso, tal
permitirá concluir que não só não tem cabimento pôr em causa a sua presença no
ensino público, como se deverá, mesmo, acarinhar e compreender como uma
resposta oportuna e necessária. Através desta disciplina, muito se tem
prevenido quanto à emergência de fundamentalismos e radicalismos. Com temas
como «ciência e religião», «ética e economia», «política, ética e religião»,
etc., a disciplina define-se como uma plataforma de encontro. Um encontro que
não é só teórico, pois muitos são os alunos de outras confissões e religiões
que procuram a resposta que esta disciplina proporciona. O encontro é real e
efetivo. Esta disciplina e a forma como, hoje, está situada no currículo
nacional podem, mesmo, ser compreendidas como um caso de estudo: nela e com ela
concretiza-se um modelo de realização da laicidade positiva.