O Natal comporta uma mensagem que, 2000 anos
volvidos, continuamos a ler de modo nunca completo. Assim são, de qualquer
modo, os mistérios, na sua própria definição e leitura cristã: realidades tão densas
de significação que só, de forma balbuciante, vamos captando. Vamo-nos
acercando do seu significado, mas sempre conscientes de muito nos continuar a
escapar, natureza que torna distinto o entendimento do mistério em relação ao que, habitualmente, consideramos ser um enigma. O mistério, para o cristianismo,
não é um enigma: o que se sublinha não é o seu caráter oculto ou desconhecido,
mas a sua densidade que confere significado para a existência humana. Como não
olhar, então, para o sinal sempre mais e mais iluminador que nos vem do
presépio? E de que nos fala o presépio?
Num magnífico quadro de 1828, em que retrata a
adoração dos magos, Domingos Sequeira, um nosso pintor singular, situado na
transição entre o neoclassicismo e o romantismo, apresenta-nos uma cena plena
de gente que, provinda dos mais diversos recantos, se encanta com Aquele
Menino, no qual se concentra a luz que ilumina toda a cena. E o que vemos? Nada
mais do que um menino ao colo da mãe, destacando-se a sua simplicidade, perante
a multiplicidade de adornos com que se ilustram os muitos visitantes. A
simplicidade do centro perante o luxo dos restantes. Com um pormenor, porém,
que não poderá escapar: em redor, há escombros! Como se a dizer que Aquela
fragilidade ali feita Menino é expressão de que só da simplicidade se poderá
esperar a salvação: o resto, por muito que se nos afigure como certo, passará e
será superado.
Logo no segundo século se quis anular esta mensagem
plena de significado: quis-se dizer que a encarnação e a dor que o Verbo
sofrera não passaram de aparência (do grego ‘dokéô’), sendo que apenas a sua
dimensão divina importava sublinhar. A tentação do docetismo não se ficou por
esses tempos, contudo! Hoje, continua muito viva. Os mitos do transumanismo e
pós-humanismo que se propõem eliminar a condição corpórea do homem e reduzi-lo
ao pensamento, numa revisitação do mito gnóstico, recuperam a sedução de sereia
que o discurso doceta tentara introduzir, no pensamento cristão.
Já Leão Magno alerta para isso, no século V, no seu
sétimo sermão do Natal do Senhor, ao lembrar-nos: '[...] que o Verbo se tenha
feito carne não significa que a natureza de Deus se tenha mudado em carne, mas
que a carne foi tomada pelo Verbo para ser assumida na unidade da pessoa: e por
este nome «carne» há-de entender-se o homem todo, com o qual, dentro do seio da
Virgem Maria [...] tão inseparavelmente se uniu o Filho de Deus que aquele que
tinha sido gerado da essência do Pai fora do tempo, esse mesmo no tempo nasceu
do seio da Virgem.’ S. Leão Magno - Sétimo Sermão do Natal do Senhor, n.2
A carne, enquanto manifestação física da
corporeidade, é parte da identidade do homem. É desta identidade que nos fala o
Natal. Aquele Menino não é uma mera alusão ao divino: n’Ele revela-se o divino,
reconhecendo-se, assim, a dignidade da condição integral do homem, enquanto
‘espírito encarnado’. O homem não é, apenas, a sua interioridade encarcerada no
corpo. Ele é história, ele é narrativa, ele é fragilidade sempre a superar-se,
mas nunca definitivamente ultrapassada. A debilidade, a fragilidade é parte
identificadora da humanidade. Como, aliás, se expressa, na própria palavra
‘humano’. O humano é aquele que é
‘feito de húmus’, feito de
fragilidade, feito de ‘terra e pó’. Negar a debilidade, negar a fragilidade é
negar a humanidade. E tantos são os que o querem fazer, hoje. E isso é o que o
Natal, celebrado ano após ano, se recusa a aceitar. No Natal, renascem para a
condição humana, no débil e frágil Menino, todos aqueles que os perfeitos querem rejeitar.
Santo e Feliz Natal para todos… os humanos!