segunda-feira, dezembro 17, 2018

Natal, o elogio da fragilidade


O Natal comporta uma mensagem que, 2000 anos volvidos, continuamos a ler de modo nunca completo. Assim são, de qualquer modo, os mistérios, na sua própria definição e leitura cristã: realidades tão densas de significação que só, de forma balbuciante, vamos captando. Vamo-nos acercando do seu significado, mas sempre conscientes de muito nos continuar a escapar, natureza que torna distinto o entendimento do mistério em relação ao que, habitualmente, consideramos ser um enigma. O mistério, para o cristianismo, não é um enigma: o que se sublinha não é o seu caráter oculto ou desconhecido, mas a sua densidade que confere significado para a existência humana. Como não olhar, então, para o sinal sempre mais e mais iluminador que nos vem do presépio? E de que nos fala o presépio?
Num magnífico quadro de 1828, em que retrata a adoração dos magos, Domingos Sequeira, um nosso pintor singular, situado na transição entre o neoclassicismo e o romantismo, apresenta-nos uma cena plena de gente que, provinda dos mais diversos recantos, se encanta com Aquele Menino, no qual se concentra a luz que ilumina toda a cena. E o que vemos? Nada mais do que um menino ao colo da mãe, destacando-se a sua simplicidade, perante a multiplicidade de adornos com que se ilustram os muitos visitantes. A simplicidade do centro perante o luxo dos restantes. Com um pormenor, porém, que não poderá escapar: em redor, há escombros! Como se a dizer que Aquela fragilidade ali feita Menino é expressão de que só da simplicidade se poderá esperar a salvação: o resto, por muito que se nos afigure como certo, passará e será superado.
Logo no segundo século se quis anular esta mensagem plena de significado: quis-se dizer que a encarnação e a dor que o Verbo sofrera não passaram de aparência (do grego ‘dokéô’), sendo que apenas a sua dimensão divina importava sublinhar. A tentação do docetismo não se ficou por esses tempos, contudo! Hoje, continua muito viva. Os mitos do transumanismo e pós-humanismo que se propõem eliminar a condição corpórea do homem e reduzi-lo ao pensamento, numa revisitação do mito gnóstico, recuperam a sedução de sereia que o discurso doceta tentara introduzir, no pensamento cristão.
Já Leão Magno alerta para isso, no século V, no seu sétimo sermão do Natal do Senhor, ao lembrar-nos: '[...] que o Verbo se tenha feito carne não significa que a natureza de Deus se tenha mudado em carne, mas que a carne foi tomada pelo Verbo para ser assumida na unidade da pessoa: e por este nome «carne» há-de entender-se o homem todo, com o qual, dentro do seio da Virgem Maria [...] tão inseparavelmente se uniu o Filho de Deus que aquele que tinha sido gerado da essência do Pai fora do tempo, esse mesmo no tempo nasceu do seio da Virgem.’ S. Leão Magno - Sétimo Sermão do Natal do Senhor, n.2
A carne, enquanto manifestação física da corporeidade, é parte da identidade do homem. É desta identidade que nos fala o Natal. Aquele Menino não é uma mera alusão ao divino: n’Ele revela-se o divino, reconhecendo-se, assim, a dignidade da condição integral do homem, enquanto ‘espírito encarnado’. O homem não é, apenas, a sua interioridade encarcerada no corpo. Ele é história, ele é narrativa, ele é fragilidade sempre a superar-se, mas nunca definitivamente ultrapassada. A debilidade, a fragilidade é parte identificadora da humanidade. Como, aliás, se expressa, na própria palavra ‘humano’. O humano é aquele que é ‘feito de húmus’, feito de fragilidade, feito de ‘terra e pó’. Negar a debilidade, negar a fragilidade é negar a humanidade. E tantos são os que o querem fazer, hoje. E isso é o que o Natal, celebrado ano após ano, se recusa a aceitar. No Natal, renascem para a condição humana, no débil e frágil Menino, todos aqueles que os perfeitos querem rejeitar.
Santo e Feliz Natal para todos… os humanos!

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