Esse é, porém, um aspeto de ordem
formal. O importante é o que está em causa.
E o que está em causa é, antes de
mais, um sinal grave que a sociedade interpretou como se previa. Já então
muitos foram os que alertaram para o risco de uma lei que legitimasse o
abortamento voluntário contribuir para o agravamento do desprezo pela vida
humana. As taxas de fecundidade como as que Portugal apresenta (em 2017, foi de
1,37 filhos por mulher em idade fértil; deveria ser, no mínimo de 2,1 para
permitir reposição da população) e os saldos naturais negativos (relação entre
total de mortes e de nascimentos, em cada ano) vêm comprovar a pertinência
desses alertas. Portugal começa a apresentar saldos naturais negativos em 2007,
antes da crise a que muitos querem atribuir a responsabilidade por Portugal ter
uma crise de nascimentos. A crise tem uma data (15 de setembro de 2008, momento
da falência do Lehman Brothers, cujas ondas de choque não chegam logo a
Portugal). A crise demográfica é anterior a essa data, pelo que não é honesto
atribuir à posterior crise económica uma causalidade preveniente. Bem certo que
as mudanças na lei do aborto, em 1984, em 1997 (mudanças de prazos legais para
a sua prática, dentro das condições definidas em 1984) e em 2007, terão de se
somar a outros fatores, mas o seu efeito de desblindagem do reconhecimento da
inviolabilidade da vida humana e na insensibilidade perante a beleza da geração
de novas vidas é inquestionável.
Some-se a esta preocupação com o
efeito na sensibilidade perante a importância de gerar a vida um outro efeito
poucas vezes referido. Como pode esperar um combate eficaz à violência uma
sociedade que aceita, pacífica e pacatamente, a violência naquela que é a
relação primordial e mais simbólica de todas, a relação entre mãe e filho? Uma
sociedade que se insensibiliza perante a violência de uma mãe contra o seu
próprio filho ainda indefeso já está predisposta para aceitar toda e qualquer
outra violência. E todos esses sinais e temores têm saído confirmados, ao longo
dos doze anos que nos separam da decisão de aceitar que, até às 10 semanas de
gestação, uma mãe possa impedir o seu filho de viver e desenvolver-se.
A pergunta é, seguramente, a
seguinte: a pretexto de quê?
Da liberdade? Mas, pode alguém
ser livre contra outro? E pode a liberdade ser entendida como mero exercício de
vontade? Onde fica, na decisão livre, o discernimento e o reconhecimento da
verdade daquilo que a vontade pode destruir? E se a liberdade for exercício de
vontade apenas, porquê, então, não deixar à vontade de cada um todas as demais
decisões da vida? Porque não há-de respeitar-se a vontade de cada um quando tal
respeita a outras tantas matérias da vida em sociedade? Porque, bem certo, a
liberdade não é puro exercício de vontade, como é sabido, mas sim capacidade de
discernir e escolher o melhor. O resto é arbitrariedade. E é por isso que é
legítimo submeter a vontade ao que a inteligência considera o melhor. É essa a
opção de um Estado de direito em tantas, tantas matérias. Mas não foi assim, em
relação à vida humana.
Dizem alguns: ‘Foi uma questão de
respeito pelo direito da mulher a decidir, pois tal será um direito humano’.
Tal convicção caiu por terra,
quando o Tribunal Europeu dos Direitos humanos deliberou, sem possibilidade de
recurso, em 16 de dezembro de 2010, com 11 votos a favor e 6 contra, que o
aborto não é um direito humano e, por isso, é legítimo que os Estados o
penalizem. E por um motivo simples. O filho que se desenvolve no útero materno
é já alguém, é uma identidade única, merecedora de proteção, pelo que atentar
contra esse alguém exige explicação sobre os motivos de tal ação. Não é
qualquer ideologia que o afirma; são os dados da genética que evidenciam a
unicidade de cada um, desde a primeira hora. O filho em desenvolvimento não é
uma ‘coisa’, como afirmaram muitos, no período que antecedeu os referendos,
recuperando uma estratégia de ‘desumanização’ dos filhos humanos em gestação.
Estratégia antiga tão bem conhecida. Os que queremos eliminar não podem ser um
de nós; se o fossem, não os eliminaríamos!
Sobrou, então, que era uma
decisão que devia ser entregue às mulheres, pois é um direito destas.
Curiosamente, também a esta convicção restou pouco caminho para andar. A
realidade vem demonstrando que, por causa de algumas mulheres que queriam
abortar, ficaram desprotegidas todas as que querem gerar a vida. Muitas são as
que vão dizendo, de forma discreta, que ocultaram dos seus patrões ou
companheiros a sua gravidez, até às dez semanas, para que não se vissem
coagidas a abortar. Uma lei que se defendeu a pretexto de proteger as mulheres
voltou-se, afinal, contra elas próprias. Nada que não se adivinhasse, pois o
erro está no ponto de partida. Como pode defender-se que as leis protegem bens
e valores se, na hora mais grave em que o devem fazer, as leis os desprotegem?
E, neste caso, está desprotegido o bem que é irreversível quando desrespeitado:
a vida frágil e totalmente dependente de alguém.
Acrescentou-se, ainda, que era
necessário fazer uma lei que repercutisse o facto de ser a mulher a gerar o
filho. É por esse motivo que, durante as dez semanas, só a mulher pode decidir.
O pai que contribuiu para gerar a vida nada pode fazer e não tem qualquer
direito, nesse período. A pergunta que, naturalmente, deveriam fazer os
juristas mais avisados só poderia ser esta: como pode exigir-se, a partir das
dez semanas, que tenha deveres alguém que, durante as primeiras dez semanas,
não teve quaisquer direitos? O pai não gera às dez semanas; gera no início. O
Direito (jus) está suspenso, durante dez semanas?
Tal situação demonstra a incoerência
da lei; não só a incoerência material, pois desprotege bens essenciais em
benefício absoluto de outros bens que se quis colocar em conflito (a liberdade
(?) em prejuízo da vida), mas também a formal: é uma lei que, por ser
arbitrária e discricionária sobre quem escolhe para reconhecer direitos e quem
exclui deles, gera condições para posteriores problemas de conflitualidade
gratuita. E isso tem pouco de lógica e coerência esperadas no sistema jurídico
de um Estado de direito.
Outras convicções poderíamos
invocar para, perante o fracasso a que as veio a expor a realidade posterior,
evidenciar que esta é uma lei que urge modificar.
Mas, acima de todos os motivos,
importa olhar, com coragem, os dados que a todos nos deveriam envergonhar.
Desde 2007, ano em que se realizou o segundo referendo e se operou a alteração
mais grave na lei sobre o abortamento voluntário (em 1984, já tinham sido
admitidas as situações de violação, malformação e perigo para a saúde física ou
psíquica da mulher; a partir de 2007, passa a ser legítimo abortar até às 10
semanas sem dar quaisquer razões), já se realizaram mais de 172 mil abortos
(dados até 2016; o relatório referente a 2017 ainda não foi publicado),
correspondendo a mais de 15 mil em cada ano (só em 2007 é que se ficou pelos
7213, dado que a regulamentação só entrou em vigor em julho desse ano). Acresce
a isto que cerca de 27% são abortos repetidos (a mesma mulher realizou mais do
que um), sendo que, do total de abortos realizados em cada ano, apenas 3% a 4%
são pelos motivos previstos na lei de 1984 (malformação, violação ou perigo
para a saúde física ou psíquica da mulher); os restantes 96% a 97% dos casos
são sem razão apresentada pela mulher. E não serve nem colhe o argumento de que
se conseguiu saber, com esta lei, quantos abortos se realizam (a estatística
vale mais do que a vida humana?) ou que se está a diminuir o número de abortos,
ano após ano. É bem sabido como é que tal está a operar-se: basta saber como
andam os números da pílula dita ‘do dia seguinte’, também ela, em muitos casos,
abortiva, e que contribui, com custos sérios para a saúde da mulher, para
antecipar o abortamento posterior.
Não nos merece isto uma profunda
reflexão e inquietação? Vale assim tão pouco a vida de cada um de nós? Quanto
vale, afinal, para nós, a dignidade da vida humana?