quarta-feira, junho 17, 2020

A grande mentira


O mundo tem assistido a mudanças vertiginosas, apresentadas como espontâneas, naturais e imparáveis. Pudéssemos ‘regressar’ ao futuro e olhar para trás, com independência, as grandes decisões das últimas décadas (particularmente a partir da conferência do Cairo sobre a população, realizada em 1994) e notaríamos uma tónica comum (nestes tempos atonais, não deixa de ser paradoxal!): diz-se que ‘somos muitos, somos demasiados, pelo que temos de diminuir a população mundial’.
Grande parte das decisões tomadas, desde finais da década de 60, explicita ou mantém implícita a estafada tese malthusiana (Malthus viveu entre 1766 e 1834, mas a sua tese de que ‘o crescimento da população é geométrico, enquanto a alimentação é numérica’ permanece viva, apesar de repetidamente negada pela realidade).
Antes de avançarmos, recuperemos a primeira ideia aqui apresentada – a da espontaneidade das mudanças – para a contestar e deixar muito clara a consciência de que as mudanças têm sido conduzidas por instituições, lóbis e organizações devidamente identificadas que se propõem defender, nos areópagos internacionais, as suas agendas, (vale a pena ler, a este propósito, dois livros muito esclarecedores: Gabriele KubyA revolução sexual global: destruição da liberdade em nome da liberdade (2019) e Marguerite PeetersA globalização da revolução cultural ocidental: conceitos-chave e mecanismos operacionais (2015), ambos editados pela Principia) e pelo que nada têm de natural e imparável as mudanças que, a pretexto da tese que aqui iremos denunciar, se propõem desnaturalizar a ‘natureza humana’.
[Entendo por ‘desnaturalizar’ a natureza humana o esforço de negar a importância da condição natural como condição necessária para entender a dimensão cultural do ser humano. O homem é cultural numa natureza que ele recebe e que lhe é prévia. Ele realiza-se enquanto natureza humana que se torna cultura. A ‘desnaturalização’ da natureza humana tudo reduz a construção cultural. No limite, a própria condição sexuada do ser humano é desvirtuada da sua dimensão natural para ser reduzida a um constructo cultural e social.]

Seremos, mesmo, muitos?
Retomemos a questão malthusiana, explicitando que a nossa tese é a de que, de facto, não somos muitos. Somos, quando muito, ‘malcomportados’, isto é, o risco da nossa existência para o ambiente não decorre do nosso número (tese a analisar), mas dos comportamentos que temos.
Senão, vejamos…
Para evidenciar como não somos, efetivamente, muitos, perguntemo-nos o seguinte (a pergunta devo-a ao jornalista e amigo, António Jorge Ferreira, que, um dia, ma formulou nos termos em que a vou apresentar): imagine-se que procurávamos reunir todos os 7 mil milhões de humanos num só espaço em que a cada humano se atribuiria uma área de um metro quadrado (m2). Que território ocuparia essa mole humana?
Deixo a pergunta ao leitor. Em que território caberia a população mundial, dentro desta condição matemático-geométrica?
Já a formulei a diversos públicos e as respostas foram de ‘continente europeu’ a ‘toda a área de Portugal até Vladivostok’, a ‘toda a Terra’, enfim.
Mas procuremos, então, fazer a análise pela via matemática.
Comecemos por recordar que uma área de 1 m2 é a que corresponde a um quadrado com um metro de lado. Por seu turno, um espaço com um quilómetro quadrado (Km2) é o que corresponde a um quilómetro de lado, o que significa que tem 1 milhão de metros quadrados. Está fácil de concluir, desde já, que, na área de um quilómetro quadrado caberia um milhão de humanos, aplicando o teor da proposta que estamos a analisar. Estendendo a ideia… em 10Km2, caberiam 10 milhões de humanos (todos os portugueses, afinal) e em 100 km2, caberiam 100 milhões de humanos. Saltando para o final do raciocínio, os 7 mil milhões caberiam em 7000 Km2.
Fica a faltar a identificação mental de um território que corresponda ao final do nosso raciocínio: o que tem a área de 7000 Km2?.
Para os que tinham afirmado que precisaríamos de toda a Terra, logo ficariam excluídos da verdade ao verificarem que a Terra tem uma área de 510 milhões de Km2. Muito mais do que a área de que necessitamos.
Os que pensaram no território da Europa e Ásia (de Portugal a Vladivostok) também rapidamente concluirão que 54 milhões de km2 são área a mais para albergar os nossos ‘modelos’.
E na Europa? 10 mil milhões continuam a ser área a mais.
Portugal? Dos seus cerca de 92 mil Km2 também demasiado espaço sobejará.
Teremos de concluir que, afinal, caberíamos num só dos nossos distritos, que não o maior de todos. Caberíamos no distrito de Évora, que tem cerca de 7393 Km2.
E se decidirmos alargar a área a conceder a cada humano para 4 m2 (2 metros de lado), verificaremos que a área do Alentejo e Algarve é suficiente para albergar todos os humanos vivos, atualmente.

Ou seremos, afinal, malcomportados?
Naturalmente, do que acima se trata é de um puro exercício matemático, mas que denuncia que, afinal, não seremos tantos, numericamente falando, como nos querem fazer crer, sendo que, para além disto, há que ter em conta que o crescimento da população não é um mero exercício de geometria, pois fatores como, por exemplo, as pandemias (!) as guerras, as políticas, as adversidades de vária monta interferem nas variações dos números demográficos. E tudo indica que, afinal, a população mundial volte, de novo, a decrescer (Cfr. Robert E Ricklefs, A economia da natureza (2010))
Será fácil concluir, então, que esta mentira muito bem construída terá de ser substituída pelo reconhecimento de que o problema da demografia humana não é quantitativo, mas sim de ordem moral. Temos de converter a nossa forma de estar, não porque tenhamos medo – o medo não é bom fundamento da moral! –, mas porque reconhecemos o mundo como um lugar a respeitar e acolher como recebido e a transmitir. Outra ordem moral se impõe, mas não a dos lóbis fraturantes: antes a que nos assume como um ser criado e devedor de Fonte Maior a quem se deve reconhecer o senhorio do mundo e não considerando-se a si próprio – ‘Humano’, afinal! – como o Senhor absoluto de um mundo a dominar. Enquanto esta conversão não ocorrer (construam-se lóbis para isso, sim!), por poucos que formos, seremos sempre demasiados, tal a sofreguidão.
Até quando nos manterão sob a influência da grande mentira?

(Nota: as informações sobre as áreas territoriais foram recolhidas da wikipédia em 17 de junho de 2020)

quinta-feira, junho 04, 2020

A eutanásia e a falência da Razão


Os tempos estão paradoxais…
Confinámo-nos, certos de que a proteção de todos merecia a nossa autolimitação de movimentos e relacionamentos. E fizemo-lo sabendo que a autonomia não era um valor absoluto; antes, a solidariedade e a proteção dos mais frágeis, em nome da sua comum dignidade humana, poderiam sobrepor-se ao exercício da autonomia. Umas tais circunstâncias evidenciaram que cabe à ‘autonomia’ reconhecer a irrefutabilidade do pressuposto da anterioridade da vida; a não ser assim, a autonomia contradiz-se porque se anula, no preciso momento em que se exerce. Proteger e cuidar sempre da vida é cuidar do incerto e inseguro que esta é perante a certeza do limite e da morte. A vida é que carece, por isso, de toda a proteção. Como em tempos recordámos, impõe-se, perante isto, uma ética das decisões reversíveis. A qualidade de vida, a autonomia, o bem-estar, etc, são qualidades muito importantes, fundamentais em sociedades modernas, mas sempre reversíveis, sempre suscetíveis de melhoria. Já a vida e a morte não são reversíveis nem permutáveis. Uma implica a ausência da outra. E isso estabelece o limite da nossa ação: esta é legítima até ao limite da reversibilidade. Torna-se ilegítima quando pretende considerar-se detentora da possibilidade de se exercer, mesmo sobre as condições irreversíveis.
Já G. Zagrebelsky, presidente do Tribunal Constitucional italiano o recordava, no seu livro ‘a crucifixão e a democracia’, quando falava do limite da decisão democrática. Recordava este especialista em direito, que ‘as democracias, que não queriam derivar em ditaduras baseadas na arbitrariedade de quem decide, devem ter consciência de que há matérias sobre as quais não podem decidir. Já em artigo anterior recordei que este reconhecido jurista «alerta para os perigos das democracias que se consideram legitimadas para legislar sobre tudo, até sobre os valores que estruturam a sociedade que deviam servir. Chama a estas ‘democracias céticas’, para quem o que interessa é conservar o poder, bastando-se com os indicadores das sondagens, ou ‘democracias dogmáticas’, possuidoras da verdade absoluta, sentindo-se, por isso, autorizadas a mandar na própria vida e morte dos cidadãos. Por oposição a estes dois modelos de democracia, Zagrebelsky propõe o que chama «democracias críticas», que poderíamos designar como ‘autocríticas’ que se sabem frágeis e suscetíveis de manipulação, pelo que não legislam de modo a pôr em causa o que une os cidadãos. Não legislam sobre a vida e a morte, mas acolhem os limites próprios decorrentes da natureza humana.’ (Ver artigo nosso A EUTANÁSIA NÃO RESPEITA OS DIREITOS HUMANOS | É TÃO FRIA A MORTE!’)
Quando emergiu, numa melopeia repetitiva, a ideia de que o parlamento se preparasse para legalizar tais práticas, sucederam-se as argumentações, mobilizaram-se as ordens de médicos, de enfermeiros e tantas outras associações e movimentos de sociedade, mobilizaram-se dezenas de milhares de subscritores contra tais decisões, publicaram-se argumentários, reuniram-se dados estatísticos irrefutáveis, congregaram-se as vozes dos que representam o sentir real do povo que se quer ver protegido e cuidado, agregaram-se as religiões (que, é bom que se diga, representam mais de 85% da população portuguesa*) em declarações conjuntas, etc., etc., etc…; dados e factos e entidades que demonstram o erro da legalização da eutanásia.
Mas fica a faltar um dado que toda esta panóplia de razões válidas esquece: o Parlamento tem o poder e quer exercê-lo! Mesmo que seja contra o seu povo!
Não haverá argumentos nem demonstrações, porque a decisão está tomada. Há-de mobilizar-se a imprensa leal aos secretos movimentos para que pareça que o facto está consumado e de modo a parecer que esta é a mais moderna decisão. Serão invocadas supostas razões de liberdade, será afirmada a estrita aplicação em circunstâncias que levarão a crer que, afinal, até quase que não se aplicará. Será afirmada, à saciedade, que é só para os que a quiserem… Como se o direito se fizesse para alguns; como se a lei fosse particularista e não universal; como se não recaísse sobre todos a sombra da pressão para se pedir a eutanásia quando já formos um peso; como se, na fragilidade, não fôssemos tão dignos como no fulgor da vida. 
E um silêncio ‘esclarecedor’ se abaterá sobre esta matéria quando ela, ao serviço do poder despótico de uma certa composição parlamentar, estiver tomada como se pretendia. 
Não passarão! Não podemos deixar que passe uma tal decisão. 
Em nome de todos! Em nome da verdadeira liberdade que é a capacidade de discernir o melhor e não a voluntarista decisão de fazer o que se quer! Em nome da razão e das razões!

(*Conferir https://www.dn.pt/portugal/portugueses-sao-mais-cristaos-e-vao-mais-a-igreja-do-o-resto-da-europa-9396819.html - informação corrigida em 6 de junho de 2020)

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

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