terça-feira, setembro 22, 2020

Cidadania e desenvolvimento | Conseguir discutir sem falar do assunto!

A discussão sobre Cidadania e desenvolvimento tem vindo a revelar, por um lado, pouca cidadania e, por outro, pouco desenvolvimento do espírito crítico.

Senão, vejamos…

Perante a dificuldade (ou o desejo de não o fazer) em analisar, com lógica e respeito, o que se discutia, no manifesto pelas ‘liberdades de educação’, o que se tem visto fazer é investir contra o mensageiro.

Para tal, não têm faltado rótulos que denunciam que estamos perante um enorme desassossego que revela pouca paz e pouca disponibilidade para discutir o que está, de facto, em causa.

Recuperemos o que está, realmente, em questão.

O que o manifesto solicita é, apenas, o seguinte: ‘respeitem a objeção de consciência das mães e pais quanto à frequência da disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento’.

E, para perceber se este pedido é legítimo, basta observar que este direito é protegido, quer pela Constituição da República Portuguesa (artigos 6º, 41º e 43º), quer pela lei de bases do sistemas educativo (uma lei de valor reforçado) que, no seu artigo 7º, alínea n) afirma, de forma muito clara que um dos objetivos do ensino básico é ‘n) Proporcionar, em liberdade de consciência, a aquisição de noções de educação cívica e moral’ (O itálico é nosso).

Onde está a dúvida?

A discussão saiu deste âmbito restrito e tem sido contaminada (é a palavra certa!) com preconceitos (Extremistas! Radicais!, etc.) esquecendo-se que o que se está a afirmar decorre da lei fundamental, da Constituição da República Portuguesa.

Outros, mais recentemente, vêm investir contra os subscritores católicos, argumentando ausência de fundamentos teológicos para tal posição.

Como assim?

A Doutrina Social da Igreja é a responsável pela identificação de um princípio que, hoje, foi assumido quer pela nossa Constituição da República, quer na própria organização das estruturas Europeias. O dito princípio dá pelo nome de ‘princípio da subsidiariedade’ e teve a sua primeira grande formulação no pensamento de PIO XI, na encíclica Quadragesimo Anno. O referido princípio diz, de forma simples, que, se um problema pode ser, justamente, resolvido por uma instância mais próxima das pessoas, não deve ser uma instância superior a fazê-lo. Resumimos o que é dito do seguinte modo: ‘assim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir, é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los.’ (Pio XI, Quadragesimo Anno (1931), capítulo V.)

Este princípio acautela, precisamente, o dever de o Estado respeitar os corpos sociais intermédios, destacando-se o dever de respeitar a família nas suas missões específicas e, entre elas, a de educar. À luz deste princípio, não é o Estado que faz um favor ao reconhecer às famílias o seu direito e dever de educarem os seus filhos. Antes, é a sociedade e, nela, a família que solicita ao Estado ajuda para suprir aquilo em que ela se sente menos capaz. É por isso que se vale do saber que o Estado possui, através dos seus agentes, para formar cientificamente os seus filhos, pois, de outro modo, não o conseguiria. Mas, em matéria de educação cívica e moral, essa é uma reserva sua.

Mas, poderiam alguns dizer, porquê tanto alarido em torno de uma disciplina que é tão boa como ‘cidadania e desenvolvimento’, segundo dizem?

Importa, aqui, seguir duas linhas de análise.

Em primeiro lugar, atendendo à questão de princípio.

Seja boa ou não o seja, o dever de respeito pela liberdade de consciência dos pais na escolha do seu modelo educativo, em matéria de educação cívica e moral, tem de ser salvaguardado e respeitado. Assim em relação a Cidadania e Desenvolvimento, assim em relação a qualquer outra formação moral. (Assim acontece, por exemplo, o que, em nosso entendimento, faz jurisprudência para a análise deste caso, no que se refere a Educação Moral e Religiosa que é disciplina que, sendo de oferta obrigatória é de frequência facultativa, precisamente em respeito para com este mesmo princípio. Basta ver o que se afirma no acórdão 423/87 do Tribunal Constitucional).

Em segundo lugar, observando a materialidade da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.

É no âmbito desta segunda linha que se observa que a discussão está deslocada do ‘assunto’.

Cidadania e desenvolvimento não é só uma bondosa disciplina em que se desenvolvem projetos solidários, atividades de promoção da dignidade da pessoa humana, de respeito pelo outro.

A disciplina tem muitos vetores altamente problemáticos, seja em matéria de educação da sexualidade (sabemos o que se vem defendendo a pretexto da saúde reprodutiva; a este pretexto, diga-se que é o tribunal europeu dos direitos humanos a afirmar que não pode considerar-se o aborto um direito humano! Veja-se acórdão de 16 de dezembro de 2010), da igualdade dos géneros (veremos de seguida), de educação ambiental (que matriz se defende: uma ecologia em que as espécies têm todas a mesma dignidade?), etc.. Como não há educação neutra, e não é explicitada a matriz ‘ideológica’ que as suporta, cidadania e desenvolvimento ou é um mero areópago de discussões (bastava criar um programa de televisão!) ou é um lugar de inculcação positivista de leis escritas (faz isto; evita aquilo, pois é o que está escrito na lei. Será pouca cidadania ativa, mas simples criação de autómatos.) ou, então, é espaço de transmissão de uma matriz de valores cujos fundamentos deveriam ser explicitados. Não o sendo, fica vulnerável à manipulação e ao trabalho ideológico.

Soma-se a este pressuposto que uma das áreas temáticas (domínios) de caráter obrigatório em todos os anos e ciclos aparece sob a capa de igualdade de género (a luta abnegada pela igualdade de oportunidades para homens e mulheres) sendo, porém, um alçapão para que se desenvolva uma nova antropologia de matriz platónica. Veremos isso já a seguir.

Muitos dirão. Mas eu sou platónico…

Muito bem. Subscreva a disciplina, mas permita que quem não o for se demarque dela.

Já em 2018 (no artigo ‘O adeus à racionalidade na Educação?) alertávamos para esta marca ideológica da disciplina. Veja-se, a título de exemplo, o que é referido nos guiões de educação género e cidadania, para o pré-escolar: «O termo sexo é usado para distinguir os indivíduos com base na sua pertença a uma das categorias biológicas: sexo feminino e sexo masculino. O termo género é usado para descrever inferências e significações atribuídas aos indivíduos a partir do conhecimento da sua categoria sexual de pertença. Trata-se, neste caso, da construção de categorias sociais decorrentes das diferenças anatómicas e fisiológicas.» (Guiões de Educação Género e Cidadania – pré-escolar – in http://www.dge.mec.pt) [O destaque é nosso.]

O que se irá, por isso, problematizar, na disciplina, não é a questão da indiscutível igualdade entre homem e mulher, mas sim que o género é uma mera construção mental, devendo considerar-se que todos os géneros são equiparáveis e fruto de uma mera construção individual. E mais. Pretende-se, sob a capa do respeito pela diversidade sexual, equiparar o que não é equiparável. Recordemos, a título ilustrativo, que não somos nós que consideramos discutível que se equiparem uniões heterossexuais a outras uniões. O Tribunal europeu dos direitos humanos produziu acórdão, em 9 de setembro de 2016 (pode ver-se aqui: http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-163436), onde se afirma que a união homossexual não tem de ser equiparável, em termos de direitos, à união heterossexual, pelo que continua a ser legítimo que os Estados não os equiparem e não considerem ‘casamento’ a união homossexual. Tal demonstra quão discutível continua a ser a matéria. O respeito que é devido a toda a pessoa e à sua fragilidade não tem de implicar validar todo o comportamento e enquadrar as escolhas no mesmo registo e no mesmo enquadramento. Se cidadania e desenvolvimento afirmasse o dever de se respeitar toda a pessoa, estaríamos no âmbito dos direitos humanos e isso seria indiscutível. A pretensão de validação de toda a escolha e comportamento sem margem para a sua problematização e leitura ético-jurídica é algo bem distinto. E essa distinção não é feita, antes branqueada.

Dirão alguns que se identificam com este registo e com o que aqui denunciámos como discutível.

Sendo altamente problematizável e merecedor de análise detida, a sua posição deverá ser compaginável com a possibilidade de outros não se reverem nela, dado que não estamos diante de matérias de foro científico, mas do foro da ‘educação cívica e moral’ e, mais ainda, do âmbito das conceções ideológicas, pelo que tal papel educativo está vedado ao Estado, à luz do que é referido no artigo 43º da Constituição: «O Estado não pode programar a educação e a cultura segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas».

É isto que está em causa.

Nada há de radicalismo, de extremismo, neste pedido de que a disciplina, dada a sua natureza, seja de frequência facultativa… Há um pedido, que se espera que seja atendido, de respeito pela liberdade de escolha na educação. De outro modo, as leis e a Constituição não passarão de letra morta, em que os cidadãos não poderão confiar.

É por isto, talvez, que nos devemos preocupar com os extremismos: os dos que nos querem sonegar a liberdade, em nome de uma hipotética, bondosa e neutra educação cívica.

Quem poderia rejeitar uma educação cívica que fosse a mera afirmação do dever de respeito pelo outro, ainda que analisando, criticamente, os seus comportamentos (Sim, é um dever acolher a pessoa, ainda que possamos analisar, criticamente, os comportamentos. Tudo é suscetível de leitura moral. Importa que sejamos honestos e digamos porquê. Tudo é igualmente válido? Todos os comportamentos são igualmente aceitáveis? Aceitar e respeitar a pessoa não significa que todos os comportamentos devam ser apresentados, em contexto educativo, como igualmente válidos. De outro modo, o que será ‘educar’? Legitimar tudo o que se quer?) não impondo uma certa matriz, uma certa antropologia, uma certa visão sobre a sexualidade e os géneros?

Por este andar, ainda assistiremos ao momento em que será a Igreja a salvar o sexo. …Quando os géneros forem tantos (já são reconhecidos mais de 90!) que já nada sobre da sexualidade humana.

Nessa hora, quem ainda será livre para dizer o que pensa?

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