sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Carta ao Pe Arménio Pires Dias | Ao homem e padre que fez da fidelidade o seu lema

Escrevo-lhe, Pe. Arménio, neste dia em que saiu da nossa presença. Escrevo-lhe porque o sei na eternidade, junto de Deus, porque esse é o lugar dos homens que moldaram a sua vida à luz de Deus-Santo.

5 de junho de 1980 | 1ª comunhão
O Pe. Arménio e eu, a ler.

A sua e a minha história começam nos meus já longínquos tempos de infância, em Pessegueiro, tempos em que, inspirado na sua imagem de homem de Deus, fiel e leal, se acendeu em mim a luz de que poderia vir a ser, eu próprio, padre como via em si.

O meu caminho foi longo e levou-me a perceber que Deus me chamava a ser cristão no mundo, como leigo, mas de si nunca abandonei (e muitas vezes revisitei) a memória da rocha firme, nestes tempos tão movediços e instáveis. A sua vida foi a de um profeta para o nosso tempo, apelando à austeridade diante da ilusão de podermos viver sem Deus, mas, como os de outrora, tantas vezes incompreendido pela sobranceria com que parecemos olhar para quem nos diz o que não queremos ouvir.

Como me custou ouvir, há cerca de dois anos, a triste notícia de que a voracidade do nosso mundo o atropelara, deixando-o numa condição física que se foi agravando até ao abandono final que hoje ocorreu.

Na sua vida, havia ‘sempres’ e ‘nuncas’, porque o amor, para si, era fiel como o é Deus.

Sei que muito do que pensava, Pe. Arménio, estará reservado em escritos que, um dia, há uns cinco ou seis anos, me mostrou. Esses escritos talvez possam, algum dia, merecer ser partilhados por quem neles reveja a importância da solidez de uma inteligência fina e densa. Uma inteligência que se preocupava ao ver que o mundo se afastava, airosa e despreocupadamente, da certeza de nada ser sem Deus. Mas essa preocupação nunca o demoveu de confiar, nem lhe retirou a serenidade e a paz de quem sabe onde está a sua fonte, onde está a nascente da vida.

Pe. Arménio, recordo com saudade a sua sempre insatisfeita atitude de quem procura ouvir o que dizem os que em algum momento estiveram longe da fé. Quantas vezes lhe ouvi falar do que dizem aqueles que, um dia, se afastaram, mas que, honestamente, vieram a reconhecer que o Deus que tinham abandonado os continuava a buscar, sem cessar. Quantas vezes o ouvi referir os ateus que se tinham deixado olhar por Deus, reconhecendo a sobranceria da outrora posição descrente! As suas palavras eram as de quem sabe que o caminho do homem é um permanente superar da tentação de Adão que se quer fazer sem Deus.

A sua partida deixa-nos uma enorme missão: a de continuarmos acordados quando tudo nos quer adormecer. Adormecer à sombra da satisfação e orgulho de quem parece prescindir de Deus para se engrandecer. Quantas vezes a sua foi uma voz que clamava no deserto! A voz dos que ousam dizer que o Dia está próximo e que é ilusão viver-se sem Deus.

Pe. Arménio, a sua partida deixa-me com o coração apertado, pois em si vi um Pai, porque o é quem de nós foi ‘pároco’ em tempos tão decisivos como os da infância e juventude… Mas este é o aperto de coração de quem se sente investido de nobre tarefa: a de garantir a todos que um dia, na terra, alguém foi rocha sólida e firme quando as areias se moviam, sedutoras, sob os nossos pés.

Obrigado, Pe. Arménio. A sua partida deixa-nos um legado: o de anunciarmos, com palavras e vida, que o caminho fiel e leal continua a ser o sinal que nos pede o mundo, mesmo quando o rejeita. Pois, quanto maior for a noite, maior a importância do farol. Mesmo que, de dia, muitos o dispensem como desnecessário.

Esta é, também, hora de agradecer aos que, com amor, lhe deram o conforto e o afeto, nestes últimos tempos após o seu acidente. Na APCDI e pela mão de um dos seus sucessores na paróquia de Pessegueiro, o Pe. António, a sua vida pôde voltar, até aos últimos dias, a ser fecunda e dedicada, celebrando e rezando por todos, pelo mundo, pelos Homens que sempre amou porque neles viu a Criação de Deus que Ama.

Obrigado, Pe. Arménio. Vele por todos nós, junto de Deus a quem foi fiel toda a sua vida.

 

Com afeto,

Luís

Dignidade humana é… ser-se um fim em si mesmo, nunca meio!

 

O parlamento português está tomado por uma vertigem. E, como em todas as vertigens, parece adormecido, atónito, sem capacidade para refletir, com racionalidade e presença de espírito. O Parlamento está embevecido pela sedução do poder sem limites que lhe gera a vertigem de que falamos…

As decisões de fratura sucedem-se em catadupa, unindo-as um ponto comum: o ceticismo em relação ao que seja a dignidade humana.

Mas não duvidemos… A dignidade da pessoa humana constitui cada um de nós como um fim em si mesmo, insuscetível de ser reduzido à condição de meio. Tomar alguém como meio para um fim posterior é atentar contra a dignidade inerente a todos nós, dignidade que nos faz participantes de um ‘algo’ anterior, concomitante e posterior a nós mesmos. Ser-se humano faz-nos pertencentes a um ‘sólido’ (de que deriva a ideia de ‘solidariedade’) em que o que fazemos a um afeta todos, na medida em que afeta a natureza humana presente nesse um.

Vem isto a propósito das mais recentes decisões do Parlamento em relação a matérias que concernem ao início da vida: ‘inseminação post mortem’ e ‘maternidade de substituição’ (vulgarmente designada como ‘barrigas de aluguer’).

Ambas as decisões foram alvo de pareceres éticos negativos, mas, ainda assim, o Parlamento, [que é quem detém o poder e, por isso, se considera autorizado para decidir o que entender (!)], decidiu avançar para a sua legalização, invocando tratar-se de um avanço imparável.

Tenho-o dito muitas vezes: nada há de mais progressista do que a ética. É à ética que cabe alertar para os riscos de uma atitude conservadora e simplista que nos faz ‘fazer’ tudo o que podemos fazer. A ética diz-nos que não será sensato não subjugarmos o ‘poder’ ao que ‘é lícito fazer’, ao que ‘devemos’ fazer. Quando o ‘poder’ e o ‘dever’ se pretendem coincidentes, emergem as condições para a arbitrariedade que é má conselheira.

E é disto que se trata, nas duas situações que acima invocávamos.

Em ambos os casos estamos perante um desejo de corresponder a um pedido (em si próprio, lícito e gerador de compaixão: o de possibilitar gerar vida nova, gerar filhos), mas em que a solução se revela atentatória da indisponibilidade da dignidade de cada um. Na verdade, um olhar atento e distanciado rapidamente concluirá que, em ambas as situações, o bom fim (beneficiar da paternidade e maternidade) se faz por um mau meio, um meio que se revela instrumentalizador. O centro está, não no filho, mas no desejo de se ter filhos. O filho não é um alguém que se acolhe, é um bem que se pretende.

Bento XVI alertava, na encíclica ‘Caritas in Veritate’ (CV 3), para os perigos do amor compassivo que não respeita a verdade da natureza humana. Assim acontece, neste caso.

O filho gerado por inseminação post mortem é um filho gerado na orfandade. É um órfão no próprio momento em que é concebido. E, se a orfandade nos compadece, porque haveremos de legitimar gerar filhos já órfãos no próprio momento da sua conceção? Há algo de contraditório nisto. Uma contradição que nasce de não se respeitar que o filho não é um direito. Um filho é anterior aos nossos próprios direitos: é alguém. É uma pessoa que nos cabe acolher, amar pelo que é e não por corresponder ao desejo.

Do mesmo modo, no caso da maternidade de substituição, o filho é gerado num contexto que artificializa a relação entre mãe e filho. Sabendo-se quão relevante é o tempo de gestação na criação de vínculos, privar alguém, à partida, desses vínculos, por um motivo que se prende com o desejo dos adultos a terem um filho, desvirtua a natureza das coisas e é uma violência a que não podemos fechar os olhos. O nosso silêncio seria o de uma cumplicidade indigna por abafar o motivo de indignação. Já evidenciava Aristóteles que a virtude se opõe ao vício. O que não é virtuoso é vicioso. Se esta é uma decisão que desvirtua a natureza das coisas, não poderá pretender reconhecimento de virtude… E disso deu conta, precisamente, o Tribunal Constitucional que já se pronunciou sobre esta matéria, considerando-a inconstitucional.

Mas o Parlamento não quer saber dos que se lhe opõem. É ele que tem o poder. E quanto pode contra isso a dignidade humana?

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