quarta-feira, dezembro 14, 2022

Natal | Uma graça de Deus

 Habituámo-nos à ideia de que o que respeita à teologia é da ordem do ‘dever ser’. Aliás, um dos conceitos que a filosofia mais associa à ideia de Deus é a de ‘necessidade’ compreendida como o que ‘é e não pode não ser’.

O Natal tem, perante esta ideia de Deus, uma novidade que nunca se esgota. (Como, aliás, acontece com o que a sabedoria cristã sempre designa como mistério: tocamos nele, mas muito nos escapa, tamanha é a sua densidade.)

E essa novidade designamos como ‘uma graça de Deus’.

Poucas línguas permitem o subentendido que nos reserva este aforismo: ‘uma graça de Deus’.

Prontamente, lemos ‘um dom que Deus nos oferece, sem que o mereçamos’. E é-o, de facto. Mas considerar o Natal ‘uma graça de Deus’ tem, na língua portuguesa, uma outra linha semântica que nos passa, por vezes, despercebida. O Natal é ‘um gracejo de Deus’, uma ‘graça’, como quem nos desconcerta. Um momento de ‘humor’ que nos ilumina um beco sem saída. Tal como o humor, aliás!

Sim, o Natal é também um sinal do ‘humor’ de Deus.

O humor com que tantas vezes se nos propõe que enfrentemos a realidade dura e sombria. O humor com que, perante a teimosia de Jonas, Deus transforma o mar num cenário de uma comédia de ‘escapo e apanhas-me!’. O humor daquela anedota judaica que me chegou pela mão de Tomas Halík, no seu mais recente ‘a tarde do cristianismo’.

“[…] uma mulher reclama por Deus durante anos não ter respondido às suas petições para ganhar a lotaria. Diz-lhe o rabino: «Mas Deus já te respondeu! A Sua resposta foi ‘não’.” (T. Halík, A Tarde do cristianismo, Paulinas Editora, p. 249). Deus quer que aceitemos o seu Humor, mas nós temos mau humor e só queremos que Ele faça como exigimos…

Não procuro, aqui, fazer um jogo fácil de palavras, concluindo que Deus seja, não apenas, Amor, mas também Humor.

Sê-lo-á, certamente, não porque deva reduzir-se o mundo a uma grande anedota, mas guardando, antes, do humor o que ele tem de mais essencial e crucial: o humor é sempre o desconcertante, o que desperta a alegria, o que faz disponibilizar, para o inesperado, o coração empedernido.

O humor com que Deus desbrava a escuridão da noite do mundo, para se fazer nascer, frágil e despojado, numa manjedoura, não é apenas um ‘é assim porque tinha de ser’. É, antes, uma surpresa, uma desbragada gargalhada perante os fortes do tempo e do mundo, convencidos de que tudo teria de permanecer como sempre fora até então.

O Natal de Belém, o verdadeiro Natal, é um acontecer da surpresa, porque o que é ‘graça’ é ‘de graça’. Pois, como dirá, pouco mais tarde, S. Paulo, ‘onde abundou o pecado superabundou a graça’. Deus dá gratuitamente… e sorri, porque sabe que as sombras e o abismo não vencerão.

O humor do Natal é, por provir de Deus que é Criador, uma afirmação da condição do mundo criado. O dinamismo do mundo faz-se do gerar coisas novas onde há surpresa. O novo emerge como um momento de humor, de desconcerto.

Veja-se o eclodir da vida. Cada novo rebento é um sinal de júbilo, um desconcerto de vitória sobre a morte.

Na linha de um grande pensador e teólogo do século XX, Teilhard de Chardin, poderíamos afirmar que toda a evolução, que se encaminha para a Cristogénese, só é possível se houver este acontecer de momentos de novo, de desconcerto que surpreende e em que a novidade pode eclodir. Até a física contemporânea evidencia, com as teorias do caos, - que, na aparência se afiguravam a negação do lugar do transcendente, - abre caminho a um outro olhar sobre a realidade que é, afinal, um estado de permanente milagre.

O mundo espanta… O mundo surpreende… O mundo desconcerta… E emerge o novo!

A criatura participa da realidade de Deus que é novidade constante e que, no tempo, e num tempo concreto, desconcertou, rebaixando-se à condição da criatura para lhe revelar Quem era e quem ela própria era, afinal.

E será fácil, então, percebermos que Deus também seja humor porque o Amor que Ele é (não apenas ‘tem’) gera sempre coisas novas, porque o amor é fecundo em si mesmo.

O emergir de coisas novas é ‘graça’ que faz inundar de riso o mundo e o tempo.

E o mal, a escuridão e o abismo já não terão a última palavra nem voz.

Porque Alguém, antes de todos os outros, ‘achou graça’ e deixou-se encher da Graça!

sábado, novembro 19, 2022

A defesa da vida humana | O que ouve quem nos ouve?

Imagine-se a seguinte afirmação: ‘os que legalizaram o aborto até às dez semanas queriam era levar à prisão todas as mulheres que o praticam fora desse prazo’. Ou a seguinte: ‘quem defende o fim da pena de morte quer é ver na rua todos os que praticam crimes’. Ou, ainda, esta: ‘quem defende que deve haver faltas nas escolas quer chumbar todos os alunos que faltam’. 

São frases absurdas?

Pois bem. São-no tanto como a que diz que quem é contra a legalização do aborto quer ver na prisão as mulheres que o praticam.

Mas o que é certo é que esta última tem feito caminho, tem sido repetida até à náusea, com consequências muito nefastas. Basta que se pense que, com ela, muito se tem contribuído para ridicularizar a ação dos que defendem que o aborto é um erro. Tal ridicularização tem feito com que só os mais corajosos continuem a ousar dizer, publicamente, quão errada é esta prática, ainda que sabendo que a ousadia de o dizerem os cobrirá de vergonha e com um manto de suspeita de que serão radicais, fundamentalistas e incompassivos. Sublinhe-se que a lei tem uma função pedagógica. Ao relativizar uma prática que é ofensiva da dignidade e violenta, está a transmitir uma mensagem à sociedade: a de que é uma prática tolerável. É isto que está em causa na legalização do aborto: legalizar diz que é aceitável. 

É por isto que não posso concordar com o que li, há dias, no mais recente livro de Tomas Halík, um autor que sigo e cujos méritos permanecem intocáveis, apesar da crítica que me valem as suas palavras sobre os movimentos de defesa da vida. 

Diz Halík: ‘Também eu tenho um respeito sagrado pela vida do nascituro, mas não posso participar nas marchas daqueles que se fixaram obsessivamente nesse assunto e transformaram o Cristianismo numa cruzada militante para criminalizar o aborto e proibir a contraceção. Fizeram dessa agenda o principal – e muitas vezes o único – critério para aferir o grau de «Cristianismo» dos políticos e o seu sentido de voto nas eleições, tornando-se presa barata para astutos demagogos.’ (T. Halík, A tarde do cristianismo, Ed. Paulinas, p. 114)

Não posso concordar porque não tenho o direito a julgar os motivos que levam os participantes nestas marchas que Halík aqui ridiculariza. Já participei e organizei muitas dessas marchas e encontrei múltiplas razões entre os participantes. Alguns, inclusive, porque tinham vivido, de perto, a dor da perda, por aborto espontâneo, de um filho, e sabiam o que tal significava de perda de esperança e futuro. 

Mais, ainda… É uma ‘obsessão’ como tantas outras em que participei. Também participei e organizei iniciativas contra a pena de morte; contra a tortura, contra a eutanásia… OU, melhor. A favor do respeito pela dignidade humana. E isso não me parece uma obsessão, mas um dever. 

Sendo que, a ‘obsessão’ contra a legalização do aborto, da eutanásia, da pena de morte, tem o condão de estar marcada pela urgência. Cada atraso (de um dia, de uma hora, de um minuto…) pode significar a perda efetiva de vidas. Cada atraso na legalização do aborto, num país, pode significar garantir a sobrevivência de milhares de crianças e mães. Sim, de crianças e mães.

É que, em cada aborto, morre uma criança (obviamente!), mas também uma mãe, pois só se é mãe porque se tem um filho. Sobrevive, eventualmente, a mulher (em Portugal, já morreram mulheres na sequência do aborto legal. Sim. Posso demonstrar o que acabo de afirmar!), mas morre a mãe. 

Acho injusto considerar esta ‘obsessão’ um aspeto marginal da fé cristã. Os movimentos de defesa da vida têm feito, nas últimas três décadas, mais pelas mulheres do que os movimentos ditos feministas, que deixam a mulher abandonada numa rede de supostos direitos, mas solitária e cada vez mais deprimida num mundo solipsista. Os movimentos de defesa da vida arregaçaram mangas e criaram respostas. Nenhuma mulher que pede ajuda fica sozinha. Tem, imediatamente, uma rede de ajuda que a apoia e ajuda a salvar-se das situações confusas com que a vida a confronta.

É injusta acusação... 

Tenho encontrado, entre as pessoas dos movimentos de defesa da vida, uma fé viva, feita de amor. Um amor que ama mesmo aquele a quem ainda não vimos o rosto ou o sorriso. Um amor que ama sem condições. Um amor que acolhe, seja bonito ou feio, ‘perfeitinho’ ou marcado pela deficiência.

É tão injusto, Tomas Halík! Mas bem sabemos que tem sido contra esta injustiça com que o mundo nos vem lendo que continuaremos a lutar, porque há pobres entre os pobres, a quem nem o direito a nascer se quer garantir, que merecem que gritemos por eles, para que um dia, possam gritar que alguém por eles gritou, quando ainda não podiam.

Se o abortado for um filho, um de nós, ainda sem nome nem rosto, mas a quem ousamos dar o rosto de um humano, então a causa da defesa dos não nascidos pode ser uma legítima e justa obsessão. Porque amamos todos: a mãe, o filho, o pai (esse ausente a quem a legalização do aborto excluiu) e todos os que seriam afetados pela perda de um deles… Não amamos um contra os outros. Estamos do lado de todos: a mãe, o filho, o pai. Sempre, sempre, sempre. Mesmo quando nos dizem que o fazemos por não ter fé. Mas porque sabemos que, mesmo que a mãe abandone o seu filho, Deus nunca nos abandonará. 

Queremos ser sinal dessa certeza de um amor incondicional, num tempo que parece tudo reduzir a direitos e a lutas de uns contra outros. Estamos do lado de todos!


terça-feira, novembro 01, 2022

Um outro paradigma para e na educação: não, já, dos ‘direitos aos deveres’, mas sim dos ‘deveres aos direitos’

 

Em matérias que dizem respeito ao ser humano, exige-se sempre alguma prudência na adoção de visões que absolutizam uma só causa, uma só linha de análise, uma só… um só…

Na educação, este princípio é, por maioria de razão, dado mexer com o âmbito do ‘fazer-se humano, válido e de atender, sem qualquer ambiguidade.

É habitual assistir-se ao conflito aberto entre quem defende que educar é, principalmente, instruir, transmitir saberes que são adquiridos como algo exterior ao sujeito, opondo-se-lhe uma outra visão em que tudo está já presente no sujeito e só cabe aos educadores favorecerem a ambiência para que emirjam os saberes já previamente existentes no indivíduo.

Uma e outra visão esquecem o carácter dinâmico da existência humana que é, sempre, o resultado do encontro entre natureza e cultura, entre sujeito e objeto, entre nato e inato, etc…

O erro está em entender que a razão humana possa entender-se fora de uma realidade concreta, historicamente situada e culturalmente definida. Sem estes pressupostos, tudo parece desvanecer-se como fumo dissipado por uma rajada mais forte de vento.

Este quase maniqueísmo educacional é notório nas políticas educativas portuguesas que pendem de uma visão objetivista que concebe a educação como transmissão pura e dura de conhecimentos, fazendo tábua rasa das idiossincrasias dos sujeitos, para uma outra, de sinal oposto, em que o sujeito é, à maneira platónica, um sujeito omnisciente que já possui em si os saberes que cabe apenas fazer emergir, em resultado da criação de contextos favoráveis a tal.

O pessimismo antropológico da primeira visão parece viver do otimismo da segunda, excluindo-se mutuamente, num erro em que o verdadeiro perdedor é a educação.

Nada, na educação, é apenas objetivo ou apenas subjetivo. Na educação, como em tudo o que é humano, a subjetividade e a objetividade interpenetram-se e regeneram-se reciprocamente.

Tendo em conta estes pressupostos, orientemos a nossa visão para um vetor em que nos parece particularmente notório este maniqueísmo destrutivo: o que respeita à relação entre direitos e deveres.

 

O movimento pendular dos paradigmas

Um certo paradigma, mais prevalecente em épocas ou regimes de matriz autoritária, colocava o acento da educação no dever. O sujeito era sumido na consciência coletiva, parecendo inexistente.

Em reação a tal visão, o paradigma substituto veio centrar a educação na consciência dos direitos, pressupondo que um sujeito consciente dos seus direitos é alguém que, mais cedo ou mais tarde, vem a reconhecer ter deveres.

Esta visão, constituída em paradigma maioritário nas sociedades ocidentais do bem-estar, parece-nos assentar numa visão fundamentalmente individualista do sujeito humano.

Se virmos com atenção, partir dos direitos, sem mais, e contar com uma espontânea emergência da consciência do dever, tem muito de otimista e pouco realista.

Um sujeito que vai sentindo que os seus direitos se vão somando, dificilmente sairá desta espiral de conquistas para assumir – a que título? – uma consciência do dever.

 

 

Um outro paradigma: dos ‘deveres aos direitos’

No nosso entendimento, seria importante problematizar um terceiro paradigma, um paradigma de equilíbrio.

Já não um paradigma que sumisse o sujeito numa consciência coletiva, nem, por oposição (na linha do paradigma vigente), um paradigma que partisse dos direitos para vir a fazer emergir o sentido do dever, mas sim um outro em que o sujeito se encaminha para os direitos a partir dos deveres.

Repare-se como este aparente jogo de palavras (não já ‘partir dos direitos para chegar à consciência dos deveres’, mas sim ‘partir dos deveres para chegar à consciência dos direitos’) encerra em si visões muitos distintas. Por um lado, como acima dizíamos, no paradigma que parte dos direitos para chegar aos deveres, está implícita uma visão fundamentalmente individualista. O centro é cada um; não a sua relação com os demais.

No paradigma que estamos a propor, pelo contrário, o sujeito centra-se no outro, para com quem reconhece ter deveres e, a partir desse reconhecimento, constata que também os demais têm deveres que dimanam dos direitos que ele descobre em si mesmo. O regresso a si é feito no encontro com o outro. Aliás, este entendimento vem na linha do que vimos defendendo, desde há muito, ao afirmar que o verdadeiro erro de Descartes não é ele ter-se esquecido das emoções e dos sentimentos, mas sim em ter-nos convencido de que o primeiro facto de que temos consciência seja de que pensamos, de que o ‘eu’ existe. Pelo contrário, o que nos evidencia a realidade é que o primeiro sujeito de que temos consciência é da nossa mãe, é do outro, do ‘tu’, diante do qual nos constituímos como ‘eu’.

Na educação escolar, esta mudança de paradigma seria uma autêntica revolução suave ou, para evocar a ocorrida na antiga Checoslováquia, uma revolução ‘de veludo’.

 

Os sinais que exigem a mudança paradigmática

Na realidade, vale a pena perguntarmo-nos que trabalho educativo temos vindo a fazer quando, chegada a hora de assumirmos deveres, os sinais são de que recuamos e não o fazemos. Vejam-se a título ilustrativo, as notícias de que os concursos para funções militares, policiais, etc. ficam com muitas vagas por preencher, num país em que continuam elevadas as taxas de desemprego. Ou vejam-se os números muito preocupantes das taxas de nupcialidade, ou as baixíssimas taxas de natalidade. Bem certo que, para cada um destes indicadores, há que procurar muitos fatores (cada realidade tem, certamente, os seus, muito específicos), mas, globalmente, evidenciam uma crise de compromisso, uma crise do sentido do dever. Os filhos, a título ilustrativo, são fonte de realização pessoal, bem certo, mas também são um dever para com as gerações futuras e para com a comunidade. (Espero que esta afirmação seja devidamente entendida pelos leitores… Não pretendo dizer que geramos por obrigação, mas há, certamente, algum sentido de dever que acompanha o acolhimento de um filho que, por exemplo, nasceu sem ‘agendamento prévio’ ou com alguma fragilidade especial ou, mesmo, porque todo o filho comporta reajustamento da vida. Nunca mais se fica igual…)

Pode contribuir para esta progressiva mudança de paradigma a tomada de consciência de quanto investe toda a comunidade (compreendida como ‘Estado’), em cada ano, para que cada aluno possa frequentar, gratuitamente, o ensino público. Em 13 de setembro de 2021, o então ministro da educação recordava que cada aluno custa, por ano, ao erário público, 6200 euros (Ver jornal Público[1]). Se, em vez de pensarmos o Estado como uma entidade abstrata que não é ‘ninguém’, o tomássemos como um ‘tio rico’ que decidiu investir na nossa educação, como lhe estaríamos, certamente, gratos pelo que fez por nós! Sendo o Estado a organização da comunidade dos portugueses, será importante que cada aluno, cada família, reconheça o enorme dever que comporta beneficiar da ajuda de todos para que possa abrir, de par em par, o futuro, que é, afinal, a missão da educação escolar.

Propomos, por isso, um novo paradigma: não o que está assente na ideia de dever entendido como fim fechado em si mesmo; não, também, um paradigma que parte dos direitos para vir a chegar (quando?) à consciência dos deveres. Antes, um paradigma em que se parte dos deveres para se chegar à consciência dos direitos. Um tal paradigma centra-se na consciência de que, enquanto pessoas, somos seres em relação, cuja consciência de si mesmo depende dos outros e é devedora da missão que eles têm de fazer emergir em nós a consciência própria.

São muito oportunas, neste contexto, as palavras dirigidas ao povo americano por John F. Kennedy, em 20 de janeiro de 1961, no discurso de tomada de posse após ter sido eleito presidente dos Estados Unidos:

Não perguntem o que pode o vosso país fazer por vós. Perguntem, antes, o que podem fazer pelo vosso país.’ (In Simon, Sebag Montefiore, Discursos que mudaram o mundo, Lisboa, Difel, 2006, p. 221)

 



[1] https://www.publico.pt/2021/09/13/sociedade/noticia/aluno-custa-6200-euros-ano-aumento-30-desde-2015-ministro-1977237

quinta-feira, agosto 18, 2022

Na Igreja, todos têm lugar, mas nem tudo tem lugar

 

Estarmos em crise, em tensão, em busca, define-nos, enquanto humanos e, de modo particularmente denso, enquanto cristãos. Mas os tempos parecem ser de particular perplexidade e, segundo alguns, de caos.

Onde fica o cristianismo, perante a vertigem que parece tomar conta de tudo? Deverá reconhecer que nada mais tem a dizer de novo e aceitar como legítimo todo o comportamento apresentado como sinal de progresso e revolução? Deverá, porém, bastar-se em adotar uma atitude de fixação e fixidez, ‘porque sempre assim se pensou’?

Comecemos por denunciar o registo que as nossas interrogações permitem evidenciar: será muito redutor se tudo se confinar a um dualismo que se basta em rotular como sendo ‘progresso’ ou ‘tradição’, ‘progressismo’ ou ‘conservadorismo’, como se o avanço ou a conservação fossem, por si mesmos, necessariamente bondosos. Caberá sempre perguntar sobre ‘para onde progredimos’ e sobre ‘o que conservamos’. De outro modo, estaremos em simples movimentos (para diante ou para trás) que nada significam.

Esvaziemos, por isso, o dualismo e tomemos como referência outro critério: o da busca sincera da verdade. Essa, sim, coloca-nos numa tensão - o homem é um ser tensional, encaminha-se para algum lugar, encaminha-se para um horizonte… se não for assim, vive, apenas, seduzido pelo ‘aroma de um tempo flutuante’, como pertinentemente diagnostica Byung-Chul Han -, tensão que nos faz caminhar de algum lugar para outro lugar, num dinamismo digno de um verdadeiro peregrino, metáfora que considero ser das mais pertinentes para definir a condição humana, mas que a pós-modernidade vai esvaziando, subsumindo o homem na mera soma de agoras...

Ora, regressemos à ideia da busca da verdade…

Muitos são os que, hoje, defendem que o cristianismo tem de ser fiel a Jesus Cristo (e tem! Tem, mesmo!), mas tomam de Jesus Cristo o que Ele tem de agradável, ‘aromático’ (para evocar Han), mas não o tomam no todo.

Jesus Cristo revolucionou, bem certo, mas não foi um revolucionário político, como tantos pretendem. A sua revolução é a da verdadeira conversão de coração e de corações. E essa revolução ainda está a operar-se. Ninguém é proprietário dela, pelo que se impõe grande humildade (espero tê-la, ao longo desta reflexão…).

Tomemos, então, como critério a ação de Jesus Cristo.

Em matérias que respeitam ao comportamento humano, à moralidade e à relação entre o agir concreto e a normatividade, é particularmente significativa a ação de Jesus Cristo perante a mulher apanhada em adultério, como nos é contada pelo evangelista João (8,1-11).

É, com efeito, a ação de Jesus, tal como se no-la apresenta o evangelista, que mais tem suscitado discussão e dificuldades de encontro, nestes tempos em que matérias de moral (em particular de moral sexual) são descritas como sendo daquelas em que o cristianismo mais dificuldade tem evidenciado (dizem-nos) em corresponder ao que Jesus Cristo pretende dele.

Olhemos a narrativa apresentada por João que proponho que seja lida com atenção, para que seja notória a surpresa em relação ao excerto escolhido (sigo aqui a edição disponibilizada em http://www.paroquias.org/

“1*Jesus foi para o Monte das Oliveiras. 2De madrugada, voltou outra vez para o templo e todo o povo vinha ter com Ele. Jesus sentou-se e pôs-se a ensinar. 3Então, os doutores da Lei e os fariseus trouxeram-lhe certa mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio 4e disseram-lhe: «Mestre, esta mulher foi apanhada a pecar em flagrante adultério. 5Moisés, na Lei, mandou-nos matar à pedrada tais mulheres. E Tu que dizes?» 6Faziam-lhe esta pergunta para o fazerem cair numa armadilha e terem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se para o chão, pôs-se a escrever com o dedo na terra. 7Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!»  8E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. 9Ao ouvirem isto, foram saindo um a um, a começar pelos mais velhos, e ficou só Jesus e a mulher que estava no meio deles. 10Então, Jesus ergueu-se e perguntou-lhe: «Mulher, onde estão eles? Ninguém te condenou?» 11Ela respondeu: «Ninguém, Senhor.» Disse-lhe Jesus: «Também Eu não te condeno.” […]

Muitos são os que terminam a sua análise aqui.

Se, de facto, o evangelho terminasse aqui, caberia defender um cristianismo que, em nome do acolhimento de todos, deveria acolher tudo, sem restrições.

Há, porém, que recordar, com honestidade, que o evangelho termina com a afirmação “Vai e de agora em diante não tornes a pecar.” (Jo 8,11b)

E este é o ‘detalhe’ que os tempos relativistas parecem pretender esquecer. É bom, aliás, recordar que Jesus, nesta perícope, está a ser confrontado pelos especialistas na Lei, pelo que sabia que não podia colocar em causa a lei, sem que tal comportasse para Ele custos elevados. A sua abordagem é, aliás, inteligentíssima: responde, apresenta o novo, sem, porém, colocar em causa o que lhe é transmitido pela tradição, sabedoria que a pós-modernidade parece ter perdido: responde, apresenta o novo, mas não sabe recolher o que recebe da tradição. Como recorda Lipovetsky, no seu livro ‘o império do efémero’, a categoria fundamental deste tempo é a forma ‘moda’, entendida como a busca permanente do ‘novo’, num frenesim infinito…

Não é essa, porém, a atitude de Jesus Cristo, nesta cena tão humanamente profunda: uma é a pessoa; outra bem distinta é a sua ação.

E esta é a novidade que o cristianismo tem para apresentar, neste contexto. E é isto que é difícil de entender.

Nas discussões em que se problematiza a ação do cristianismo deveria explicitar-se de que se está a falar: de leis morais? Se sim, a lei moral, no prisma cristão é clara: há atos bons e atos maus; há atos ordenados e atos desordenados; há atos humanizadores e atos desumanizadores; há atos bondosos e atos maldosos; há pecado e virtude. Se estamos no plano da discussão sobre a lei, então, o cristianismo tem a apresentar que todo o ato humano é moralmente interpretável, pois não há atos neutros e inócuos.

E, enfim, se estamos a falar das leis do Estado, então, elas devem ser abstratas, abeirar-se, tanto quanto possível, da bondade moral e, por isso, a atitude cristã deve ser clara: a lei deve ser justa, sob pena de redundar num sentimentalismo que pode gerar injustiça.

Se, porém, estamos a falar sobre a pessoa concreta que os realiza, a atitude de Jesus Cristo é a do acolhimento daquele que apresenta um coração verdadeiramente disponível para a conversão. [Mas, antes de progredirmos na reflexão, sublinhemos este detalhe: o da disponibilidade para a conversão. Na verdade, em muitas das discussões sobre matérias de natureza moral (sejam elas do âmbito da moral social - a atitude perante a pobreza, a injustiça, a desigualdade, etc. – sejam do âmbito da moral pessoal – sobre o adultério, a violência sexual, as diversas orientações, etc.), a pergunta sobre o que tem o cristianismo a dizer deveria sempre pressupor a disponibilidade para a conversão, sem a qual o cristianismo fica reduzido a um moralismo e a uma descrição normativa, por um lado, aparentando ser arrogante a atitude dos que parecem pretender ter a norma final sobre como deverá pensar-se o próprio cristianismo. A tentação é, hoje, vulgar: em lugar de acolher o desafio que Jesus Cristo faz à conversão dos comportamentos arrisca-se legitimar os comportamentos pressupondo que Jesus Cristo os legitimaria. Não o fez, em relação ao adultério; não nos parece que o fizesse em relação a outros mais modernos… Quem é acolhida é a mulher, a pessoa; não o seu ‘pecado’.]

À luz desta análise, há que concluir que o cristianismo tem a apresentar uma proposta que é, efetivamente, única, singular. É única e singular porque encontra o adequado equilíbrio entre dois extremos hoje tão radicalizados: nem, em nome da permanência da lei, se define como legalista, moralista ou indiferente à pessoa; nem, em nome do acolhimento da pessoa, redunda num relativismo.

É este, como recordava Karl Barth, o ‘terrível’ «e» católico: firmes nos princípios «e» acolhedores para com as pessoas. Nem a firmeza da lei sem o acolhimento da pessoa; nem o acolhimento sem a firmeza da lei.

Face a isto, caberá concluir que, nas comunidades cristãs, todos têm lugar, mas nem tudo tem lugar, pois há comportamentos que realizam a pessoa, na sua integralidade, na sua abertura ao outro e ao Outro, e há comportamentos que não a realizam e denunciam por si mesmos o fechamento em si próprio ou se bastam na busca do igual a si mesmo, como se o outro não nos merecesse um amor integral, mas fosse reduzido a uma condição de alter-ego.

Acolher o outro não significa, neste registo, aceitar a bondade das suas ações. Pode significar, mesmo, o dever de, em nome da correção fraterna (tão presente nas primeiras comunidades e, ainda hoje, nas ordens religiosas: porque não nas demais comunidades cristãs?), lhe evidenciar que a sua ação não é bondosa ou humanamente plena, mas que a pessoa que ele é, e sempre disponível à conversão, é acolhida por Deus, acolhimento que se expressa, de forma concreta, na comunidade.

Daqui dimana um desafio duplo: para a sociedade, aceitando este repto feito pelo cristianismo de acolher todos, ainda que problematizando os comportamentos; para as comunidades cristãs, sabendo distinguir entre o dever de evidenciar a verdade da integralidade do agir moral, sem, porém, deixar de acolher cada um que nelas procura refúgio e cuidado.

É a atitude do Bom pastor, tão belamente retratado na igreja de Santa Madalena, em Vezelay, numa das colunas onde Jesus Cristo é apresentado como carregando aos ombros o traidor e suicida Judas Iscariotes. Tomá-lo em ombros não significa legitimar a traição e o suicídio, mas permitir o ‘gotejar’ da esperança numa boca sequiosa…

quarta-feira, julho 13, 2022

O absurdo ‘direito’ a abortar

 (Neste artigo, seguirei uma linha de raciocínio puramente formal, lógica. Peço ao leitor que o leia sem filtros, sem preconceitos.)

Comecemos por uma constatação.

Um filho é fruto da ação, direta ou mediada (evoco, aqui, as formas de conceção natural ou medicamente assistida), de dois: um pai e uma mãe.

O facto ‘filho’ expressa, por si só, uma omnipresença de dois: os seus progenitores.

Em cada filho está, inerentemente, a ação de duas pessoas de quem emerge um novo ser.

A esta luz, o filho que nasce une, para sempre e desde o seu início, as vidas de dois indivíduos: os seus pais.

Estes factos parecem-me irrefutáveis…

O aborto interrompe esta história de união da ação de dois indivíduos, os progenitores, numa nova vida.

Ora, perante o aborto, o direito depara-se com uma dificuldade: como agir?

A decisão dos legisladores tem sido uma de duas:

- ou permanecer fiel ao entendimento de que as leis transmitem mensagens aos cidadãos e, por isso, manter a afirmação de que abortar, por consistir na eliminação de uma vida humana em desenvolvimento, é um erro punível (esta punição recai sobre todos os envolvidos no aborto e não apenas na mulher: são suscetíveis de punição os incentivadores, os praticantes do aborto, os companheiros ou familiares que forçam, etc.);

- ou, alegando motivos diversos, despenalizar o ato, a pretexto de conflito de direitos ou outros motivos.

Observa-se, porém, uma nova linha que pretende defender, já não a mera despenalização do ato, mas o seu reconhecimento como direito.

Para a análise desta via, regressemos ao início da nossa reflexão.

Constatámos (sem grande esforço) que o filho é fruto da ação de dois: os progenitores, um pai e uma mãe.

Pretender reconhecer a um dos dois o direito exclusivo a abortar introduz aqui uma novidade altamente problemática.

Senão, vejamos. Socorramo-nos de uma metáfora que, como todas as metáforas, deve ser apenas uma ajuda ao entendimento sem que nos devamos prender nos aspetos específicos desta…

Imagine-se uma sociedade empresarial em que existem dois sócios com 50% de participação cada um.

A certa altura, um dos sócios propõe a aquisição da participação do outro sócio, ficando, assim, com 100% das quotas, comportando a posse do exclusivo de direitos e, por isso, também, de deveres.

Não é difícil imaginar que, se as coisas correrem bem, o novo sócio (absoluto) recolherá todos os dividendos, mas, também, que, se as coisas correrem mal, será este a arcar com a totalidade das despesas e dos problemas. Só por generosidade e bondade da parte do sócio que cedeu a sua parte é que poderá haver a assunção de responsabilidades, face às novas condições do contrato. Sublinhe-se: só por iniciativa do segundo sócio é que haveria assunção de responsabilidades por parte deste, dado que o novo contrato atribuíra totais direitos ao primeiro.

Ora, salvaguardadas as devidas diferenças (um filho não é um mero contrato ou negócio, bem certo!), o reconhecimento de que haja um ‘direito’ da mulher a abortar é tão válido como legitimar que o primeiro sócio, que ficou com o exclusivo da sociedade, possa vir reivindicar deveres ao que deixara de ter quotas na sociedade.

Dito de outro modo.

O filho gerado é fruto de dois. Reconhecer que houvesse um direito a abortar por parte da mulher suspenderia qualquer ‘direito’ do pai’, durante o tempo de exercício desse ‘direito a abortar’, restituindo-se ao pai os seus ‘direitos’ apenas depois do tempo de exercício absoluto da mãe.

Se se reconhecer que as mulheres que pretendem abortar o fazem porque a isso têm direito, daqui decorrerá, logicamente, que as mulheres que pretendem ser mães (ter filhos!) ficarão desprotegidas, porque nenhum pai estará obrigado a assumir responsabilidades quando, em todo o processo foi, afinal, excluído. Neste quadro, seria por pura arbitrariedade que se exigiria ao pai que assumisse responsabilidades em caso de não aborto, pois, afinal, ele tinha estado privado de quaisquer direitos, no período entre a conceção e o tempo legalmente previsto para a mulher exercer o seu ‘direito’. Como podem exigir-se deveres a quem não teve quaisquer direitos?

Pois é…

O problema é que toda esta visão que entende que haja um ‘direito ao aborto’ parte de pressupostos desajustados, o primeiro dos quais o de que um filho se constitua como um direito dos pais: os pais devem cuidar; os pais devem acolher; o filho não é um direito, mas, antes, alguém protegido pelo Direito!

Posta assim a questão, é fácil entender que toda esta discussão está virada do avesso.

Não deveria estar a discutir-se o possível (e denunciado como ‘absurdo’) direito a abortar, mas sim como comprometer, cada vez mais, o pai com o filho em gestação. O filho é gerado por dois, pelo que deve ser responsabilidade dos dois e, nunca, direito de um contra outro ou, sequer, contra todos.

Dado que o filho é gerado por dois, o filho terá de ser protegido pelos dois e, como sociedade que somos, protegido contra o mal que os dois possam pretender fazer-lhe.

Esta devia ser a linha a seguir.

E só assim se poderia compreender, com espanto e compaixão, que não podemos continuar cúmplices dos mais de 22 milhões de abortos que se realizaram, só no primeiro semestre deste ano, em todo o mundo. Os números deveriam despertar-nos para o que estamos a fazer.

O aborto é a falência de uma sociedade. Reconhecê-lo como um ‘direito’ soma absurdo a esta falência.

 

sábado, maio 21, 2022

É preciso salvar a liberdade…


Pensar é uma autêntica gravidez. Não fosse o conceito do âmbito da ‘conceção’. Pensar é, efetivamente, ‘conceber’ algo.

Há, porém, ideias fecundas e ideias perfeitamente estéreis e que esterilizam tudo em seu redor.

A ideia de liberdade é uma dessas ideias que, pela sua centralidade no contexto da modernidade, corre o risco de, sendo extremamente fecunda, se converter no fator de ‘esterilização’ dos demais conceitos que implica e com que se implica.

Entendamos porquê.

A ideia de ‘liberdade’ é, provavelmente, a mais generosamente referida nos contextos e discussões atuais. É, por isso, fundamental que nos entendamos, em primeiro lugar, sobre o que pretendemos dizer ao evocá-la e, em segundo lugar, que tenhamos a consciência de que, por se tratar de um conceito, é preciso saber quem são os seus ‘pai’ e ‘mãe’ para percebermos a genética do conceito que utilizamos, a fim de entendermos se nos reconhecemos no ‘filho’. Esta síntese implica, ainda, que tenhamos a consciência de que todos os conceitos são conceitos, isto é, não são factos, são formulações que dependem de determinados pressupostos e comportam consequências.

Com estes dados, partamos à descoberta do que estamos a dizer ao evocar a liberdade.

 

Liberdade: ‘fazer o que se quer’?

Espontaneamente, ‘liberdade’ costuma evocar a ideia de se fazer o que se quer. Liberdade máxima parecerá ser, com esta conceção aparentemente espontânea, a inexistência de constrangimentos a fazer o que se quer.

Precisamos de perceber o alcance desta visão para, eventualmente, a podermos criticar e, no limite, superar.

Para a analisar, é preciso compreender a fenomenologia da ação humana, isto é, é preciso perceber como emergem, nos sujeitos humanos, os atos que são, verdadeiramente, humanos e como se distinguem dos que não são humanos.

Para o entender, é preciso consciencializar que todo o ato verdadeiramente humano envolve o homem todo, não apenas parte de si.

Acrescente-se que todo o ato humano envolve as três dimensões do homem: a inteligência, que se manifesta no saber, no conhecer, na busca da verdade (no intelligo, na penetração do olhar ao interior das coisas…); o afeto, que se manifesta nas emoções, no sentir (é o que os clássicos definiam como o modo de acesso às coisas, o deixar-se ‘afetar’ por elas, tornando-nos ‘vulneráveis’ ao outro, aos outros…), e, por fim, a vontade, que se manifesta como ‘querer’.

Não será difícil, após este muito rudimentar esboço da fenomenologia da ação humana identificar, desde já, que a conceção de liberdade que a identifica como possibilidade de fazer o que se quer enferma de um limite anteriormente denunciado: o de se confinar a uma só das três dimensões: neste caso, à vontade (ao querer). Antecipamos, aqui, que esta redução da liberdade à vontade parece ter dois responsáveis: Schopenhauer e Nietzsche que, por vias diferentes, idolatraram a vontade de poder presente no Homem, tudo confinando e conformando a esta, com custos que iremos apreciar, ao longo deste texto.

 

‘A minha liberdade termina onde começa a do outro’?

Ora, uma tal redução, pela natureza própria do que é um conceito, implica tremendas consequências. É como se alguém entrasse numa autoestrada pelo acesso errado. Pode comportar quilómetros de erro e, no limite, uma viagem totalmente desviada do pretendido…

E uma das consequências está na própria escolha dos nossos ilustres autores novecentistas: a opção pela vontade. Esta define-se como ilimitado e de objeto indeterminado. Enquanto a inteligência tem um objeto específico e identificável – a verdade, o que é verdadeiro -, a vontade é, por natureza, imprevisível, só compreensível pelo próprio e insuscetível de antecipar pelos demais. A liberdade, confinada à condição de exercício de vontade, torna-se, assim, um conceito intrinsecamente individualista e solipsista.

Sim, neste contexto e nesta conceção, a liberdade (isto é, as vontades) estorvam-se umas às outras.

Sim, neste modo de entender, tem de se aceitar que ‘a liberdade de cada um acaba onde começa a do outro’, como terá definido Herbert Spencer, pelo que a liberdade de cada um só pode aumentar quando a do outro for limitada ou, no extremo final, quando a do outro desaparecer. Os outros são, então, como reconhecia Sartre, o ‘inferno’.

Um tal entendimento nasce do pressuposto de que a liberdade é exercício de vontade.

Mas, sê-lo-á, de facto?

Reparemos que a redução da liberdade à vontade comporta uma contradição insofismável: o seu exercício que deveria ser humano pode voltar-se contra aquilo que define, verdadeiramente, o que é o humano, isto é, a sua racionalidade. O que nos distingue dos demais seres é a racionalidade. Mas, se a liberdade – tão central e nuclear – é um exercício de vontade, pode prescindir e, no limite, opor-se à racionalidade. Será, ainda, humana uma liberdade assim?

 

Os factos demonstram a pertinência do conceito

Tornam notória esta denúncia os factos, apurados numa leitura fenomenológica.

Veja-se o seguinte exemplo.

Um toxicodependente quer muito, muitíssimo, o estupefaciente que o sossegue. É capaz, inclusive, de roubar; no limite, de matar!

Mas, - perguntemos com verdade – o seu ato de vontade (ato voluntário) é um ato livre? É voluntário, certamente (ele quer! Quer muito!), mas será livre?

A nossa conclusão parece pura retórica. Não o é, de facto.

E porquê?

Por aquilo que acabámos de constatar: o ato é voluntário, mas falta-lhe a iluminação racional para ser, de facto, ato livre.

Um ato livre não é o ato submisso à irracionalidade, à vontade, ao instinto (contrariamente ao que presumiam Nietzsche e Schopenhauer), mas antes o ato que mobiliza os afetos e a vontade ao que a razão lhe aponta como a melhor escolha.

E, com o desabamento da identificação de liberdade com vontade implode, também, o solipsismo de que o conceito aqui denunciado presumia.

Vejamos porquê…

A liberdade é uma condição (podemos vir a realizar atos livres porque somos intrinsecamente indeterminados previamente), é uma possibilidade (podemos ser livres ou não o ser em cada ato), mas é, também, uma realidade, isto é, um ato (se, como vimos, os nossos atos se conformam ao que a razão indica como sendo a melhor escolha. Não podemos deixar de recordar que a palavra liberdade nascerá do termo latino ‘libra’, que se refere à balança de dois braços que devem estar em equilíbrio…).

Seja como condição, seja como possibilidade, a liberdade implica sempre os outros, pois não nascemos de nós e não nos tornamos conscientes de nós por mérito nosso. Tomamos consciência de nós mesmos porque os outros humanos suscitaram em nós o despertar dessa consciência que estava em nós como uma potência que carecia dos outros para se tornar um ato.

 

‘Penso, logo existo’?

Digamo-lo de forma simples.

Contrariamente à presunção de Descartes, não é porque ‘penso que existo’; é, antes, porque os outros existem e se relacionam comigo que eu sei que existo. É porque existes e porque me fazes pensar que eu tomo consciência de que existo e posso, por isso, pensar.

O outro é condição de possibilidade de nós, do eu.

A psicologia, que o seja honestamente, evidencia-o.

Uma criança que fosse abandonada na selva, por volta dos três, quatro anos, poderia sobreviver, biologicamente falando, mas nunca teria consciência de si mesma. São os outros que despertam o eu que está em potência no interior de cada um.

Neste registo, as liberdades não se limitam umas às outras, mas antes projetam-se, promovem-se e só o são, enquanto atos, se despertam e potenciam as outras liberdades.

Não, não é verdade que a minha liberdade acabe onde começa a do outro (talvez, sim, as vontades se estorvem, mas já vimos que isso não é ‘a’ liberdade…); a minha liberdade só o é, de facto, se levar com ela a liberdade dos outros e as fizer serem cada vez mais liberdade.

Lembre-se, a título de ilustração, o que ocorre no mundo da economia.

Recorde-se o que aconteceu, após a II Guerra Mundial: a Europa ficou em cacos… Os Estados Unidos, apesar de serem preconizadores de um liberalismo tantas vezes solipsista, perceberam que não o poderiam ser, após a II Guerra. Se a Europa permanecesse destruída, a economia americana nunca seria pujante. Foi preciso, através do Plano Marshall, potenciar a economia europeia para que, com ela, se projetasse a economia americana.

Num outro âmbito, o da educação, podemos recordar como um pai ou uma mãe não o são mais se ‘esmagarem’ o crescimento do filho. Um pai ou uma mãe são-no na medida em que promovem o desenvolvimento do seu filho. Se não o fizerem, também eles, enquanto pai e mãe, se amarfanham.

É, por isso, fundamental, sair deste conceito solipsista, individualista e voluntarista de liberdade, responsável por um caminho que nos conduzirá a uma sociedade que não será mais do que, como afirma Manuel Braga da Cruz, ‘uma soma de indivíduos sobre um território’.

Há muito que vimos dizendo que se terá de passar de uma lógica de ‘indivíduos’ (que é um conceito quantitativo; somos ‘um’, ‘dois’, ‘três’ indivíduos, sem que tal nos defina, qualitativamente…) para uma lógica de ‘pessoas’, conceito que implica, intrinsecamente, a ideia de relação.

O mundo humano não é feito, primeiramente, de indivíduos, pensados em si mesmos, qual mónadas fechadas. O mundo humano é, primeira, relação, inter-relação, encontros.

Liberdade não é, pois, fazer o que se quer. É a possibilidade, a condição de possibilidade que nos permite escolher o que é melhor. Envolve-nos, totalmente, sob a iluminação da razão, da inteligência. Liberdade é algo intrinsecamente humano. É, aliás, um conceito que, pela natureza da definição aqui encontrada, implicada, essencialmente, a ideia de responsabilidade: responder e responder diante de alguém. Reduzi-la a um exercício da vontade é entregá-la ao sub-humano animal de que nos deveríamos levantar, mas a que muitos parecem querer fazer-nos regressar… É curioso constatar, aliás, que nunca se evocou tanto a liberdade, mas nunca, também, se pretendeu tanto reduzir os atos do indivíduos a causas que ele diz não controlar: a genética, a história pessoal, a sociedade, as circunstâncias, etc… Evoca-se a liberdade, mas num registo de desresponsabilização, o que, mais uma vez, denuncia a contradição do conceito. Ser livre é, intrinsecamente, responsabilizar-se e, por isso, compromete e exige estar em atitude de constante discernimento e não de volubilidade e anomia. Ser livre é, por isso, matéria de humanos integralmente entendidos, é uma conquista nunca terminada.

segunda-feira, maio 09, 2022

Aborto: desfazer o nó górdio

O aborto será o nó górdio das sociedades ocidentais?

Talvez…

Talvez, como o célebre nó, quem o desfizer, venha a dominar o mundo… E, talvez, ainda, ele se desfaça de uma forma inesperada. Lancemos, por isso, a espada sobre a corda, à maneira de Alexandre Magno, e vejamos como, afinal, de modo simples, se detém no chão o liame que parecia ser invencível…

Não sei, ainda, se o desfazer do laço nos dará o domínio sobre o mundo, mas estou certo de que nos enredos da corda se enunciam muitos dos problemas com que se depara a nossa sociedade contemporânea.

A base da nossa sociedade não é o indivíduo, mas a relação. Se duvidamos, basta que vejamos com atenção como as decisões fundamentais não nos pressupõem, primeiro, indivíduos, mas sim seres relacionais. Para que serviria, afinal, ter uma língua oficial se não fosse para a partilhar e, em torno dela, nos unirmos? Para que serviria um hino nacional se não fosse para o darmos a ouvir e nos unirmos em torno dele com emoção e, quantas vezes, comoção?

Para que serviria obrigarem-nos à partilha do que ganhamos, através de impostos, se não fosse para nos valermos uns aos outros, mesmos aos que nunca conheceremos?

Para que serviria reconhecer associações e organizações ou a família como base da sociedade se não fosse sob o pressuposto de que somos seres que se definem na relação?

Por influência, porém, de uma visão liberal de matriz estritamente individualista, temos sido convencidos de que, entre Estado e indivíduo, nada existe…

E, ainda que assim fosse, a discussão sobre o aborto esquivar-se-ia a estes pressupostos pela razão que passarei a descrever.

Um homem e uma mulher que se envolvem num momento denso de afetividade e sensualidade são, ainda, um homem e uma mulher… A partir, porém, que da sua relação começou a gerar-se um novo ser, eles deixaram de ser apenas um homem e uma mulher. O que eram ganha nova densidade em virtude de um novo ser que os une, de modo indefetível e que, quer queiram, quer não, os unirá para sempre. Mesmo que ousem fazer de conta que não é assim.

Claro que muitos dirão que esta leitura é reacionária. Mas é curioso que se há algo de reacionário nisto é à dura realidade que o teremos de atribuir.

A partir do momento em que um humano está em gestação, aquele homem e aquela mulher já não serão, apenas, aquele homem e aquela mulher: passarão a ser, para sempre, o pai e a mãe daquele ser.

Mesmo que ousem nunca lhe dar um nome ou permitir que mostre o rosto que, desde a primeira hora, se prenuncia.

O pai e a mãe deste novo ser humano em gestação são-no em virtude dele e as suas vidas estarão, inelutavelmente, unidas.

A gestação deste novo ser cria uma nova realidade que, sendo, primeiramente, uma realidade de natureza biológica (aquele ser humano é filho deste pai e desta mãe e a genética o demonstra sem ideologias e de forma objetiva…), deveria ser, desde a primeira, hora, uma nova realidade jurídica.

Aquele homem e aquela mulher passam, a partir deste momento, a ser pai e mãe e, numa sociedade honesta, deveriam passar a ter deveres de cuidado para com aquele igual a todos nós que está, agora, a fazer-se gente e que, não antes dos seus três anos de idade, pouca consciência terá de si mesmo se não lho permitirem os demais humanos em seu redor.

É verdade - como reconheceram os abortistas que logo rasgaram as vestes quando se afigurou a possibilidade de que a história do caso Roe vs Wade se pudesse alterar (esta que é uma infeliz história de mentira e perjúrio – seja-se honesto e diga-se que a legalização do aborto, no ocidente, assentou em fake news…) - que a legislação sobre o aborto mostra a saúde democrática das nossas sociedades. Ela mostra se, de facto, os direitos de quem tem poder se sobrepõem à voz dos que não a têm porque lha impedem de vir a ter.

Um embrião ou um feto humanos é um de nós; são nós na sua/nossa primeira etapa da vida. E se é certo que se protege uma ave desde a fase do ninho, como pode pretender-se proteger um humano apenas quando ele já pode defender-se e gritar?

Voltemos atrás…

Como poderia aceitar-se que o filho fosse ‘direito’ de apenas um dos dois, pai ou mãe?

Em primeiro lugar, o filho não é um bem a que alguém tenha direito. O filho é filho. Ponto!

Cabe-nos ajudá-lo a fazer-se gente! Cuidar e cuidar e… após tudo isso, cuidar!

Se o aborto viesse a ser um direito (convém que se reconheça que, até Macron, poucos tinham sido os que afirmavam que fosse direito. Sempre se situara no âmbito da despenalização. Hoje, pretende-se considerar como direito…), os direitos de um só (a mulher; não a mãe!) prevaleceriam, de forma absoluta, sobre os direitos de dois outros: o filho e o pai.

Valerá a pena perguntar a que título passaria a estar, ao lado da parturiente, o pai: por especial concessão da mulher que determinaria que este seria o pai?

Mas o filho de que ele é pai não foi gerado no momento do nascimento, mas no primeiro momento, o da conceção!

Só por pura arbitrariedade de um legislador ‘arbitrário’ (passe a redundância) é que se pretenderia legitimar tal coisa. A realidade do filho gera o pai e a mãe no momento da sua conceção. As vidas destes três seres unem-se nesse momento. Não noutro qualquer.

Assim o determina a natureza das coisas.

Só por ideologia ou por motivos obscuros pode pretender-se que seja de outro modo.

O nó górdio desfar-se-á no dia em que, definitivamente, houver coragem para reconhecer a personalidade jurídica do ser humano em gestação, exigindo-se deveres de cuidado dos respetivos pai, mãe e sociedade que se deverá reconhecer na vida em crescimento. De outro modo, a arbitrariedade sobre quando é que uma mãe é mãe ou um pai é pai será nascente de conflitos e favorecerá litígios desnecessários.

Como poderá esperar-se a construção de uma sociedade pacífica que assenta na legitimação da violência da mãe sobre o seu próprio filho? O aborto mata o filho e, com ele, mata a mãe. Fica uma mulher em conflito consigo e com os que a rodeiam….


sábado, abril 30, 2022

De Midas a Zaqueu

 Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

A nossa viagem de Troia a Ítaca prossegue. O nosso Ulisses continua o seu regresso à cidade de onde partiu para travar a guerra de Troia. Um regresso que nos faz vislumbrar os contributos da cultura grega, mas reparar, também, e como nunca, em como é singular a generosa dádiva do cristianismo…

Hoje, a nossa viagem leva-nos a ler a sempre sedutora tentação de possuir.

O homem, quando não consegue ser, deseja possuir. E quanto menos é, mais pretende ter… Faz-se crescer em ilusão quando a exiguidade da sua real dimensão lhe some todas as ilusões.

Um dos mais significativos mitos clássicos, de que nos fala Ovídio, na sua obra ‘Metamorfoses’, é o de Midas, de que a nossa cultura mantém a ideia do ‘toque de Midas’, para se referir a alguém que tem o dom de ter um sucesso infindo, como se tudo em que tocasse se transformasse em ouro.

Midas é, de acordo com o mito, um rei da região da Frígia a quem o deus Dionísio concede um dom em gesto de gratidão. Midas pede que lhe seja concedido o dom de tudo transformar em ouro.

No princípio, tudo corre como ele previra. Tudo o que lhe era trazido se transformava no reluzente metal, criando a inebriante sensação de um poder absoluto.

O que, porém, não estivera nas previsões de Midas é que ele continuava a precisar de comer e alimentar-se e o portentoso dom rapidamente se tornou uma maldição. O pão, uma coxa de frango ou uma taça de vinho… tudo se ‘aurifica’ com o seu simples toque.

Restar-lhe-ia, assim, que, apesar do ‘toque de Midas’, lhe adviesse a morte, não fosse a atitude compreensiva de Dionísio que lhe permitiu regressar à anterior condição desde que se banhasse nas águas do rio Pactolo que, segundo o mito, passou ele mesmo a ser formado por pepitas de ouro.

Midas tem, na nossa viagem, o seu anverso na figura de Zaqueu.

Este pequeno homem que, segundo Lucas (19,1-10), procurou Jesus e, não o conseguindo ver, se empoleirou num sicómoro, uma espécie de figueira, árvore tantas vezes conotada como sendo amaldiçoada, serve-nos de cara de uma moeda com duas faces.

Midas desejara tanto possuir que o seu poder de transformação da realidade em ouro infindo o conduzira à maldição de que padeceu o próprio Adão quando ousou comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. Um e outro pretenderam ser deuses. Midas pretendeu-o sem acautelar que o seu poder chegasse ao ponto de transformar o orgânico em inorgânico, comportando, assim, o veneno da sua própria destruição.

Zaqueu, por oposição, em coerência com o próprio significado do seu nome - «justo, puro» - descobriu, ao encontrar-se com Jesus Cristo, que havia algo muito mais importante do que muito possuir: saber-se salvo!

Perante esta certeza, Zaqueu supera as próprias imposições da lei judaica e estabelece para si mesmo que restituirá aos que lesou o quádruplo do que lhes retirara, quando tal só estava previsto, segundo Êxodo 21,37, para apenas uma situação, o que não se aplicava a ele…

Zaqueu, homem pequeno, um vendido aos exploradores de que ele, como publicano, era a imagem visível da exploração, empoleirado numa árvore amaldiçoada, ganha nova vida quando recebe o ‘toque de Jesus’.

O toque de Midas destrói, em nome da posse; o ‘toque de Jesus’ vivifica o que já estava morto.

Não há, neste novo ‘toque’, a negação da posse, mas a restituição desta ao seu verdadeiro lugar. Possuir é sempre simples condição de caminho, não o fim ou a meta do próprio caminhar. A meta é realizar-se como plenificado por Deus, é realizar-se como ‘salvo’, pois ‘hoje, a salvação entrou nesta casa’.

 

domingo, abril 10, 2022

De Cassandra aos Profetas de Israel

 

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)


Recordamos os nossos leitores de última hora que esta rubrica se dá pelo nome de ‘regresso a Ítaca no sonho do Éden’, pretendendo-se fazer, aqui, uma ponte fecunda entre o que nos chega da cultura clássica (principalmente a grega), de que tantos nossos cidadãos se sentem herdeiros exclusivos, e as raízes cristãs que levam a seiva às nossas sociedades.

A nossa tem sido uma atitude de perscrutar o que as une, mas também, a de evidenciar o que de específico nos parece ter vindo do cristianismo.

Hoje, regressamos à cidade de Ulisses (Ítaca) sob o sonho do Éden, retornando a Troia.

A nossa protagonista é o que hoje poderíamos designar como uma adivinha, uma sibila.

Cassandra é nome maior com que poderíamos designar alguém de cuja boca vem augúrio certeiro sobre o amanhã.

Ela soube, muito antes de todos, e instou Príamo para que a ouvisse, que Troia iria cair às mãos dos gregos, pois o cavalo que os troianos encontraram às suas portas, considerando-o uma bênção ou troféu dos deuses, era, afinal, o original ‘cavalo de Troia’ (como, hoje, os que nos invadem os computadores…). Por ele viria a desgraça e o desastre…

Mas Cassandra não era apenas uma adivinha, uma sibila. Sobre ela impendia uma maldição lançada pelo rejeitado deus Apolo que a procurara seduzir, mas a quem ela se recusara entregar. A maldição permitia que ela previsse o futuro, mas impedindo que fosse ouvida e seguida…

Olho para a figura de Cassandra como a metáfora das inúmeras vozes que continuam, hoje mesmo, a alertar para o desastre, mas sem que os demais as escutem…

A minha reflexão poderia acabar aqui.

Verifiquei, porém, que o contraste com os profetas veterotestamentários poderia ser, ele mesmo, muito fecundo.

Recordemos, antes do estabelecimento desse contraste, que a Bíblia dos Setenta, cujo cânon é seguido pela maioria das igrejas cristãs (com exceção das igrejas da Reforma, que seguem o cânon da bíblia Hebraica), organiza, após os livros sapienciais (os ‘escritos’), os livros proféticos, reunindo-os em quatro profetas maiores (não que o sejam pela sua importância, mas pela dimensão dos respetivos livros), Isaías, Jeremias, Ezequiel e Daniel (a Bíblia Hebraica, seguida pelo cânon protestante, coloca-o entre os ‘escritos’, expressando, assim, algum carácter específico a este livro, comparando-o com os outros livros proféticos. Na verdade, a exegese bíblica constata muita linguagem provinda do género apocalíptico.), e em doze profetas menores, sendo que Lamentações e Baruc são como que anexos ou prolongamentos (como designa a Nova Bíblia dos Capuchinhos) do livro de Jeremias. Os profetas menores são Oseias, Joel, Amós, Abdias, Jonas (a Bíblia hebraica também o coloca entre os ‘escritos’), Miqueias, Naum, Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias e Malaquias.

O que nos mostra, então, o contraste entre a figura de Cassandra e a dos profetas do Antigo Testamento?

Um dos termos mais utilizados (e que, inclusive, é utilizado para dar título aos livros dos profetas) é o de «nabi’», termo que é traduzido, no ‘dicionário bíblico hebraico-português’ de Luís Alonso Schökel (Editora Paulus), por ‘Profeta, Vate, vidente, agoureiro’. Por esta tradução do termo mais habitualmente utilizado, o confronto entre os profetas e Cassandra não é particularmente fecundo: em ambos os casos parece sublinhar-se a ideia daquele que adivinha ou antecipa o futuro. Mas essa não será a dimensão definitiva da missão do profeta. A sua missão expressa-se, de modo particularmente claro, no que afirma Ezequiel, quando explicita que “A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos” (Ez 36,16). O significado mais profundo da profecia veterotestamentária explicita-se no significado que nos chega pela via do termo cunhado do grego, ‘Profeta’. A palavra é uma construção resultante de ‘pro+fêmi’, que, traduzido à letra, quer dizer ‘aquele que fala em nome de alguém’, ainda que também possa querer significar (mais uma vez!), ‘aquele que fala antes de…’, ‘aquele que antecipa’. Veja-se o significado do prefixo ‘pro’ proposto pelo dicionário grego-português de Isidro Pereira (SJ), editado pela livraria A.I (Braga): ‘diante, por diante, para diante, antes, ao princípio’, mas também ‘por, em favor de, em vez de’…

Cruzando todos estes dados e sem querer dispersar do fundamental, importa dar conta de que o profeta de Israel não é alguém que tem o futuro como uma realidade insuscetível de mudança (seria, aliás, contraditório com a própria realidade que é o ‘futuro’ – etimologicamente, significa ‘as coisas que ainda serão’ e, por isso, não são, de facto, ainda.).

O profeta de Israel é alguém que, em nome de Yahveh, pede aos homens a conversão do coração.

Por isso, ao contrário de Cassandra, poderia iniciar todas as suas intervenções por ‘se’: ‘se não mudardes o vosso coração, o amanhã não vos será risonho’. Essa matriz de atuação é visível nas paradigmáticas histórias de Abraão que intercede, junto de Deus, para que salve a cidade de Sodoma, em nome de cinquenta… Não, de quarenta e cinco!... Não, de trinta… Etc. Em nome de um só justo! (Cfr. Gn 18, 17 ss)

Ou, ainda, na história de Jonas que não quer reconhecer a bondade de Deus e procura esquivar-se a ter de propor aos ninivitas que mudem de vida, numa atitude que lhe mereceu, entre algumas igrejas, o estatuto de judeu invejoso…

Mas o Deus de Israel não é invejoso.

É um Deus de Esperança. Não o seriam, nunca, os deuses diante de quem se curva Cassandra. Sobre os seus ombros impenderá, sempre, a força do destino face a quem não há conversão de coração possível.

Vislumbram-se, na nossa sociedade, sinais de que, por um lado, Cassandra não é ouvida e, por outro, que dela se guarda, porém, o que de pior se reservava na sua história: não haver lugar para a redenção e para a conversão.

Como desejam os nossos ouvidos as palavras de esperança daqueles que falam, não em seu nome, mas em nome de Outrém, do Deus de Israel, de quem nos virá o auxílio, a nascente da esperança.

Para que não seja uma fatalidade que nos entre pela porta maior o cavalo de Troia!

sábado, janeiro 22, 2022

In Memoriam | Pe. Franclim – a morte levou um ímpar biblista. Fica, sempre, a Palavra!

 Luís Manuel Pereira da Silva

(Presidente da Comissão Diocesana da Cultura e amigo)

 


Hoje (18 de janeiro de 2022), faleceu o Pe. Franclim...

A fé que, do nosso lado ainda é esperança, mas, do seu, é já certeza, une-nos como sempre nos uniu nas longas horas passadas em viagens conversadas por um mundo feito de ‘hojes’ e de ‘ontens’ de sempre. Tivemos longas conversas sobre o eterno e o efémero, surpreendendo-me, sempre, a incrível memória bíblica e fina inteligência que não se perdia no que não importava, mas via nos detalhes o que mais ninguém encontrava.

Guardarei, para sempre, a consciência de uma dívida sem par pela incrível capacidade de trabalho que me fazia sempre crer que os seus dias tinham mais horas do que os meus.

Uma capacidade que o fez publicar numerosas traduções de alguns dos textos mais antigos da história da humanidade, muitos deles traduzidos, pela primeira vez, em português, e publicados no site da Comissão diocesana da Cultura onde, desde o início, foi um fiel colaborador.

Devemos-lhe todos tanto… (Portugal perdeu um eminente biblista!)

Devo-lhe tanto… 

Era surpreendente a humildade com que guardava a sua sábia visão sobre as coisas, não querendo, nunca, que a sua opinião fosse imposta, mas apresentada apenas se oportuna. Quando transmitida, percebia-se uma inteligência singular, rara e apenas conferida aos mais sábios de entre os homens.

Não posso deixar de aqui contar que a dívida que lhe temos é imensa, visível na histórica tradução da obra ‘Fracassos da Corte’.

Esta obra, escrita por Giovanni Maria Muti, em 1682, estivera perdida (não se sabia, aliás, da sua existência). Foi por uma providencial circunstância que, no ano de 2016, o diretor do Museu de Aveiro, Dr. José António Rebocho, descobriu, em investigações que fizera, esta peça que tem na figura de Santa Joana Princesa a sua protagonista.

Quando me chegou ao conhecimento a existência desta peça, escrita em toscano, conversei com o sr. D. António Moiteiro sobre como conseguir quem a traduzisse. O nome do Pe. Franclim logo surgiu como ‘tradutor oficial’ da Diocese, a quem enviei, em 7 de setembro, a peça original, a que faltavam algumas páginas que viemos a descobrir, poucos dias depois.

Em 1 de outubro, já a tradução estava pronta, iniciando-se preparativos, não só para a sua publicação, mas, também, para a sua encenação, pelo grupo de teatro da professora Teresa Grancho, ‘Oficina Capitão Grancho’. A peça foi levada à cena em 19 e 20 de maio de 2017.

A surpresa e o entusiasmo que tomaram conta de todos os envolvidos neste processo de descoberta são, hoje, substituídos por uma enorme dívida de gratidão.

Todos sabíamos que só a singular capacidade de trabalho do pe. Franclim pudera fazer sair dos escombros do tempo uma peça que a distância idiomática poderia ter votado a um renovado período de silêncio.

Essa capacidade é sobejamente ilustrada, também, pelas inúmeras traduções de documentos antigos que pudemos publicar, no site da Comissão da Cultura, nos últimos cinco anos, textos consultados por universidades nacionais e estrangeiras, em especial do Brasil, que, com regularidade, nos solicitavam a disponibilização dos referidos documentos.

Da sua mão saiu a tradução do livro do Apocalipse, em vias de ser editada pela Conferência Episcopal Portuguesa, assim como várias obras dedicadas aos evangelistas lidos na liturgia dos três anos litúrgicos. Depois de S. Marcos e S. Lucas, editado este em novembro passado, deixou pronta a edição de livro dedicado a S. Mateus, que se espera que veja a luz, logo que possível.

É imenso o legado da sua palavra, sempre fina, inteligente e capaz de descortinar as mais difíceis compreensões, tornando luminoso o que, para olhares distraídos, seria opaco. O que deixou escrito poderá ser sempre revisitado. Mas fica a certeza de que a sua palavra, aqui, diante de nós, é insubstituível. Não havia dúvida bíblica que não se desvanecesse, prontamente, e com uma segurança que nos fazia crer que o Pe. Franclim tivera o privilégio singular de ser o redator não denunciado a quem Deus segredara os seus motivos para o que sobre si disseram os autores bíblicos.

‘O que pensaria o Pe. Franclim sobre o que se afirma neste texto bíblico?’ – é a interrogação que continuaremos a fazer, aqueles que tivemos o privilégio de ser mais do que seus leitores, mas seus frequentes ouvintes.

Aguarde-me no Céu, Padre Franclim, pois quero, quando ‘aí’ chegar, ouvir as palavras com que sempre me atendia, com entusiasmo: ‘Então, juventude?!’.

 

sábado, janeiro 15, 2022

Regresso a Ítaca no sonho do Éden | A pedra de Sísifo já repousa

 

Rubrica 'Regresso a Ítaca no sonho do Éden’

(Artigos publicados na revista Mundo Rural - Acção Católica Rural)

 

Regresso a Ítaca e o meu pensamento, o meu sonho, ilumina-se no Éden.

Este tem sido o nosso caminho ao longo deste percurso que atinge, com este texto, a sua décima segunda etapa. Em todas elas, o nosso objetivo foi colocar em diálogo e, eventualmente, em confronto, duas das principais raízes do pensamento ocidental: a influência grega e a marca cristã.

Ítaca é aqui, o sinónimo da viagem de Ulisses de regresso a casa, Ítaca, após a sua participação na guerra de Troia.

Éden é a expressão do sonho com que Deus criou o mundo e à luz do qual toda a criação, na sua fragilidade histórica, deve ser refletida e iluminada.

Neste passo do nosso caminho, centramos a nossa atenção na visão trágica da vida que os gregos nos deixaram como herança que continua a ‘queimar-nos as mãos’. De facto, a visão trágica continua, múltiplas vezes, a ganhar terreno em relação à visão sustentada na esperança, marca indelével do cristianismo no ocidente. Muitos são os que daquela se reivindicam herdeiros, sem dela quererem abdicar, mesmo quando a esperança lhes mostrou fazer sentido.

Nestes tempos de discussão sobre a eutanásia, estas duas visões cruzam-se, de forma radical e quase que inconciliável.

Evoca essa visão trágica da vida o mito de Sísifo.

Sobre Sísifo impende uma maldição lançada por Zeus: a de que arrastará, monte acima, uma enorme pedra que, prestes a ser depositada no alto, volta a rolar, uma e outra vez, monte abaixo. Perante esta visão trágica e esta circularidade e repetitividade do tempo, o cristianismo fez rolar a pedra, com efeito, mas para a deixar, definitivamente, onde deveria permanecer.

São muitas as alusões bíblicas à pedra. O Vocabulário de teologia bíblica, coordenado por Xavier Léon-Dufour (Editora Vozes) recorda que a pedra simbolizava, nas culturas envolventes ao povo bíblico, o poder mágico, proibido em Israel. Esse significado vem, porém, a ser superado pela simbologia que à permanência e durabilidade da pedra se associará como expressão de fidelidade e permanência de Deus fiel à Sua Palavra.

A pedra já não será, então, um sinal negativo (nem mágico, nem trágico), mas o símbolo de que à Palavra caberá a última decisão sobre o rumo vertiginoso e efémero do mundo.

É a esse significado que aludirão as ideias de ‘pedra angular’, da escolha de Cefas como ‘pedra’ da Igreja ou, ainda, a própria referência a Cristo como ‘pedra de tropeço’, numa alusão não trágica (como se o que acontece fosse resultado de uma fatalidade), mas sim voluntária e livre: são os homens que, pelas suas decisões, veem em Cristo motivo de tropeço; não é o resultado de um qualquer poder fatalista ou determinação involuntária.

Em qualquer destas simbologias, há uma marca de liberdade, por um lado, e de sentido, por outro.

A pedra exprime que o Deus da História é vencedor e a Sua Palavra atrai a Si o rumo dessa mesma História. É pela Sua ação que Moisés faz jorrar água do rochedo, da pedra que, no deserto, era seca e árida. Onde há tragédia, onde há circularidade fatal e insuperável, o Deus da História faz emergir o sentido, a Palavra que dá rumo e quebra a circularidade eterna de um fastidioso rumor de abismo.

E o sinal definitivo desse sentido encontramo-lo no rolar de uma pedra que não voltará a deslocar-se: a pedra do sepulcro que, rolada uma vez, se depositou como ‘pedra’ sobre o assunto ‘morte’; a ressurreição é a Palavra que faz repousar, de uma vez por todas, sobre o monte, a pedra roliça de Sísifo.

E, por isso, se parecia ter razão Albert Camus, autor francês de origem argelina que escreveu um livro que se propõe enfrentar e sustentar o absurdo da existência humana, a que deu o título de ‘o mito de sísifo’ e que começa com a afirmação de que “só há um problema filosófico verdadeiramente sério: é o suicídio” (Albert Camus, O mito de Sísifo, Edição «livros do Brasil», p. 13), a nossa constatação, porém, de que o autor acabou o livro sem levar até ao limite a seriedade filosófica permite-nos perceber que a pedra rolou de uma vez por todas e que podemos, por fim, deixar descansar Sísifo.

O cristianismo não expressa o mero desejo de que assim seja; não é uma teoria, uma discussão. Parte de um evento, de um acontecimento que, começando no tempo da História, se prolonga para além da história. O monte sobre o qual Sísifo fazia rolar a pedra permanecia totalmente na História. E, na História, não pode encontrar-se o sentido definitivo: só eventuais antecipações provisórias do Sentido ou, para utilizar terminologia de W. Pannenberg, manifestações ‘prolépticas’ (antecipadoras) do Último Sentido que nos é concedido por Deus, a Realidade que tudo determina, não como destino sem liberdade, mas, antes como atração que chama e convida.

O verdadeiro e definitivo Sentido está para além da História. E dessa permanência última são sinais as efémeras, mas duráveis, rochas que, ainda assim, se desgastam e pulverizam: elas são símbolo. O Eterno só transparece na História, mas não é a História: ‘já não está aqui’! O que ficam são os sinais antecipadores.

Esta é a linha que separa as duas visões: uma busca o sentido definitivo aqui, na História, mas o que encontra é um eterno circular do tempo que se desfaz e pulveriza; a outra encaminha-se para o além, do qual volta a olhar o tempo, mas sabendo-o o primeiro momento do rumo último para que o agora se encaminha.

Sísifo está só.

Já Aquele que dá sentido está sempre acompanhado, pois, enquanto Amor, é, em si mesmo, encontro e relação.

Sísifo pode, por fim, descansar, se livremente aceitar não se submeter ao poder de um destino trágico.

Aceitarão isso os seus herdeiros?

‘Regresso a Ítaca no sonho do Éden’ | 24 [último texto da rubrica] | Ulisses e Adão: peregrinos de um regresso único e universal

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