segunda-feira, janeiro 02, 2023

Três ideias que devo a Bento XVI… e mais uma a que chegámos em tempos diferentes!


Tenho, desde há muito, a convicção de que a história guardará marca indelével de Bento XVI, muito para além da que resulta das suas decisões, seja enquanto Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (1981-2005), seja enquanto Papa (2005-2013).

Estou, mesmo, convicto de que a história da Igreja o revisitará, vez após vez, sem esgotar a profundidade e perenidade do seu pensamento e o reconhecerá, enquanto ‘sapientíssimo’, como um dos Mestres para as gerações vindouras, atribuindo-lhe o título de Doutor da Igreja, na companhia de São Tomás, Santo Agostinho, Santo Anselmo, Santa Teresa de Ávila, Santa Catarina de Sena, entre outros que hoje completam esse restrito areópago de encontro entre o tempo e o eterno.

A fecundidade do seu pensamento exige humildade na abordagem que me proponho fazer… Guardar da sua extensa leitura dos sinais dos tempos uma reserva de três ideias preenche, aqui, apenas o objetivo de aliciar os leitores à descoberta do muito que Bento XVI tem para nos dar de entre o seu tesouro intelectual.

Bem certo que aos leitores mais atentos logo ocorrerá a ideia da crítica ao relativismo que perdeu a referência à verdade. Deixo essa linha evidente e vou em busca de outras, menos recordadas.

 

O cristianismo é um advento…

A primeira de entre as ideias que guardo e revisito encontrei num opúsculo editado em 2009, pela Princípia, e que li em março de 2010. Nele, recolhem-se três homilias proferidas por Joseph Ratzinger, entre 13 e 15 de dezembro de 1964, sob o título de ‘Do sentido do ser cristão’. Afirma, ali, que o cristianismo é um advento, ideia que desloca a fé de uma lógica passadista, de uma lógica de divisão do mundo entre bons e maus, projetando-a para diante, sabendo da sua condição de provisoriedade e de estar a caminho. Uma ideia verdadeiramente revolucionária e transformadora…

 

A ‘Razão’ iluminista é a-histórica…

A segunda ideia encontrei-a no livro ‘A Europa de Bento: na crise das culturas’, editado pela Alêtheia, em 2005. Li-o em agosto de 2009, tendo-o anotado com diversos ‘muito interessante’. Assim era a minha leitura das obras deste insigne pensador…

Entre esses ‘muito interessante’, guardei a descoberta de que um dos problemas da modernidade não está na ‘Razão’, pois ela é fonte de iluminação, se sustentada na genuína busca da verdade. O problema está naquilo em que a Razão moderna a transformou: tornou-a ‘a-histórica’, como se o sujeito humano pudesse existir sem ser numa circunstância concreta.

Como é fecunda esta segunda ideia! Nela podemos, por exemplo, descobrir uma das maiores falhas das perspetivas sobre a liberdade que a concebem como se fosse a-histórica, sem ser situada, sem ser a de humanos concretos, como se eles pudessem ser ‘deus’, o que significa e redunda numa negação do próprio ser humano. Como afirma o próprio Bento XVI, ‘a separação radical da filosofia iluminista em relação às suas raízes [históricas] torna-se, em última análise, um prescindir do homem”. Recorda, um pouco adiante, que [em nome de uma razão a-histórica, negadora das raízes históricas, situadas] “no fundo, o homem não tem liberdade nenhuma – dizem os porta-vozes das ciências naturais, em total contradição com o ponto de partida de toda a questão. Ele não deve acreditar que é diferente de todos os outros seres vivos, e portanto deveria ser tratado como eles – dizem-nos até os porta-vozes mais avançados de uma filosofia claramente afastada das raízes da memória histórica da humanidade.” (p. 33)

Não estamos a viver, hoje, as réplicas destas ideias profeticamente denunciadas por Bento XVI?

 

 

O amor é muito mais do que um sentimento…

Por fim, devo-lhe uma terceira ideia: a de que o amor é muito mais do que sentimento…

Para se chegar a esta ideia, é necessário ter arrumada a antropologia, isto é, a visão sobre quem é o ser humano. E Bento XVI tinha uma ideia esclarecida: o ser humano envolve, no seu agir, não apenas as emoções, mas também a vontade e a inteligência, numa unidade indissolúvel de alma-corpo, matéria enfrentada, sem receios nem ambiguidades, na sua ‘introdução ao cristianismo’, que foi reeditada, em português, em 2005, pela Princípia.

A ideia de que o amor é muito mais do que sentimento encontramo-la na sua primeira encíclica, ‘Deus caritas est’, no seu número 17. Ali, afirma que “o reconhecimento do Deus vivo é um caminho para o amor, e o sim da nossa vontade à dele une intelecto, vontade e sentimento no ato globalizante do amor.” Esta ideia será revisitada uma e outra vez, sendo condição para se perceber o alcance da afirmação de que “sem verdade, a caridade cai no sentimentalismo.” (Caritas in veritate, 3) Só a meditação, sustentada e disponível, na densidade desta ideia pode evitar os erros de quem, em nome de uma ideia incompleta do amor, se dispõe a traí-lo, supondo, por exemplo, que possa ser ato amoroso o ato de matar. O ato designado como de amor não mais será, aqui, do que expressão de um sentimento não iluminado pela verdade que deveria levar ao respeito integral pelo outro, mas que se basta em descansar as emoções, sem ver o que nelas possa ser desafio de busca da verdade do outro.

Deixar-se tomar pela lonjura e alcance desta ideia permite olhar com uma atitude crítica tantas das decisões que, hoje, diante de nós, são apresentadas como atos de amor, disfarçando, antes, insuficiências do amor ou, mesmo, egoísmos mascarados…

 

Etsi Deus daretur…

Somo a estas três ideias uma quarta.

Neste caso, não se trata de uma dívida, mas de uma feliz coincidência.

Em 2006, escrevi sobre uma hipótese que me ocorrera, por ocasião da leitura de uma análise do pensamento de Dietrich Bonhoeffer. Este teólogo alemão, pertencente à igreja confessante e que morrera às mãos dos nazis, defendera que, nestes tempos, deveríamos viver ‘etsi Deus non daretur’, ‘como se Deus não existisse’.

Pareceu-me ser uma ideia sincera, mas senti que fazia perder a força da fé, diluindo-a em nome de um respeito que não me parecia fazer justiça nem à fé nem aos descrentes.

Na altura, ocorreu-me que poderia ser interessante inverter a afirmação e pensar que seria de propor ao mundo que ousasse refletir e agir ‘etsi Deus daretur’, isto é, que pensasse e agisse ‘como se Deus existisse’. Colocar o desafio sob uma condição serviria a causa da fé e serviria a causa do respeito pelos não crentes. Recolheria o melhor da fé sem impor aos não crentes a própria fé. Deus seria pensada ‘como se’ existisse. Para os crentes, o ‘como se’ seria substituído por ‘porque’, mas, para os não crentes, permaneceria como possibilidade, ‘como se existisse’…

Entusiasmei-me com a hipótese e escrevi sobre ela…

Para meu espanto, encontrei, alguns tempos depois, a mesma ideia em Joseph Ratzinger, sem que eu o tivesse lido. Senti um misto de alegria e de desilusão para comigo por me ver ultrapassado pelo meu desconhecimento. Mas saber-me acompanhado por tão ilustre companhia reconfortou-me… E, principalmente, dá-me a certeza de que a verdade pode, de facto, unir quem se deixa mover e atrair por ela.

Ao Sapientíssimo Papa emérito Bento XVI deixo o pedido de que interceda para que eu seja sempre fiel buscador da verdade, à luz da qual sirva o amor, certo de que não há verdadeira caridade senão a que se realiza na verdade.


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